sábado, 15 de janeiro de 2022

Afinal as festas em Downing Street eram semanais, e Boris Johnson “passava por lá

A semana foi de incessantes revelações sobre quebras dos regulamentos anti-covid por membros do gabinete do primeiro-ministro britânico. Acumulam-se vozes a pedir a sua demissão

Horas depois de o Governo do Reino Unido ter pedido desculpa, esta sexta-feira, por violações das regras pandémicas na véspera do funeral do marido da rainha, o país ficou a saber que os convívios com copos eram um ponto fixo da agenda do n.º 10 de Downing Street. Aconteciam todas as sextas-feiras das 16h às 19h, escreve o jornal “The Daily Mirror”. Inquirido pela televisão Sky News, o gabinete de Boris Johnson não quis desmentir a notícia. Outro jornal, “The Independent”, detalha os esforços do governante para limpar a imagem à custa de bodes expiatórios.

Era tal a regularidade que as “sextas com vinho” surgiam nas agendas eletrónicas de cerca de 50 funcionários da residência oficial, escreve o jornal. Já se organizavam antes da pandemia, por iniciativa do gabinete de imprensa do primeiro-ministro, e não pararam quando o Executivo impôs regras que incluíam a proibição de convívio dentro de portas fora do agregado familiar.

A semana tem sido difícil de acompanhar: quarta-feira Boris Johnson pediu desculpa ao Parlamento por ter estado naquilo que foi claramente uma festa, em maio de 2020. O seu secretário convidou 100 funcionários para um ajuntamento no jardim da residência oficial, pedido que trouxessem vinho. Alguns estranharam, dadas as restrições vigentes, mas entre 30 e 40 estiveram presentes, incluindo o governante e a mulher. O líder conservador alegou ter julgado tratar-se de uma reunião de trabalho, na qual passou 25 minutos, diz.

Quinta à noite, soube-se das festas durante o luto nacional por Filipe, duque de Edimburgo e marido da soberana durante 73 anos. Organizados para assinalar a saída de um diretor de comunicações — James Slack, que pediu desculpas públicas —e de um fotógrafo do staff de Downing Street, duraram até à madrugada do dia em que a rainha foi sepultar o marido, impressionando os súbditos ao surgir afastada dos seus familiares na capela (como mandavam as regras).

Em Downing Street houve malas cheias de garrafas de vinho, dança numa cave mal ventilada, alcatifas manchadas e até utilização do baloiço do filho bebé do primeiro-ministro, que ficou partido.

Frigorífico para 34 garrafas

Esta mesma sexta à tarde, foi a vez de uma responsável pela task-force do Governo para a covid-19 se penitenciar: quando saiu do cargo, em dezembro de 2020, deu uma festa de despedida na sede do Cabinet Office, órgão similar à presidência do Conselho de Ministros. Ao cair da noite, soube-se que afinal havia copos semanalmente. No município onde agora exerce funções, pede-se a sua renúncia.

Em dezembro de 2020, quando só era permitido juntar seis pessoas de casas diferentes e ao ar livre, terá mesmo sido entregue um frigorífico para vinho em Downing Street. O jornal avalia o aparelho em cerca de 170 euros.

Apesar do teletrabalho recomendado, todas as sextas havia umas dezenas de funcionários a conviver com bebidas alcoólicas e jogos de tabuleiro até perto da meia-noite. Se na véspera das exéquias do consorte de Isabel II alguém foi mandado ao supermercado com uma mala para encher de bebidas, tal não foi ocasião única. Era frequente e destinava-se a manter cheio o supracitado frigorífico, com capacidade para 34 garrafas.

Em certas ocasiões esteve presente o chefe do Governo, que incentivava o pessoal a “desanuviar”. As fontes do jornal indicam que as festas foram muito apreciadas entre o outono de 2020 e a primavera de 2021, já que a equipa de Johnson sofria de “fadiga” com a crise sanitária. A lotação foi caindo ao ritmo do desconfinamento, que forneceu outras oportunidades de entretenimento.

“Boris passava por lá para dois dedos de conversa, enquanto bebiam. Ficava a caminho do apartamento dele e a porta costumava estar aberta. Ele sabia e encorajava”, contou uma fonte ao “Mirror”.“Via que toda a gente estava sentada a beber, quando passava. Entrava e dizia: ‘Olá, tiveram todos uma semana dura? Estão a desanuviar? Boa!’”, relata outra testemunha ao jornal.

Mais impopular do que Theresa May

Esta segunda fonte sublinha ainda, parecendo referir-se às alegações de Johnson no Parlamento sobre reuniões de trabalho: “A ideia de que ele não sabia que era para copos é um absurdo total. Se o primeiro-ministro diz para ‘desanuviar’, está basicamente a dizer que não faz mal”.

