Artur Queiroz*, Luanda
A artilharia de pólvora seca começou a disparar. No dia 27 de Maio disparam a última salava e daqui a um ano voltam ao foguetório. Na versão de 2022, uma cineasta portuguesa entrou no espectáculo com um filme sobre Sita Valles. A heroína deles é apresentada como alguém que lutou pela libertação de Angola. Mais aldrabice menos aldrabice, tanto faz. Nem pela libertação dela lutou, quanto mais pela libertação de Angola. Mas cinema é ficção. Eu até vi um filme onde uma feiticeira transformou os soldados de Ulisses em porcos, grunhindo numa praia.
Para não fastidiar quem me lê, vou escrever (pela última vez!) que Sita Valles em Angola nunca foi nada, nunca fez nada. Entre meados de 1975, quando chegou a Luanda vinda de Lisboa, onde vivia, e Março de 1977 era apenas uma funcionária do Departamento de Organização de Massas (DOM) do MPLA na Vila Alice. Levantava-se, matabichava, ia para o emprego e bichanava aos ouvidos de quem tinha pachorra para ouvi-la: Cuidado com os esquerdistas! Atenção aos esquerdistas! A pequena burguesia é perigosa porque está sempre a trair a revolução!
A meio da tarde saía do emprego e ia à vida dela. No escritório da Vila Alice ainda tive que ouvi-la um par de vezes. Fora do emprego nada sei da sua vida. E mesmo que soubesse, não partilharia com os meus leitores. Apenas partilho uma parte que me prece essencial para perceber toda a mistificação que se criou à volta de Sita Valles. Quando chegou a Luanda, foi namorada de Nito Alves. Mais tarde, como é público, foi companheira de José Van-Dúnem. Ambos eram dirigentes do MPLA e foram membros da direcção política e militar do golpe de estado de 27 de Maio de 1977.
Golpe de estado. Não foi tentativa. Foi uma acção armada que teve o centro em Luanda mas decorreu em todo o país. Na madrugada de 27 de Maio de 1977 os golpistas tomaram a IX Brigada que, na época, era a maior unidade militar de África pois estava dotada de artilharia (BM21, Grad, Monacaxito ou ainda Órgãos de Estaline), tanques de última geração e tropa bem treinada. Um desses tanques, de madrugada, rebentou com a porta da prisão de São Paulo e os golpistas (comandados pela Virinha e a Nandi) mataram o dirigente do Ministério da Defesa Hélder Neto e pessoal da guarnição. Depois libertaram os presos que quiseram fugir.
Sita Valles, empregada do DOM do MPLA, cumpriu as suas funções, à luz do dia, entre meados de 1975 e Março de 1977, menos de dois anos. Clandestinamente estava no golpe destinado a afastar do poder os “burgueses, os esquerdistas e os traidores”. Mas também assassinar Agostinho Neto, como informou o líder do golpe, Monstro Imortal (Jacob Caetano).
Pelo que me apercebi nas suas intervenções políticas em reuniões dirigidas por Manuel Pedro Pacavira ou Nito Alves, ela tinha uma autêntica fobia aos esquerdistas e quanto a maoistas, babava ódio quando os ouvia falar. Porque nessas reuniões, estavam representados dirigentes dos órgãos do Poder Popular, quase todos seguidores do maoismo. E ouso opinar que foi mais ela a meter José Van-Dúnem no golpe do que o contrário. Para ser honesto, confesso que nunca me passou pela cabeça que ele tivesse coragem para se meter num golpe de estado contra os seus camaradas do MPLA e contra Agostinho Neto. Mas meteu e assinou um depoimento onde explica porquê.
Ele conhecia bem as consequências do golpismo, caso não triunfasse. Nito Alves, como membro do governo, protagonizou a mais selvática repressão contra os “esquerdistas” e os antigos militantes e dirigentes da Revolta Activa. Muitos pagaram com a vida o zelo revolucionário dos fraccionistas.
Sita Valles. A empregada do DOM do MPLA entre Julho de 1975 e Março de 1977 já deu quatro livros e agora uma longa-metragem. A isto eu chamo imaginação desmedida. Um dia fui com o grande repórter Ernesto Lara Filho fazer a cobertura de um acontecimento que foi anulado à última hora. Para combater a frustração fomos beber uma série de cervejas na esplanada do Baleizão. Estávamos nesses preparos quando apareceu um sujeito, sequioso, conhecido do Lara. Conversa puxa bebida, bebida puxa conversa e o homem disse que ia praticar aeromodelismo, coisa de que eu nunca tinha ouvido falar. Fomos com ele ouvir roncar aqueles aviões miniatura que consumiam éter. Ernesto Lara Filho fez uma reportagem que ocupou as centrais e deu manchete!
O grande repórter, depois de umas cervejolas foi ver acrobacias de aviõezinhos telecomandados, na zona onde está agora o Primeiro de Maio. Do nada saiu uma reportagem de duas páginas. Sita Valles, empregada do DOM do MPLA menos de dois anos, pode perfeitamente dar livros, filmes e peças de teatro. Porque não?
Um mistério. José Van-Dúnem, o companheiro da empregada do DOM do MPLA, era membro do comité central do MPLA. Foi adjunto do comandante Gika no comissariado político das FAPLA. Lutou pela libertação de Angola (ele sim!) e a sua luta custou-lhe a prisão no campo de concentração de São Nicolau (Bentiaba). Não foi nacionalista e revolucionário, menos de dois anos. Aderiu ao MPLA ainda estudante. Quando Sita Valles era militante da União dos Estudantes Comunistas (UEC) em Lisboa.
Então por que os portugueses ainda não escreveram quatro livros e fizeram um filme sobre José Van-Dúnem, que foi membro da direcção política e militar do golpe de estado de 27 de Maio de 1977, mas também alto dirigente do MPLA?
Lá vão dizer outra vez que sou anti-português. José Van-Dúnem não lhes interessa porque é negro. Os pretos em Portugal não contam para nada. Ainda que às vezes se enfeitem com eles.
Aos familiares, amigas e amigos
dos golpistas ouso fazer um pedido. Deixem os mortos
*Jornalista
DEVIDO A PROBLEMAS INFORMÁTICOS ESTAMOS A REDUZIR O NÚMERO DE POSTAGENS NO PÁGINA GLOBAL. PRINCIPALMENTE PELA MOROSIDADE QUE O PROCESSO IMPLICA. CONTAMOS RESOLVER AS "AVARIAS" ATÉ À PRÓXIMA SEGUNDA-FEIRA 30 DE MAIO. – Redação PG
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