sábado, 4 de junho de 2022

DESPREZO PELOS PORTUGUESES

Apoiar e sustentar o regime ucraniano com dinheiro e armas tornou-se ainda antes do início da invasão russa o mantra de quem se diz defensor da democracia, dos direitos humanos, da liberdade, da paz e dos «valores» da civilização ocidental.

José Goulão* | AbrilAbril | opinião

Há gestos que arruínam definitivamente um político, uma política e uma governação. A excursão do primeiro-ministro da República Portuguesa, António Costa, à Ucrânia Ocidental para depositar 250 milhões de euros dos portugueses na conta de um Estado falido, o mais corrupto da Europa e à mercê de um aparelho nazi traduz um gesto do maior desprezo possível pelos portugueses e pela democracia portuguesa. A partir de agora o actual chefe do governo está pronto para ocupar o lugar que ambiciona na estrutura autoritária e antidemocrática da União Europeia, quiçá da NATO. E que seja depressa: o povo português não pode continuar a ser usado como carne para canhão numa guerra com a qual nada tem a ver e que, pelo caminho que as coisas levam, pode dizimar a Europa – para gáudio dos Estados Unidos da América.

Esqueçam o que António Costa diz, faz ou promete. É apenas show-off, política reles, um conjunto de manobras inseridas na realidade paralela em que mergulhou toda a chamada «classe política» e da qual a grande vítima é a população portuguesa: manipulada, envenenada, enganada e, o que é muito mais grave, impedida de raciocinar por conta própria.

O gesto de benemerência do primeiro-ministro para com uma estrutura de poder inegavelmente nazi – as provas avolumam-se – a que devem somar-se 50 milhões de euros doados a um regime polaco que Bruxelas já ameaçou de penalizações por ser «iliberal», é, olhando as coisas por outro prisma, um saudável safanão na hipocrisia, no faz-de-conta regimental. Não esqueçamos que o regime da Polónia fez coro com os governos que declararam os portugueses «mandriões» e, por isso, muito bem condenados à ditadura da troika. Aí está a recompensa.

Que veja quem souber ver, quem quiser ver, ou quem tenha acordado a tempo, mesmo os que ainda não deixaram de sofrer de azia por causa do «voto útil»: o Estado português, através do seu governo, colocou a guerra, a solidariedade para com estruturas antidemocráticas, corruptas e manchadas de sangue devido a oito anos de envolvimento em actividades terroristas à frente dos interesses dos portugueses. Obedeceu com submissão absoluta às ordens da burocracia não-eleita da União Europeia e logo numa ocasião em que a comunidade dos 27 está completamente à deriva, sem saber como recuar nos perversos caminhos contra a Rússia que lhe foram traçados em Washington. A partir de agora, como pode o actual chefe do governo pretender dar lições de democracia e de respeito pelos direitos humanos quando faltou ao respeito aos portugueses para subsidiar um Estado nazi?

A hipocrisia e a desonestidade governamental tornaram-se transparentes a partir do momento em que um primeiro-ministro, responsável por fazer cair um governo por teimosias e minhoquices orçamentais em torno de verbas inócuas para a saúde nação, agarrou em 250 milhões de euros que tanta falta fazem aos cidadãos para os lançar num poço sem fundo que engorda contas em paraísos fiscais e luxuosas mordomias em capitais ocidentais de uma clique de criminosos vivendo à custa da guerra e da miséria, pondo em causa a sobrevivência do seu povo e do seu país.

Mais ou menos na altura em que Costa beijava e untava generosamente a mão ao reconhecidamente corrupto Zelensky, enquanto este impõe a imolação dos seus soldados e do seu povo «até ao último dos ucranianos» – como se exige em Washington –, a maioria parlamentar do seu partido proibia um aumento salarial decente para os trabalhadores portugueses da Função Pública. As mesmas restrições são extensivas aos salários em geral, pensões, reformas, os sectores estratégicos da saúde e da educação.

Como exemplo de opção política não poderemos encontrar nada mais esclarecedor. Não, não foi Putin quem mandou escrever isto. Até os cérebros mais infectados pela epidemia de pensamento único ainda conseguem fazer esta associação elementar, para frustração de pivôs e comentadores. Há realmente casos em que a mentira tem perna curta, como tão bem se diz no Brasil.

Os portugueses sempre foram vítimas dos caprichos provincianos dos seus sucessivos governos ao pretenderem exibir-se como «bons alunos», mas o executivo de António Costa esmerou-se na subserviência. Cabulou nas últimas lições e não percebeu que os colegas já estão mais adiantados na matéria – mesmo sem saberem muito bem o que fazer com ela, em modo de cada um por si. Tal como aconteceu, aliás, com o combate à Covid.

Para memória futura

Parece útil e pedagógico registar, para memória presente e futura, em que mãos o primeiro-ministro português depositou, a fundo perdido, a maquia de 300 milhões de euros – 250 milhões em Kiev, 50 milhões em Varsóvia.

