sábado, 12 de fevereiro de 2022

Portugal | O CDS VAI FAZER FALTA MAS A CULPA NÃO FOI DO CHICÃO

Daniel Oliveira | Expresso | opinião

O CDS foi europeísta e eurocético, populista e conservador, democrata-cristão e liberal. A indefinição do partido tinha os dias contados e o taticismo de Portas acentuou-a, transformando-se ele próprio, e só ele, no único elemento identitário do partido. Rodrigues dos Santos foi um desastre, mas a tenaz da IL e do Chega já estava montada. Portas teve 15 anos para mudar o CDS. Pô-lo na sua dependência. Pronto para morrer com a sua partida. “Chicão” só apagou a luz

A antiguidade não é um posto. Não é por ter fundado a nossa democracia que o CDS era fundamental para a sua saúde. É porque o CDS funcionava como barragem à direita profunda, herdeira de meio século de ditadura. Uma direita que mantinha vivo o racismo estrutural do saudosismo colonial, o ódio aos pobres de uma sociedade desigual e classista, o desprezo por uma democracia vista como sinónimo de corrupção e desordem e um conservadorismo beato alheio a qualquer ideia de laicidade.

A tudo isto, o CDS acrescentou moderação. O saudosismo concentrava-se em questões estritamente simbólicas, expressões como “espoliados do ultramar” ou uma justíssima (mas pouco consequente) preocupação com os ex-combatentes. O classismo era adocicado pela doutrina social da Igreja. E muitos fascistas foram convertidos em democratas contrariados, mas inofensivos. O conservadorismo era o que mais o distinguia do PSD, mas ainda longe das guerras culturais de hoje.

No resto, era o típico partido liberal de direita de país pobre – defensor de muito Estado no apoio às empresas, pouco Estado nos impostos, pouquíssimo Estado no controlo de instrumentos económicos, Estado todo nas funções de segurança. Como já escrevi, aquele era o último apeadeiro onde desembarcava quem não tinha mais direita para onde ir. Depois daquilo, só havia marginais, com muito pouco a ver com a tradição da direita autoritária portuguesa.

Mesmo tendo tido na cúpula do PPD alguns opositores ao Estado Novo, a nossa direita é filha da transição da ditadura, onde está o seu berço, para a democracia, onde teve de se reinventar. A vergonha é evidente nos nomes – um partido de centro-direita que se chama “social-democrata” e outro de direita que é de “centro” – e de muitos equívocos no debate ideológico português, que seria incompreensível para qualquer estrangeiro. Essa crise de identidade haveria de ser um problema quando já nenhum político e poucos eleitores viessem do tempo da direita envergonhada. E foi.

A total indefinição ideológica do PSD tem a mesma origem do permanente transformismo do CDS, que já foi europeísta e eurocético, populista e conservador, democrata-cristão e liberal. Nasceram num tempo em que toda a sua identidade tinha de ser mitigada. E mantiveram-se nessa indefinição muito para lá do que seria normal. Chegou o tempo da clarificação.

Francisco Rodrigues dos Santos não é a causa do falhanço do CDS. É a consequência. Durante 15 anos (repartidos por dois mandatos), Paulo Portas moldou o partido ao seu próprio taticismo absoluto. Inventou Manuel Monteiro, reerguendo o partido, que passa de 5 para 15 deputados, com um discurso populista e eurocético. Quando Monteiro já tinha desempenhado o papel de rampa de lançamento de Portas, foi sacrificado. Assim como Ribeiro e Castro começou a ser torpedeado mal venceu ao candidato de Portas. Portas fez crescer e deu poder ao partido, mas sufocou-o.

Sempre que as coisas ficaram mais difíceis, Portas não hesitou em usar tudo o que o CDS supostamente travava. Não foi Ventura que começou com a conversa sobre os subsidiodependentes para estigmatizar os benificiários do então Rendimento Mínimo Garantido. Não foi o primeiro a chamar ao RSI “financiamento da preguiça” ou que pela primeira vez se referiu a “ciganos do rendimento mínimo garantido”. Nem o primeiro a usar os imigrantes no confronto político, alimentando uma falsa relação entre imigração e criminalidade. Nem o primeiro a socorrer-se do populismo penal, defendendo, entre outras coisas, a redução da responsabilidade penal para os 14 anos. Foi Portas, sempre que se sentiu eleitoralmente apertado.

Muitos dirão que estas cedências de Portas foram o dique que adiou a chegada da extrema-direita a Portugal, ficando-lhe com bandeiras sem ultrapassar alguns limites que o Chega viria a romper sem pudor. O mau resultado de Assunção Cristas, em 2019, pode dar razão a essa tese. Ao contrário do que muita esquerda achava, talvez levada pela impaciência de António Costa com a líder do CDS, ela moderou o discurso do CDS. Mas, na realidade, já pouco havia a fazer.

A indefinição do partido tinha os dias contados e o taticismo absoluto de Portas nunca a resolveu. Pelo contrário, acentuou-a, dando guinadas atrás de guinadas e transformando-se ele próprio, e apenas ele, no único elemento identitário do partido. Todos os que o tentaram superar fracassaram. E, por mais brilhante que seja Portas, isso nada diz das suas qualidades, mas dos seus defeitos. Se alguém se torna indispensável a uma instituição quer dizer que liderou mal.

Francisco Rodrigues dos Santos foi um desastre. Leva-nos a pensar na credibilidade de revistas como a “Forbes” perceber que aquele citador frenético e sem mundo foi, quando dirigia a JP, assinalado como uma promessa de futuro para a política portuguesa. Mesmo como líder de uma “jota”, não havia ali qualquer consistência para além do verbo.

Mas não foi “Chicão”, como sintomaticamente nunca deixou de ser tratado, que matou o CDS. Quando ele chega à liderança do CDS já estava montada a tenaz que o iria estrangular. Liberais radicais de um lado, extrema-direita do outro. Os dois vindos de dentro do PSD e do CDS. Talvez sobrasse, como defendi, uma nesga que permitisse uma pequena representação parlamentar, adiando a morte e permitindo, talvez, uma coligação ou fusão com o PSD. Fosse o caminho de Adolfo Mesquita Nunes, resistindo em versão mais moderada à pressão da IL, fosse o de Nuno Melo (de assinalar a coragem de se candidatar à liderança de um partido sem representação parlamentar), resistindo em versão mais moderada à pressão do Chega. Mas o mal estava feito. Portas teve 15 anos para mudar o CDS. Pô-lo na sua dependência. Pronto para morrer com a sua partida.

Agora, já não há dique algum. A direita que sempre tivemos regressou, com menos delicadeza e maneiras. Neste cenário, não havia futuro para o CDS. Vamos sentir a sua falta. Sobretudo o PSD, que deixou de ter, ao seu lado, com quem conversar sem se queimar. Mas era inevitável. Francisco Rodrigues dos Santos só apagou a luz.

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