Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião
O primeiro-ministro (PM) assumiu alguns importantes compromissos com os portugueses, nas áreas do trabalho e da economia, por reconhecer que aí se arrastam problemas crónicos - como é o caso dos baixos salários e da falta de oportunidades para "a geração mais qualificada de sempre" - que bloqueiam o desenvolvimento do país. Todavia, as políticas que vai pondo em prática surgem, cada vez mais, em oposição aos objetivos enunciados.
No passado sábado, o PM afirmou: "nós temos que nos próximos quatro anos conseguir fazer, todos em conjunto, o esforço para que o peso dos salários dos portugueses, no conjunto do produto interno bruto, seja pelo menos idêntico àquele que existe na média europeia, ou seja, subir dos 45% para os 48%, o que implica um aumento de 20% no salário médio do nosso país". Ora, o PM sabe que, se a inflação sobe e não se aumentam os salários, se agravam as injustiças, se reduz a parte dos salários na riqueza produzida e, em regra, aumentam os lucros.
Como é possível chegar àquela meta, se no primeiro dos quatro anos (2022) o Governo impõe, na Administração Pública (AP), um aumento salarial nominal de 0,9%? Como vai conseguir colmatar a falta de quadros altamente qualificados na Administração Central, Regional e Local, a contratação de professores, de médicos e outros profissionais, se nem sequer assegura o poder de compra dos salários no setor público?
António Costa sabe muito bem que, historicamente, as políticas aplicadas na Administração Pública - as salariais e laborais, as de emprego e até as de gestão - são não só um sinal como também o motor das práticas privadas. Por isso, surgiram empresários a acusá-lo de desacerto entre o que diz e o que faz e a aproveitar para lhe dizer que ele anunciou o objetivo, mas "se esqueceu do manual de instruções". Estas contradições minam as condições de envolvimento e de responsabilização das empresas e da sociedade, tão necessárias para a obtenção daquela e outras metas.
Interrogado por jornalistas sobre o que o Governo poderá fazer face ao aumento dos preços dos combustíveis, o PM disse, na passada terça feira: "é preciso ser claro para todos, os preços só vão baixar quando a guerra parar e quando for restabelecida a normalidade no fornecimento de combustível". Ninguém de bom senso ignora os impactos da crise pandémica ou da guerra na Ucrânia, mas todos sabemos que os aumentos dos produtos energéticos têm tido uma forte componente especulativa. O Governo de Portugal acomodar-se a uma inevitabilidade tão questionável é negar o fundamental da ação política que se exige para dar confiança às pessoas e às organizações.
Entretanto, vários membros do Governo, que juram ser contra a austeridade, têm-se ocupado a argumentar que o aumento dos salários podia agravar a inflação. Trata-se de um exercício de dupla negação facilmente identificável: primeiro, a austeridade troikiana teve como primeiro instrumento a desvalorização salarial, objetivo a que se pode chegar por várias vias; segundo, se o trabalho é colocado como potencial fator inflacionário, isso fixa-o exatamente como variável de ajustamento para as políticas macroeconómicas. Tornar-se-á evidente que estão a virar a página para uma nova austeridade.
Precisamos que o Governo abandone este quase negacionismo irritante e seja fator de esperança no futuro.
*Investigador e professor universitário
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