Apoiar e sustentar o regime ucraniano com dinheiro e armas tornou-se ainda antes do início da invasão russa o mantra de quem se diz defensor da democracia, dos direitos humanos, da liberdade, da paz e dos «valores» da civilização ocidental.

O regime ucraniano é dirigido formalmente por um indivíduo de nome Zelensky, ex-comediante de televisão patrocinado pelo oligarca Ihor Kolomoisky, financiador de grupos nazis cuja missão principal seria garantir-lhe o acesso às enormes riquezas naturais da Bacia do Donbass, principalmente carvão e petróleo. O terrorismo de Kiev contra as regiões Leste do país tem muito a ver com isto.

Kolomoisky foi proprietário da estação de televisão onde Zelensky ganhou fama como actor numa série em que fazia de presidente da república anticorrupção, intitulada Servir o Povo.

Devido ao êxito do enlatado e à popularidade entretanto adquirida pelo actor principal, Kolomoisky patrocinou a candidatura do comediante à chefia de Estado criando para tal um partido baptizado com o mesmo título da série – Servir o Povo – tendo como principal objectivo declarado o de «combater a corrupção».

A estratégia de transformar a ficção em realidade enganou a grande maioria dos ucranianos. Mal foi eleito, Zelensky encaixou-se à medida no aparelho nazi que controla o Estado desde 2014, ano de enraizamento do regime totalitário nascido do golpe patrocinado pelos Estados Unidos e recebido com benevolência pela União Europeia.

O novo presidente começou por ser advertido pelos grupos políticos e paramilitares nazis dominantes de que não teria um futuro risonho se respeitasse os Acordos de Minsk, cumprisse as suas promessas de paz no Donbass – região flagelada militarmente por Kiev desde o mesmo ano de 2014 – e mexesse nos esquemas político-militares-mafiosos que controlam a sociedade.

Naturalmente ele obedeceu, e sempre com um ou os dois pés prontos a saltar para a estrutura pessoal que foi criando no estrangeiro, se não lhe restar outra solução. Os dividendos não se fizeram esperar e Zelensky surgiu como uma das figuras sonantes da investigação jornalística internacional «Panama Papers» como proprietário de milhões de dólares em contas offshore, imóveis em grandes capitais europeias e empresas convenientemente em nome da esposa. Se o presidente Zelensky estiver isento de qualquer corrupção no desempenho do cargo, então aconselham-se os actores portugueses, tão desprotegidos pelos governos nacionais, a procurarem emprego na Ucrânia, onde os salários do sector parecem ser de tal ordem que permitem aforrar milhões e milhões em paraísos fiscais. 

Zelensky dançou sempre ao som da música tocada pelos oligarcas internos e pelo regime de Washington. Acelerou mesmo o ritmo de neoliberalização da sociedade, seguindo as receitas de Pinochet e dos Chicago Boys no Chile de há 50 anos, e da Iniciativa Liberal agora em Portugal, transformando a Ucrânia no país mais pobre da Europa. Proibiu todos os partidos da oposição parlamentar; prendeu e executou opositores políticos; reforçou a nomeação de nazis para cargos fundamentais de decisão, designadamente aos níveis militar e da polícia política; encerrou televisões, impôs a programação única, o discurso único e fechou rádios e jornais; pôs em circulação uma lista de ucranianos e estrangeiros a perseguir – inclusivamente o ex-chanceler alemão Gerhard Schroeder – alguns dos quais têm vindo a ser assassinados; publicou leis xenófobas e de apartheid impondo a segregação dos cidadãos ucranianos de origem russa, proibiu a língua russa e publicações nesse idioma; baseia os planos nacionais de educação na xenofobia, além de incentivar práticas paramilitares desde tenra idade; ameaçou reequipar-se com armas nucleares; manteve a guerra e o terror nazi contra as regiões do país de maioria russófona, montando uma grande ofensiva relâmpago de «reconquista» desses territórios, incluindo a Crimeia, para fins de Fevereiro ou início de Março deste ano, preparativos a que a Rússia se antecipou e frustrou com a invasão. 

A administração de Zelensky manteve e aprofundou as características do regime que permitem qualificá-lo como nazi, assente na recuperação da ideologia e das práticas nacionalistas dos anos 30 e 40 do século passado que encontraram no sangrento colaboracionismo com as tropas e organizações de assalto de Hitler a sua expressão máxima. 

É um facto que apenas uma minoria de ucranianos – que não é assim tão ínfima na Ucrânia Ocidental – se identificam com esta mitologia nacionalista herdada dos tempos do carniceiro e hoje «herói nacional» Stepan Bandera. Uma realidade que é irrelevante quando são reprimidos todos os direitos dos cidadãos e a sociedade é submetida a uma ditadura férrea, como a encimada pelo ex-comediante Zelensky. O dirigente nazi alemão Herman Goering dizia que bastavam 5% da sociedade para impor um regime como o de Hitler. As massas viriam depois, arregimentadas através de mecanismos de condicionamento de opinião e uma fortíssima e incessante operação de propaganda. Novos tempos, velhos mas refinados métodos.

