Curvado aos caprichos dos EUA e da OTAN, Velho Continente tornou-se pequeno e prepotente. Já não tem a influência geopolítica do passado – e guerra pode isolá-lo ainda mais. Mas mundo vai além daquele visto pelas lentes eurocêntricas…
Boaventura de Sousa Santos* | Outras Palavras
Cem anos depois da Primeira Guerra Mundial os líderes europeus caminham sonâmbulos para uma nova guerra total. Tal como em 1914, pensam que a guerra da Ucrânia será limitada e de curta duração. Em 1914, dizia-se nos ministérios que a guerra duraria três semanas. Foram quatro anos e mais de 20 milhões de mortos. Tal como em 1918, domina hoje a posição de que é necessário punir exemplarmente a potência agressora de modo a deixá-la prostrada e humilhada por muito tempo.
Em
Em 1914, havia cem anos que a Europa vivia em relativa paz, com muitas guerras, mas circunscritas e de pouca duração. O segredo dessa paz fora a Conferência de Viena (1814-1815). Nessa conferência tratou-se de pôr fim ao ciclo de transformação, turbulência e guerra que começara com a Revolução Francesa e se agravara com as guerras napoleônicas. O pacto com que terminou a conferência foi assinado nove dias antes da derrota final de Napoleão em Waterloo.
Nessa conferência, dominaram as forças conservadoras e o período que se seguiu foi denominado Restauração (da velha ordem europeia). A reunião de Viena tem, no entanto, uma outra característica que nos faz recordá-la agora. Foi presidida por um grande estadista austríaco, Klemens von Metternich, que teve com principal preocupação incorporar todas as potências europeias, tanto as vencedoras como as vencidas, de modo a garantir uma paz duradoura. Claro que a potência perdedora (a França) teria de sofrer as consequências (perdas territoriais), mas o pacto foi firmado por ela e por todas as outras potências (Áustria, Inglaterra, Rússia e Prússia) e com condições impostas a todos de modo a garantir uma paz duradoura na Europa. E assim se cumpriu.
São muitas as diferenças em relação ao nosso tempo. A principal é que, desta vez, o teatro de guerra é a Europa, mas as partes em conflito são uma potência europeia (a Rússia) e uma potência não europeia (os EUA). A guerra tem todas as características de uma proxy war, uma guerra em que os contendores se aproveitam de outro país (a Ucrânia), o país do sacrifício, para realizar objetivos geoestratégicos que em muito transcendem os desse país e mesmo os da região em que se integra (a Europa).
Verdadeiramente, a Rússia só está em guerra com a Ucrânia porque está em guerra com a OTAN, uma organização cujo supremo comandante aliado para a Europa é “tradicionalmente um comandante norte-americano”. Uma organização que, sobretudo depois do fim da primeira Guerra Fria, tem servido os interesses geoestratégicos dos EUA. A Rússia sacrifica de modo ilegal e brutal os princípios da autodeterminação dos povos, de que já foi um importante arauto em contextos geopolíticos anteriores, para fazer valer as suas preocupações de segurança depois de as não ver reconhecidas por vias pacíficas e por um indisfarçável saudosismo imperial.
Por sua vez, os EUA estão apostados desde o final da primeira Guerra Fria em aprofundar a derrota da Rússia, uma derrota que foi talvez mais autoinfligida do que provocada pela superioridade do adversário. Por um breve período, a disputa diplomática em Washington foi entre a “parceria para a paz” e “a expansão da OTAN para garantir a segurança dos países emergentes do bloco soviético”. Com o presidente Bill Clinton foi esta última política que prevaleceu.
Por razões diferentes, também
para os EUA, a Ucrânia é o país do sacrifício. A guerra da Ucrânia está sujeita
ao objetivo de infligir uma derrota incondicional à Rússia que, de preferência,
tem de durar até provocar o regime change
A grandeza política do presidente Volodymyr Zelenskii tanto poderia ser construída como o corajoso patriota que defende o seu país do invasor até à última gota de sangue, como a do corajoso patriota que, perante o perigo de tanta morte inocente e dada a assimetria de força militar, consegue, com o apoio dos seus aliados, uma negociação forte e uma paz digna. O fato de prevalecer hoje a primeira construção não decorre das inclinações pessoais do presidente Zelenskii.
A segunda ilustração para ver semelhanças e diferenças com o passado recente diz respeito à posição geopolítica da Europa. Durante as duas guerras mundiais do século XX, a Europa era o autoproclamado centro do mundo. Por essa razão é que as guerras foram mundiais. Cerca de 4 milhões das tropas “europeias” eram de fato africanas e asiáticas e muitos milhares de mortes de não europeus foram o preço do sacrifício por serem habitantes de colônias de países distantes envolvidos em guerra que não lhes diziam respeito.
Hoje, a Europa é um canto do mundo, e a guerra da Ucrânia torná-lo-á ainda mais pequeno. Durante séculos foi o extremo da Eurásia, essa grande massa de terra entre a China e a Península Ibérica, por onde circularam saberes, produtos, inovações científicas, culturas. Muito do que mais tarde foi atribuído ao excepcionalismo europeu (desde a revolução científica do século XVI até à revolução industrial de 1800) não se entende nem ocorreria sem essa circulação multissecular.
A guerra da Ucrânia, sobretudo se se prolongar, corre o risco, não só de amputar a Europa de uma das suas potências históricas (a Rússia), como de a isolar do resto do mundo e, muito especialmente, da China. O mundo é imensamente maior do que aquilo que se vê com óculos europeus. Vistos com estes óculos, os europeus nunca se sentiram tão fortes, tão unidos ao seu parceiro maior, tão confiantemente do lado certo da história, com o mundo da “ordem liberal” dominando o planeta e tão suficientemente forte para daqui a algum tempo se aventurar a conquistar ou, pelo menos, neutralizar a China, depois de ter arrasado o seu principal parceiro, a Rússia.
Vistos com óculos não europeus, a Europa e os EUA estão orgulhosamente quase sós, talvez capazes de ganhar uma batalha, mas certamente a caminho da derrota na guerra da história. Mais de metade da população do mundo vive em países que decidiram não aplicar sanções à Rússia. Muitos dos que votaram (e bem) na ONU contra a invasão ilegal da Ucrânia fizeram-no com justificações da sua experiência histórica, a qual não era a de serem invadidos pela Rússia, mas antes pelos EUA, pela Inglaterra, pela França, por Israel.
As suas decisões não foram resultado da ignorância, mas da precaução. Como podem eles confiar em países que, depois de terem criado um sistema de transferências financeiras (SWIFT) com o objetivo de defender as transações econômicas de interferências políticas, expulsam um país por razões políticas? Em países que se arrogam poder confiscar as reservas financeiras e de ouro de países soberanos como o Afeganistão, a Venezuela e agora a Rússia? Em países que proclamam a liberdade de expressão como um sacrossanto valor universal, mas recorrem à censura logo que se sentem desmascarados por ela? Em países supostamente amantes da democracia que não hesitam em provocar golpes sempre que os eleitos não convêm aos seus interesses? Em países para quem, segundo as conveniências do momento, o “ditador” Nicolas Maduro pode, de repente, virar parceiro comercial? O mundo perdeu a inocência, se é que alguma vez a teve.
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*Doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.
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