A semana foi de incessantes revelações sobre quebras dos regulamentos anti-covid por membros do gabinete do primeiro-ministro britânico. Acumulam-se vozes a pedir a sua demissão
Horas depois de o Governo do Reino Unido ter pedido desculpa, esta sexta-feira, por violações das regras pandémicas na véspera do funeral do marido da rainha, o país ficou a saber que os convívios com copos eram um ponto fixo da agenda do n.º 10 de Downing Street. Aconteciam todas as sextas-feiras das 16h às 19h, escreve o jornal “The Daily Mirror”. Inquirido pela televisão Sky News, o gabinete de Boris Johnson não quis desmentir a notícia. Outro jornal, “The Independent”, detalha os esforços do governante para limpar a imagem à custa de bodes expiatórios.
Era tal a regularidade que as “sextas com vinho” surgiam nas agendas eletrónicas de cerca de 50 funcionários da residência oficial, escreve o jornal. Já se organizavam antes da pandemia, por iniciativa do gabinete de imprensa do primeiro-ministro, e não pararam quando o Executivo impôs regras que incluíam a proibição de convívio dentro de portas fora do agregado familiar.
A semana tem sido difícil de acompanhar: quarta-feira Boris Johnson pediu desculpa ao Parlamento por ter estado naquilo que foi claramente uma festa, em maio de 2020. O seu secretário convidou 100 funcionários para um ajuntamento no jardim da residência oficial, pedido que trouxessem vinho. Alguns estranharam, dadas as restrições vigentes, mas entre 30 e 40 estiveram presentes, incluindo o governante e a mulher. O líder conservador alegou ter julgado tratar-se de uma reunião de trabalho, na qual passou 25 minutos, diz.
Quinta à noite, soube-se das festas durante o luto nacional por Filipe, duque de Edimburgo e marido da soberana durante 73 anos. Organizados para assinalar a saída de um diretor de comunicações — James Slack, que pediu desculpas públicas —e de um fotógrafo do staff de Downing Street, duraram até à madrugada do dia em que a rainha foi sepultar o marido, impressionando os súbditos ao surgir afastada dos seus familiares na capela (como mandavam as regras).
Frigorífico para 34 garrafas
Esta mesma sexta à tarde, foi a vez de uma responsável pela task-force do Governo para a covid-19 se penitenciar: quando saiu do cargo, em dezembro de 2020, deu uma festa de despedida na sede do Cabinet Office, órgão similar à presidência do Conselho de Ministros. Ao cair da noite, soube-se que afinal havia copos semanalmente. No município onde agora exerce funções, pede-se a sua renúncia.
Em dezembro de 2020, quando só
era permitido juntar seis pessoas de casas diferentes e ao ar livre, terá mesmo
sido entregue um frigorífico para vinho
Apesar do teletrabalho recomendado, todas as sextas havia umas dezenas de funcionários a conviver com bebidas alcoólicas e jogos de tabuleiro até perto da meia-noite. Se na véspera das exéquias do consorte de Isabel II alguém foi mandado ao supermercado com uma mala para encher de bebidas, tal não foi ocasião única. Era frequente e destinava-se a manter cheio o supracitado frigorífico, com capacidade para 34 garrafas.
Em certas ocasiões esteve presente o chefe do Governo, que incentivava o pessoal a “desanuviar”. As fontes do jornal indicam que as festas foram muito apreciadas entre o outono de 2020 e a primavera de 2021, já que a equipa de Johnson sofria de “fadiga” com a crise sanitária. A lotação foi caindo ao ritmo do desconfinamento, que forneceu outras oportunidades de entretenimento.
“Boris passava por lá para dois dedos de conversa, enquanto bebiam. Ficava a caminho do apartamento dele e a porta costumava estar aberta. Ele sabia e encorajava”, contou uma fonte ao “Mirror”.“Via que toda a gente estava sentada a beber, quando passava. Entrava e dizia: ‘Olá, tiveram todos uma semana dura? Estão a desanuviar? Boa!’”, relata outra testemunha ao jornal.