Os batalhões Azov e Haidar, considerados suportes da elite militar ucraniana e pontas de lança do clima de terror imposto nas regiões de Donbass ao longo de oito anos, os grupos Svoboda e Sector de Direita, as milícias urbanas C-14 são uma poderosa envolvente que condiciona o regime, se for necessário através do terror, e formataram a Ucrânia de hoje.

Saberá o primeiro-ministro português que grupos como o Azov e o Haidar organizavam (agora é mais difícil) safaris no Donbass para que cidadãos ocidentais, em troca de uns punhados de dólares, pudessem abater «ruskies», isto é, russos, «sub-humanos», «humanóides»? E que o venerado Zelensky considera «fixe» que as pessoas apoiem esses grupos nazis, aliás agora transformados em «mártires» pelas polícias do pensamento único?

A estrutura de poder enraizada na Ucrânia a partir do golpe de 2014 tem vindo a ser sustentada em termos de armamento, treino militar e financiamento pela NATO, indiferente ao poder nazi que dela emana.

Mais do que indiferente, conivente, uma particularidade extensiva à União Europeia, totalmente subordinada aos Estados Unidos e à Aliança Atlântica nestes domínios. Exemplos dessa gritante cumplicidade são a indulgência da Alemanha e da França perante as manobras de Kiev para tornar inúteis os Acordos de Minsk, uma saída pacífica para o conflito no Donbass; e a insistência dos Estados Unidos e da União Europeia na continuação da guerra, apesar das visíveis debilidades do exército ucraniano, que aliás o Washington Post reconhece em artigo muito recente. Não foi o inimitável mas perigoso Borrell, chefe da «política externa» da União Europeia, quem garantiu que esta guerra só tem solução militar?

Costa já está maduro

É assim que vamos encontrar os «valores» ocidentais submersos na podridão nazi, levando-nos a reflectir seriamente sobre as convergências (que, infelizmente, são históricas) entre as chamadas democracias (neo)liberais e os sistemas políticos de inspiração fascista e hitleriana na defesa a qualquer preço dos poderes capitalistas e, neste caso, também de uma ordem internacional unipolar e imperial «baseada em regras» que asfixiam a vigência do direito internacional.

Para conveniência desta santa aliança, de modo a que a realidade seja desviada do conhecimento dos cidadãos, é essencial que as características nazis do regime ucraniano sejam ocultadas e até voltadas do avesso, considerando-as uma «invenção russa» e fazendo de Zelensky um herói, um mártir, potencialmente um santo. E ele, sem dúvida, sabe desempenhar bem o papel porque interpretar a ficção é a sua verdadeira profissão.

Para que a estratégia funcione, o regime de Kiev é assessorado por 150 agências de comunicação e imagem transnacionais muito bem pagas – e dinheiro não deve faltar, como percebemos através da generosidade do senhor primeiro-ministro.

Há acidentes de percurso, como o de Zelensky dar a palavra a um terrorista do Azov no discurso ao Parlamento grego, ou acusar os russos, perante o Parlamento de Israel, de reeditarem a «solução final» de Hitler agora contra os ucranianos. A inversão grosseira da História não caiu bem porque uma coisa é a propaganda para manipular a opinião pública em geral, outra é tentar convencer a elite política de Israel de que não há nazis do lado ucraniano. O poder israelita sabe muito bem onde eles estão presentes e o Centro Simon Wiesenthal não deixa dúvidas quanto a isso.

Em Portugal, pelo contrário, tudo correu bem. Zelensky comparou o golpe fascista de Maidan ao 25 de Abril libertador e ninguém ao nível dos poderes públicos e da comunicação corporativa se incomodou com a provocação. A Assembleia da República dialoga com o Parlamento de Kiev, onde só existe uma réplica da União Nacional falando consigo própria, e a esmagadora maioria dos deputados está tranquila com a aberração.

As circunstâncias em que decorreu o périplo de Costa a Kiev e redondezas, principalmente a vassalagem prestada a um indivíduo como Zelensky, podem levar a crer que o primeiro-ministro não conhece a verdadeira situação na Ucrânia Ocidental (e muito menos a do Donbass) o que é muito grave porque o que está simplesmente em causa é a aposta dos Estados Unidos num feudo nazi – quem sabe se até ao confronto nuclear – para evitar a criação de uma ordem multipolar, portanto em defesa de interesses exclusivos de Washington.

Se, pelo contrário, o chefe do governo português conhece a realidade do regime ucraniano isso é tão ou mais grave ainda, porque expõe o cenário repugnante no qual um democrata submete os interesses e o dinheiro dos portugueses a um regime ditatorial onde pontificam psicopatas criminosos. Em qualquer das situações, Costa manifestou um imperdoável e definitivo desprezo pelos portugueses.

Pelo que pode considerar-se maduro para dar o passo que tanto ambiciona – abraçar um cargo tecno-autocrata na clique transnacional de Bruxelas, onde os portugueses são desprezados, aliás como qualquer outro povo. Mas apresse-se, antes que ela acabe.

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