terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Portugal | CARTA AO POLVO DO CAPITALISMO

Luís Castro Mendes* | Diário de Notícias | opinião

Estimado e ilustre polvo

Do mesmo modo que o meu colega de profissão (já que nas letras estou abaixo da sombra dos calcanhares dele) Eça de Queiroz se dirigiu um dia, familiarmente, à "hidra da anarquia", dirijo-me eu a si, caro polvo do capitalismo, para lhe explicar por que razão as forças conjugadas em redor dos seus poderosos tentáculos não lograram impor ao meu país um governo de direita. Bem sei que as suas múltiplas ventosas pelo mundo fora lhe evitam maiores males e, por ora, mais crise, menos crise (a serem pagas pelos tansos do costume), nada de muito grave lhe irá acontecer. Ainda assim, mereceria uma explicação, que a nossa direita nunca lhe conseguirá dar, da razão de não ter obtido esse rebuçado em cima do bolo da Europa, que seria uma mudança de governo em Portugal.

E a culpa, meu estimado polvo, não está nos agentes políticos. Todos se comportaram impecavelmente para os seus desígnios, as esquerdas dilacerando-se e dando tiros furiosos nos pés, que custam a entender a um ser racional, as direitas dividindo sabiamente as suas forças numa ala moderada, afável e dialogante (para não cometer o erro daquele seu passado líder que assumia com candura que o objetivo era empobrecer os portugueses - essas coisas fazem-se, não se dizem), uma ala doutrinária, bem-educada e bem falante, e uma ala de grunhos, que também fazem falta. Não, todos eles estiveram (não acredite no que lhe dizem os seus partidários ressabiados) bem e dignos do seu papel.

O que falhou, meu caro polvo, foi a comunicação social. Sim, os jornalistas, os comentadores, essa tropa entusiasta de amigos e admiradores dos polvos, que, por excesso de zelo e falta de cabeça, fizeram ruir os seus planos.

Depois de terem convencido previamente o povo que da parte da direita toda a moderação seria maldita, assumiram como herói e paladino de todas as direitas o mesmo que, por candura e, diria até sinceramente, honestidade, assumiu publicamente no passado recente o empobrecimento dos pobres e o enriquecimento dos ricos como objetivo do seu governo. Acontece que este povo não tem vocação masoquista, o que é talvez lamentável se compararmos com outros povos, mas é assim, e tem uma relutância bizarra a empobrecer, ficar sem serviços públicos e outras maravilhas do paraíso liberal.

Finalmente, essa mesma comunicação social, que vive de costas voltadas para o que a sociedade real pensa e sente, assumiu no final da campanha eleitoral um triunfalismo que aterrou todos aqueles que não estavam inteiramente convencidos de que empobrecer, ficar sem hospital de graça, confinar ciganos e instalar a prisão perpétua fosse a solução dos seus problemas. Falta de masoquismo deste povo, digo-lhe eu (agora diz-se resiliência). Como sempre, se de um lado nos dizem "está no papo", os que gostam sentem alívio e vão gozar a praia ao domingo, os que não gostam vão em massa para as urnas para votar em quem os possa defender.

Meu caro polvo, a culpa desta vez não esteve nos políticos, apesar da honestidade cândida do passado líder, quando os portugueses estavam pior para que Portugal estivesse melhor. Como lhe expliquei, cada um cumpriu a sua função e todos fizeram o seu melhor. Infelizmente, prova-se aqui uma vez mais que o ótimo é inimigo do bom: ter uma comunicação social enrouquecida, num coro em forma de mantra, a favor de um dos lados não criou o clima de confiança de que os seus adoradores precisariam para fazer passar bem as mensagens. Ensurdecidos por uma monocórdica bateria de comentadores a tocar interminavelmente o "samba de uma nota só", os cidadãos escolheram, com a manhosa prudência de um povo habituado a ser pobre, não ir por esse caminho, como aconselhava José Régio. "Blame it on the press", bom e estimado polvo, e aceite os melhores cumprimentos deste seu amigo e admirador.

*Diplomata e escritor

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