quinta-feira, 2 de junho de 2022

CEGOS E PANÇUDOS SEM LUZ NEM ESPELHO -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

“Para um homem se ver a si mesmo são necessárias três coisas: Olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz.” Padre António Vieira (Sermão da Sexagésima, 1655).

Mário Mesquita entrou no jornal Diário de Notícias, após o golpe de estado militar de 25 de Novembro de 1975, como comissário político dos vencedores, fazendo companhia a Vítor da Cunha Rego, o comissário político-chefe. Luís de Barros (director) e José Saramago (director-adjunto) foram demitidos e despedidos, pelos comissários políticos da dupla PS/PSDP. Com os directores foram despedidos quase todos os jornalistas, por razões políticas. Em pouco tempo, o mais importante jornal português, em tiragens, circulação e expansão, ficou transformado num boletim de trazer por casa, até acabar na folha de couve que é hoje.

A verdade exige que recorde um “saneamento” anterior, que levou à saída não só dos saneados mas também de grandes jornalistas com os quais eu trabalhava directamente: Silva Costa, Manuel Beça Múrias e Cáceres Monteiro, que foram fundar o semanário O Jornal. Estes saíram em sinal de protesto. Vítor da Cunha Rego e Mário Mesquita despediram colegas de profissão, sem justa causa. Ilegalmente. Por isso, o Tribunal do Trabalho de Lisboa condenou a Empresa Pública Notícias Capital (EPNC) à reintegração de todos e a indemnizá-los. 

Eu fui um dos despedidos e nada recebi. Porque me recusei a recorrer ao Tribunal na acção colectiva entreposta pelos meus camaradas de infortúnio. Despediram-me por não ser “pluralista”. Mas eu fui contratado como jornalista. Os dois comissários políticos, Vítor da Cunha Rego e Mário Mesquita, tinham de explicar-me muito bem por que razão, cometeram tão gritante ilegalidade e atentaram contra o pão dos meus filhos, que na época já eram quatro e comiam desalmadamente. Nem fui receber o salário do mês de Novembro e os “acertos legais”. Porque se entrasse no edifício para receber, obrigatoriamente tinha de ir falar com os comissários políticos. Perdi a massa toda.

A verdade exige que refira o papel positivo do defunto Mário Mesquita na carreira literária de José Saramago. Até ao seu despedimento do Diário de Notícias, o prémio Nobel da Literatura tinha publicado dois livros de poemas e um de crónicas. Como poeta era mais menos do que mais e como cronista nem por isso. Quando perdeu o emprego no Diário de Notícias, teve que ir a todas para dar ao dente. E trabalhou para a Círculo de Leitores.  Escreveu a obra Viagem a Portugal, um misto de crónicas e narrativas de lugares de interesse. Quando recebeu uma pipa de dinheiro por ter sido despedido ilegalmente, com esse pecúlio virou escritor profissional.

Claro que também ajudou muito a Editorial Caminho, fundada em plena liberdade, no ano de 1975. No tempo da ditadura colonialista e fascista, o Partido Comunista Português içou bem alto a bandeira da Cultura Portuguesa. Militantes e simpatizantes do partido fizeram coisas extraordinárias na área cultural. Depois do triunfo da Revolução dos Cravos, a Caminho é um marco indelével no panorama editorial. Dá voz a quem não tem voz numa sociedade putrefacta e em desagregação, sempre pronta a esmagar o mínimo sinal de cultura. 

James Joyce também ajudou e muito ao triunfo de José Saramago. No livro “Ulisses”, o génio da literatura contemporânea inclui um capítulo inteiro, Monólogo de Molly Bloom, sem qualquer pontuação. Louis-Ferdinand Céline chamava-lhe “o irlandês bêbado”. Quando descobri a verdade de Ulisses, cortei relações com o livro Viagem ao Fim da Noite, que lia todas as noites em que pernoitava nas casas que tinham luz. Mudei para a obra literária mais importante, desde Virgílio e Homero.

Conclusão. Mário Mesquita despediu jornalistas ilegalmente. Só um canalha procede assim. Porque os jornalistas são técnicos insubstituíveis na democracia. Quando uma empresa os admite, é porque os seus responsáveis confirmaram antes que são competentes e estão aptos a desempenhar um papel fulcral na sociedade. Portanto, despedimentos, só muito excepcionalmente. Despedimentos ilegais nem pensar. 

O presidente Marcelo Rebelo de Sousa considerou alguém que despede jornalistas, como “o papa do jornalismo português e da liberdade de imprensa”. Esta opinião não vale nada porque na matéria ele tem credibilidade abaixo de zero, como a temperatura na Sibéria em Dezembro. Como jornalista vale o que ele próprio quis ser, quando defendeu que jornalismo é “criar factos”. Problema diferente foi o presidente Marcelo ter condecorado alguém que despede colegas ilegalmente, com as insígnias de Grande-Oficial da Ordem da Liberdade. Um insulto gratuito a todas e todos os que já foram condecorados e seguramente não roubaram o pão de colegas, despedindo-os sem justa causa, ilegalmente, apenas porque como comissário político recebeu ordens dos donos.

