terça-feira, 1 de março de 2022

A GUERRA É A GUERRA

Carmo Afonso* | Público | opinião

“Acontece que esta guerra não pode ser vista como o domicílio de quem se opõe à extensão da NATO ou ao imperialismo americano. Acima de tudo, não serão certamente os oligarcas russos, e quem os representa, que terão esse papel na história.”

Parecia que não iria acontecer. Uma parte dos analistas internacionais, correspondentes, especialistas militares e dos espectadores não acreditava que a Rússia invadiria a Ucrânia. Fiz parte desse grupo. Poucos dias antes da invasão, as vozes que não acreditavam nessa possibilidade faziam sentido. Enganaram-se bem.

Existem, pelo menos, dois cenários possíveis para esta guerra: o primeiro diz-nos que Putin está a reagir à expansão da NATO. Catorze países aderiram à NATO depois de 1997. Dois deles, a Letónia e a Estónia, fazem fronteira com a Rússia. A adesão da Ucrânia, a acontecer, tal como é intenção manifestada pelo seu Presidente, significará o derradeiro aproximar da organização ao território russo, desta vez numa grande extensão. Este cenário abre portas a um entendimento.

O segundo cenário é que Putin, estratego por natureza ou ofício, tem um plano. A ser assim, estamos perante más notícias; o plano de Putin parece significar o fim da paz na Europa e uma eventual tentativa imperialista de avanço, para já, no território da Ucrânia, mas deve admitir-se a possibilidade de não ficar por aqui. Este cenário faz temer o pior. A única coisa que a História ensina é que a História não ensina nada, mas, no meio da nossa irremediável falta de memória, há momentos que não se podem esquecer. A Europa já viveu as consequências de existir um líder com um plano e poderio militar.

Ninguém está na cabeça de Putin; às vezes, parece que nem ele mesmo. Poucos serão conhecedores das suas intenções e do seu alcance. Deve-se proceder de acordo, e à altura, dos seus atos. E isso parece estar agora a acontecer. A União Europeia acordou, os Estados Unidos já tinham feito soar os alarmes, o Reino Unido, a Turquia e o Japão juntam-se ao bloco que reage à guerra, que reage contra a Rússia.

Quem assiste sente alívio e algum sentimento de justiça. Para lá de todas as leituras que possam ser feitas, existe uma constatação que deve prevalecer: nada justifica esta guerra. O povo ucraniano tem direito à paz. A intervenção de Putin contraria o direito internacional e contraria-nos a todos. A desigualdade entre as duas partes só acentua a inevitável comoção e a revolta.

Não é nesta unanimidade que, por cá, nos temos detido. A luta continua no pior dos sentidos, o sentido da luta entre todos. Tem sido triste. As posições assumidas pelo PCP foram o pretexto para uma manifestação de anticomunismo digna da Guerra Fria, período em que os anticomunistas afirmam que o partido está. O regresso à História está ao virar da esquina. Cada um posiciona-se onde tem o coração. Às vezes, o nosso lado político parece fazer esquecer que somos, acima das ideias e ideais, humanos.

Acontece que esta guerra não pode ser vista como o domicílio de quem se opõe à extensão da NATO ou ao imperialismo americano. Outro, pior, pode avizinhar-se. Acima de tudo, não serão certamente os oligarcas russos, e quem os representa, que terão esse papel na história. Os oligarcas russos são um expoente máximo do capitalismo; lavagem de dinheiro, criptomoeda e o incumprimento de todas as regulamentações à selvajaria do mercado. Não serão estes os protagonistas de uma causa que era nobre.

O Putin não é de esquerda, nunca foi, mas tem ainda nas mãos o poder de incomodar a esquerda. O mérito não é seu. Não existe, aliás, qualquer mérito neste facto, apenas uma responsabilidade: a da esquerda que nunca conseguiu encontrar uma concretização alternativa à União Soviética. Putin tem o poder de recordar a esquerda da sua crise e da necessidade de se reinventar.

O título deste artigo ouve-se na letra de uma canção do Fausto no álbum Por Este Rio Acima. Como na canção:

A guerra é a guerra/

/No céu e na Terra.

*A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sem comentários:

Mais lidas da semana