A vida só faz sentido quando
temos a certeza de que há sempre uma amiga ou um amigo à nossa espera. Quando
sabemos que há sempre um braço amigo para nos amparar. Uma palavra sábia que
nos ajuda a ver melhor o que parece baço, triste, perdido, inatingível. A
amizade é mais do que a mãe de um rio. Muito mais do que a água fresca. Mais
ainda do que o Sol nascente. Mário Pizarro é um angolano de excepção e meu
amigo há mais de meio século. Naquele tempo de guerra e sem liberdade ele
encarava os ocupantes e dizia com a sua voz grave: Viva o MPLA! Viva Angola
Independente! Era preciso coragem. Eu só o imitava quando metia um copinho a
mais.
O meu amigo, quando eu não tinha
onde cair morto, abria-me as portas de sua casa, dava-me comida, dormida e o
calor da amizade. Ele e a sua companheira Vera. Na época só ainda existiam os
seus filhos Paulo e Miguel. Recebiam-me como se eu fosse um rei mago perdido do
presépio da manjedoura na Palestina. Gente muito, muito amiga e que me salvou
da indigência. Iam todos dormir e eu matraqueava umas crónicas na velha máquina
de escrever Hermes Baby. Dormia a correr e depois partia, antes dos da casa
acordarem, para não incomodar.
O Mário Pizarro nunca se vergou,
nunca calou o que pensa. E um dia foi afastado do cargo que desempenhava no
Banco Nacional de Angola, pelo Presidente José Eduardo, de quem era muto
próximo. Partilhou comigo os seus receios porque se sentiu perseguido. Nunca
mais os dois amigos se reconciliaram. Quando falávamos do tema, ele apelidava o
Presidente José Eduardo de Zeca Diabo!
Um dia não muito longínquo
(há quatro anos…) disse-lhe: Ainda vais ter saudades do Zeca Diabo. Ele
olhou-me muito sério e respondeu:
- Eu reconheço que o Presidente
José Eduardo dos Santos fez coisas muito positivas em Angola. O Povo
Angolano deve-lhe muito.
Hoje mandou-me o texto que vos
envio, intitulado Em Defesa do Presidente José Eduardo. Faço a sua distribuição
na esperança de que muitas e muitos dos que tudo lhe devem, tenham um assomo de
dignidade. E no pacote incluo quem teve a coragem de cuspir na sua Honra
dizendo que antes de falecer, recomendou o voto na UNITA e em Adalberto da
Costa Júnior. Nunca ninguém tinha chegado tão longe no insulto ao Presidente
José Eduardo. Os do MPLA não mudam de lado nem de bandeira, nem mortos! Leiam a
peça.
"Ponto prévio:
Os meus amigos ficarão
seguramente surpreendidos com um texto escrito por mim com este título. De
facto, o Presidente José Eduardo não teve um comportamento correcto no processo
que levou à minha saída do Banco Nacional de Angola. Foi um processo injusto,
pouco transparente e que teve impactos negativos para mim e para a minha
família.
Mas isso são histórias de uma
outra história que oportunamente contarei.
O que aqui interessa assinalar é
que não sou um admirador do Presidente José Eduardo dos Santos, nem tenho
dívidas para com ele para alem daquelas que, como cidadão angolano, reconheço e
que decorrem dos aspectos positivos do seu mandato.
E é por isso mesmo que tenho
dificuldade em aceitar de forma passiva os comentários que se vão fazendo, em
jornais ou televisões, na maior parte dos quais tratam o Presidente José
Eduardo de forma insolente, pouco respeitosa e revelando pouco conhecimento da
história e realidade angolanas.
Desde que foi noticiada a morte
do Presidente José Eduardo que vejo surgir de todos os lados artigos de
opinião, crónicas, editoriais onde se pinta uma imagem dantesca do mesmo.
Ditador, déspota, corrupto, etc. É um facto que Angola, como muitos outros países
produtores de petróleo, não escapou ao chamado “Dutch Desease” – com todas as
consequências negativas que daí resultam.
No caso particular de Angola, as
consequências foram ainda mais desastrosas pelos efeitos acumulados da guerra,
de uma economia enfraquecida por anos de politicas económicas centralizadoras,
em que o Estado era ao mesmo tempo o maior produtor, comercializador e
controlador… Estado esse que à data da independência se encontrava fragilizado
e inoperacional (o funcionamento do aparelho de estado dependia em grande parte
dos portugueses, que entretanto se tinham retirado de Angola) e cuja
operacionalidade levou muitos anos a repor.