O jornal indica que um dos habitués das festas era o capitão Steve Higham, então adido de defesa do primeiro-ministro e hoje comandante do porta-aviões HMS Prince of Wales, maior navio de guerra do Reino Unido. Abordado pelo “Mirror”, o Ministério da Defesa escusou-se a prestar declarações.

Esta nova iteração do escândalo a que os britânicos já chamam Partygate promete acirrar ânimos que foram aquecendo desde o fim do ano passado. As primeiras denúncias diziam respeito a festas de Natal em 2020, com o conhecimento do primeiro-ministro, que chegou a participar numa à distância, lendo as perguntas de um quiz, passatempo típico dos pubs britânicos.

A oposição em bloco exige o afastamento do primeiro-ministro. O comportamento “frei Tomás” e a implausibilidade de estar a falar a sério quando alega ignorância mancham a reputação de Johnson, hoje mais impopular do que foi a sua muito impopular antecessora Theresa May. Os trabalhistas estão 9% à frente dos conservadores nas sondagens.

O fim de semana deve ficar marcado por críticas do Partido Conservador. É habitualmente quando os deputados auscultam as secções do partido nos círculos eleitorais que representam em Westminster. Uma delas já pediu formalmente que Johnson seja deposto.

Operação Salvar o Grande Cão

Com eleições locais em maio, são cada vez mais os que veem no chefe do Executivo um embaraço e não o ativo eleitoral que garantiu a maioria absoluta nas legislativas de 2019. Alguns candidatos do Partido Conservador estarão mesmo a produzir materiais de campanha em que se demarcam do chefe.

Cinco deputados já pediram em público a demissão de Johnson. Não se sabe se outros podem ter apresentado em privado ao Comité 1922 (que reúne deputados conservadores não-governantes) cartas de censura ao chefe do Executivo. Se 15% da bancada o fizer (54 de 360 parlamentares tories), haverá votação sobre o destino do homem outrora louvado por ter tirado o país da UE. Um dos que querem ver Johnson pelas costas é o vice-presidente do Comité, William Wragg, para quem a bancada parlamentar está “exaurida por defender o indefensável”. Ex-ministros e dois terços dos deputados conservadores no parlamento escocês, incluindo o líder regional tory, subscrevem.

Outros estarão à espera da semana que vem, quando poderá ser divulgado o resultado de um inquérito em curso, chefiado pela veterana funcionaria Sue Gray, sobre as alegadas violações das regras. O gabinete de Johnson remete para essa investigação e não quer comentar e o próprio está confinado por ter um familiar direto infetado com covid-19. Voluntariamente confinado, já que as regras hoje vigentes não obrigariam a tal.

O silêncio não o livra de críticas. “Se uns vizinhos se portassem assim, uma pessoa ficaria enojada. Que o façam as pessoas que mandam no país, e depois mintam, mostra completo desdém pelo público”, afirmou Fran Hall, dirigente da Associação de Famílias Enlutadas pela Covid-19 pela Justiça. “Partilhámos com a rainha a dor de quem sofre em isolamento, e ela deve estar tão repugnada como nós ao ouvir isto.”

“The Independent” escreve que Johnson planeia despedir funcionários, ou fazer com que se demitam, incluindo o chefe de gabinete e o secretário Martin Reynolds, que enviou o convite para a festa de maio de 2020. Segundo este jornal, o primeiro-ministro chama a isto “Operação Salvar o Grande Cão”. A empreitada, cujo nome se refere ao próprio, passará ainda por propagandear os seus feitos desde que governa e aliviar as restrições atualmente impostas, para paliar quaisquer conclusões menos positivas do inquérito de Sue Gray. Parece objetivo cada vez mais inalcançável.

Pedro Cordeiro | Expresso (site provisório)

Relacionados, em Expresso

Aproveitar o bom tempo para uns copos no jardim com dezenas de pessoas: Boris Johnson acusado mais uma vez de violar as regras que ele próprio impôs ao Reino Unido

Covid-19: ex-chefe de comunicação de Boris Johnson pede desculpas por festa

“Sem-vergonha!” Desculpas de Boris Johnson por festa ilegal não convencem Parlamento

Governo britânico pede desculpa por festas ilegais e “profundamente lamentáveis” durante o luto nacional pelo príncipe Filipe

Houve duas festas em Downing Street na véspera do funeral do príncipe Filipe, revela jornal britânico. Ajuntamentos estavam proibidos

Sem comentários:

Mais lidas da semana