quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Portugal | SAI UM CHEGA COMESTÍVEL PARA A MESA DA DIREITA

Se a direita se aproximar do Chega, fica acantonada. Se se afastar, dificilmente conquistará uma maioria. Sobra banalizar o discurso e as ideias do Chega, como se fossem apenas discutíveis e diferentes, na esperança que deixem de chocar. Para que não aconteça o que aconteceu nestas eleições, alguma direita tentará tornar o Chega comestível

 Daniel Oliveira | Expresso | opinião

Sobre as regras para a eleição do vice-presidente da Assembleia da República já escrevi o que tinha a escrever. Também sobre as acusações de violação das regras democráticas e da tradição parlamentar ou de se darem ao Chega argumentos para se vitimizar em vez de os integrar no sistema. Mal estaríamos se, para não dar argumentos para a vitimização dos inimigos da democracia, obrigássemos democratas a votar neles, transformando uma eleição numa formalidade sem critério.

Mas há um lado mais interessante nesta conversa. Nas redes sociais e na comunicação social foram muitos os militantes e até deputados da Iniciativa Liberal que vieram em defesa da suposta tradição. Ainda o fizeram, apesar de tudo, em nome de qualquer coisa que se assemelhasse a princípios. Mais aguerridos foram os principais colunistas daquilo a que alguns chamam “direita observador”. É esse o seu papel: esticar a corda. Anos a esticá-la deram, aliás, todo o espaço de tolerância intelectual e moral a fenómenos como o Chega.

Para além dos argumentos a que tentei responder na segunda-feira, o recurso para consumo popular é mais ou menos o mesmo que usam para tudo: Sócrates. Enquanto andam a discutir um racista com passado numa rede bombista, vão deixar passar uma candidata que ainda nem se sabe se é mesmo candidata (espero que não seja, porque é péssima candidata) e que era “amiga de Sócrates”, explicam.

Foi exatamente como escreveu uma pessoa no Twitter, que não conheço: no primeiro dia Pacheco Amorim era péssimo, mas, ainda que por razões muito diferentes, a escolha de Edite Estrela não era a melhor. No segundo dia, Pacheco de Amorim era mau, mas a extrema-esquerda não era muito melhor. No terceiro dia, pessoas que estiveram ligadas a movimentos terroristas e socráticos são, no fundo, igualmente maus. No quarto dia, era inevitável que alguém dissesse que eleger Edite Estrela era pior do que eleger Pacheco de Amorim. Foi, claro, José Manuel Fernandes: “Se querem discutir a eleição de Pacheco de Amorim, discutam a Constituição, pois é lá que está prevista. O que a Constituição não prevê e não devia ser tolerado é uma ‘socranete’ como presidente da AR.”

Não preciso de explicar que a Constituição permite, mas não obriga, a eleição de seja quem for, caso contrário não seria uma eleição. E isso aplica-se a Pacheco de Amorim e a Edite Estrela por igual. E que o conceito “socranete”, para grande pena de José Manuel Fernandes, não entra nos critérios constitucionais de exclusão de candidatura a qualquer cargo. É sempre uma escolha política, e José Manuel Fernandes acha um racista melhor do que uma socratista.

Mas o mais interessante é tentar perceber a razão deste empenho. Parte é resposta ao mercado. Como André Ventura, João Miguel Tavares e José Manuel Fernandes sabem que a polarização valoriza o seu produto. E que fazer pontes com eleitores do Chega corresponde a falar para um mercado que se está a radicalizar e que não querem perder.

Outro parte é mero automatismo. É, parece-me, o que leva muita gente da IL, ao contrário do PSD, a envolver-se numa polémica em que só tem a perder e que se encerra com uma eleição: se a esquerda diz uma coisa, eu tenho de defender a oposta. Isso, e o facto de muita militância da IL e do Chega virem dos mesmos lados: do PSD e do CDS.

Mas a questão central é mais prática. A direita está perante um dilema. Se se aproximar do Chega perde grande parte dos moderados, transformando, com o seu acantonamento, o PS no PRI nacional (se me permitem o exagero). Se se afastar e não conseguir esvaziar o Chega, dificilmente conquistará uma maioria de direita sem ter de virar muito ao centro. E mesmo assim será dificil. Sobra a terceira via: fazer o Chega assemelhar-se a outro partido qualquer, usando os próximos cinco anos para banalizar o seu discurso e as suas ideias, como se fossem apenas discutíveis e diferentes, na esperança que elas deixem de chocar o cidadão comum. A aproximação necessária para construir uma maioria deixaria de ser um problema.

Quando João Miguel Tavares diz, muitíssimo satisfeito por ter visto o seu texto sobre o tema partilhado (incluindo por André Ventura), que quer “normalizar o Chega” para o enfraquecer, por lhe retirar a razão de ser, não está a ser cândido. Está, espero eu, a ser sonso. Não é possível que a história não lhe tenha ensinado que a normalização de movimentos racistas e xenófobos não os torna menos racistas e xenófobos, apenas naturaliza o racismo e a xenofobia. O que João Miguel Tavares sabe é que a direita de que está próximo dificilmente conquistará uma maioria sem precisar do Chega. Para que não aconteça o que aconteceu nestas eleições, mal houve a ligeira suspeita de que o Chega poderia ter alguma influência num futuro governo, tem cinco anos para o tornar comestível.

Esta direita, que não é toda a direita, tem um problema: nesse processo de normalização vai-se aproximando do Chega e ficando cada vez mais amarrada a Ventura, por mais que recorra a muitas adversativas no meio de cada batalha. António Costa agradece. Está a pôr-se no lugar onde ele mais a deseja. Não aprenderam nada com os Açores.

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