Mais impopular do que Theresa May
Esta segunda fonte sublinha ainda, parecendo referir-se às alegações de Johnson no Parlamento sobre reuniões de trabalho: “A ideia de que ele não sabia que era para copos é um absurdo total. Se o primeiro-ministro diz para ‘desanuviar’, está basicamente a dizer que não faz mal”.
O jornal indica que um dos habitués das festas era o capitão Steve Higham, então adido de defesa do primeiro-ministro e hoje comandante do porta-aviões HMS Prince of Wales, maior navio de guerra do Reino Unido. Abordado pelo “Mirror”, o Ministério da Defesa escusou-se a prestar declarações.
Esta nova iteração do escândalo a que os britânicos já chamam Partygate promete acirrar ânimos que foram aquecendo desde o fim do ano passado. As primeiras denúncias diziam respeito a festas de Natal em 2020, com o conhecimento do primeiro-ministro, que chegou a participar numa à distância, lendo as perguntas de um quiz, passatempo típico dos pubs britânicos.
A oposição em bloco exige o afastamento do primeiro-ministro. O comportamento “frei Tomás” e a implausibilidade de estar a falar a sério quando alega ignorância mancham a reputação de Johnson, hoje mais impopular do que foi a sua muito impopular antecessora Theresa May. Os trabalhistas estão 9% à frente dos conservadores nas sondagens.
O fim de semana deve ficar
marcado por críticas do Partido Conservador. É habitualmente quando os
deputados auscultam as secções do partido nos círculos eleitorais que
representam
Operação Salvar o Grande Cão
Com eleições locais em maio, são cada vez mais os que veem no chefe do Executivo um embaraço e não o ativo eleitoral que garantiu a maioria absoluta nas legislativas de 2019. Alguns candidatos do Partido Conservador estarão mesmo a produzir materiais de campanha em que se demarcam do chefe.
Cinco deputados já pediram em público a demissão de Johnson. Não se sabe se outros podem ter apresentado em privado ao Comité 1922 (que reúne deputados conservadores não-governantes) cartas de censura ao chefe do Executivo. Se 15% da bancada o fizer (54 de 360 parlamentares tories), haverá votação sobre o destino do homem outrora louvado por ter tirado o país da UE. Um dos que querem ver Johnson pelas costas é o vice-presidente do Comité, William Wragg, para quem a bancada parlamentar está “exaurida por defender o indefensável”. Ex-ministros e dois terços dos deputados conservadores no parlamento escocês, incluindo o líder regional tory, subscrevem.
Outros estarão à espera da semana que vem, quando poderá ser divulgado o resultado de um inquérito em curso, chefiado pela veterana funcionaria Sue Gray, sobre as alegadas violações das regras. O gabinete de Johnson remete para essa investigação e não quer comentar e o próprio está confinado por ter um familiar direto infetado com covid-19. Voluntariamente confinado, já que as regras hoje vigentes não obrigariam a tal.
O silêncio não o livra de críticas. “Se uns vizinhos se portassem assim, uma pessoa ficaria enojada. Que o façam as pessoas que mandam no país, e depois mintam, mostra completo desdém pelo público”, afirmou Fran Hall, dirigente da Associação de Famílias Enlutadas pela Covid-19 pela Justiça. “Partilhámos com a rainha a dor de quem sofre em isolamento, e ela deve estar tão repugnada como nós ao ouvir isto.”
“The Independent” escreve que Johnson planeia despedir funcionários, ou fazer com que se demitam, incluindo o chefe de gabinete e o secretário Martin Reynolds, que enviou o convite para a festa de maio de 2020. Segundo este jornal, o primeiro-ministro chama a isto “Operação Salvar o Grande Cão”. A empreitada, cujo nome se refere ao próprio, passará ainda por propagandear os seus feitos desde que governa e aliviar as restrições atualmente impostas, para paliar quaisquer conclusões menos positivas do inquérito de Sue Gray. Parece objetivo cada vez mais inalcançável.
Pedro Cordeiro | Expresso (site provisório)
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