O que mais me admira é o silêncio de jornalistas que sabem de tudo isto e têm acesso aos Media. Uma conivência que confirma o triunfo dos porcos e dos leprosos morais. No que me toca, quero dizer que para mim, um bandido é um bandido, esteja vivo ou morto. Um canalha é um canalha, esteja vivo ou morto. Um pulha é um pulha, esteja vivo ou morto.

Vítor da Cunha Rego despediu-me sem justa causa. Roubou o pão dos meus filhos. Morreu rezando a Nossa Senhora de Fátima. Nem eu imaginava uma vingança tão cruel. Deste “democrata” recordo que foi secretário de Mário Soares. E sobre a descolonização disse isto: “Eu considerava — e não apenas eu, muita gente como o Manuel de Lucena, por exemplo, e outros que o escreveram na altura — que as Forças Armadas deveriam permanecer em África mesmo para além da independência e que eram o único garante dos bens portugueses e da presença portuguesa naquela altura.” Está tudo dito.

Agora morreu Mário Mesquita, o outro comissário político do Diário de Notícias que me despediu ilegalmente, sem justa causa. Eu cá estou, navegando com sérios riscos de ir ao fundo, a cair da tripeça, mas vivo. 

Luís Castro Mendes, antigo ministro da Cultura de um governo de António Costa escreveu um texto sobre o 27 de Maio e a grande heroína dos golpistas, Sita Vales. Vomita menos barbaridades que outros, mas não esconde o ódio que tem ao MPLA, por ter demolido o império colonial português. Na cabeça destes pobres diabos só existe ódio e vingança, Diz ele que o lado dos que rechaçaram o golpe de estado militar tem vergonha do que aconteceu. Um insulto gratuito e inaceitável.

Os dirigentes e militantes do MPLA nunca falaram do tema até 1992, porque lhes dói muito. Morreram muitas e muitos camaradas na luta contra o colonialismo. Doeu muitíssimo mas foi contra um inimigo que era preciso derrotar a todo o custo. Na Guerra da Transição morreram muitas e muitos camaradas. Doeu muitíssimo. Mas morreram porque lutaram contra o banditismo político protagonizado pelos independentistas brancos. Quando morreram camaradas porque um grupo de irresponsáveis, racistas e traidores sedentos de poder os matou, a dor ficou insuportável. Não se vergonham, seu pançudo descabeçado! É dor. Todas e todos os que enfrentaram os golpistas e os derrotaram nada têm de que se envergonhar. Pelo contrário, só têm motivos para se sentirem orgulhosos por terem prestado mais um serviço relevante a Angola.

Este kiombo rubicundo diz que o golpe de estado era para assustar Agostinho Neto, já que estava virado para o Movimento dos Não Alinhados e os soviéticos não queriam. Esta gente fica cega pelo ódio e com os miolos feitos em papa quando se trata de Angola. Tanto ódio, tanto ressentimento, tanto espírito de vingança. Agostinho Neto sempre defendeu que Angola independente ia ter relações com todos os países do mundo. Nunca escondeu que não alinhava em blocos. Antes de morrer estava a negociar com o presidente Jimmy Carter. Se não tivesse morrido, ia encontrar-se com Jonas Savimbi para o retirar da influência do regime racista de Pretória. Vem este pançudo odiento descobrir a pólvora.

Por favor, não sejam tão mesquinhos, tão insignificantes. Os portugueses ficaram desempregados quando perderam as rotas do oriente e ficaram sem o comércio das especiarias. Ficaram na indigência quando perderam o Brasil. Só não abriram falência porque continuaram a vender escravos de Angola para as plantações e engenhos brasileiros. Qualquer analfabeto sabe que a salvação de Portugal era preparar a independência de Angola e Moçambique de uma forma pacífica. Preferiram a guerra. Desde então, as elites que governam Portugal são cegas, não têm espelho ou estão às escuras. Não conseguem ver-se.

Um dia Arménio Ferreira deu-me a missão de acompanhar Melo Antunes a Luanda, para um encontro com o Presidente Agostinho Neto. Nessa altura ainda não existia embaixada de Angola em Portugal e tudo passava pelo Órgão Coordenador do MPLA para a Europa. No avião perguntei ao Capitão de Abril por que motivo Portugal demorou tanto tempo a reconhecer a independência de Angola e o governo português mantinha tudo tão embrulhado. E ele respondeu:

“No 25 de Abril tivemos o general Spínola a servir de travão. O programa do MFA defendia claramente a independência imediata das colónias. O general Spínola baralhou tudo até ser afastado. Depois do 25 de Novembro de 1975 o travão foi Mário Soares. Não tem sido possível destravar”. E assim estamos. Otelo Saraiva de Carvalho, em 1992, ajudou a desmontar os travões. Mas desde então, todos vão travando, como quem não quer a coisa.

*Jornalista

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