É, pois, um facto que o “boom” do
petróleo não trouxe aos angolanos a prosperidade que todos esperavam. É um facto
que as práticas de corrupção e nepotismo atingiram níveis chocantes. É um facto
que tudo isso aconteceu na vigência dos seus mandatos do Presidente José
Eduardo dos Santos. É um facto que muitas das pessoas que rodeavam o
Presidente, familiares ou não, beneficiaram de tais práticas de corrupção.
Citando um artigo recente de
Jonuel Gonçalves (Jornal Publico – 22.07.2022) …” Foi um período de perto de
uma década crucial para compreender a formação da nova burguesia angolana.
Crucial no encaminhamento porque na prática não teve nada de diferente das
outras formações de classes ou grupos ou segmentos no resto do mundo. Como disse
Paul Krugman, numa palestra em Luanda, ‘isto raramente foi feito de mãos
limpas’. É um facto que oportunidades houve, em que toda esta situação poderia
ter sido revertida, ou pelo menos atenuada. Tal não aconteceu. Como dizia o meu
amigo Gerald Bender …’ MPLA never lost an oportunity to loose an oportunity’…”
É um facto que Angola viveu
praticamente em guerra desde a Independência até 2002. É um facto que Angola
sofreu invasões dos exércitos Sul Africano e Zairense. É um facto que,
sobretudo a seguir às eleições de 1992, a guerra resultou na destruição de
grandes infraestruturas produtivas e vias de comunicação. É um facto que as
negociações de Nova Iorque, que levaram à Independência da Namíbia, e a
subsequente libertação de Nelson Mandela foram consequência directa da derrota
da África do Sul em Angola, e dos esforços diplomáticos do Presidente José
Eduardo. É um facto que o Presidente José Eduardo afirmou com independência e
dignidade o nome de Angola na comunidade internacional. É um facto que, depois
da morte de Jonas Savimbi não se disparou mais um tiro de guerra em Angola. É
um facto que no mandato de José Eduardo dos Santos a pena de morte foi abolida
em Angola.
É um facto que quando ocorreu a
morte de Jonas Savimbi, a questão foi tratada com o máximo de discrição e
dignidade por parte do Presidente José Eduardo. Não foi permitida qualquer
manifestação pública, nem o Governo manifestou qualquer júbilo por tal facto –
afinal tratou-se de uma vitoria militar! Isto ao contrário do que diz um
comentador do jornal Expresso “…Depois da exibição pública da morte de Savimbi,
também comprou a UNITA e reforçou assim o poder do MPLA…”. É um facto que não
obstante as invasões estrangeiras, a guerra muitíssimo violenta e destrutiva
contra a UNITA em Angola nunca foi imposta a lei marcial.
É um facto que a paz que se
seguiu à morte de Jonas Savimbi, permitiu a total integração dos elementos da
UNITA quer nas forças armadas quer nos serviços públicos e na sociedade civil.
Quem não sabe que dezenas de generais e dirigentes da UNITA poderiam ter sido
mortos na parte final da guerra que culminou com a morte de Savimbi? Não há
memória em África de uma transição tão pacífica como esta. Será que esta
transição pacífica resultou da compra da UNITA pelo Presidente José Eduardo –
como diz o mesmo comentador, ou será que resultou de uma política deliberada e
implementada de forma consequente?
É um facto, como já disse, que o
aparelho de Estado em Angola se encontrava em frangalhos por alturas da
Independência. É preciso fazer notar que, em Angola, ao contrário de outros
territórios coloniais, os portugueses preenchiam toda a escala de postos de
trabalho – desde empregados de bar até professores universitários. Por isso
mesmo, quando os portugueses se retiraram houve o colapso da administração
pública e de muitas empresas e serviços.
Foi no mandato do Presidente José
Eduardo que a administração do Estado foi reposta em todo o território
nacional. Angola é um país com 1.246.700 km2. É obra repor a administração do
território num país com esta dimensão, e com a escassez de quadros que resultou
do processo colonial. É também e sobretudo por isso que Angola não é um Estado
falhado.
É um facto que em Angola foram
realizadas eleições em 1992, 2008, 2012 e 2017. Não foi seguramente responsabilidade
do Presidente José Eduardo a UNITA ter perdido as eleições em 1992 e ter
recusado o resultado das mesmas (resultado esse aceite pelas Nações Unidas). A
este propósito vale a pena mais uma vez citar o artigo de Jonuel Gonçalves no
Público …” Após Bicesse, José Eduardo e o seu partido venceram as primeiras
eleições democráticas muito ajudados pela campanha da UNITA, que recorreu a
símbolos militares num país cansado de guerra e revelou grande desconhecimento
das mudanças operadas na economia e sociedade angolanas naqueles 15 anos.
Nessas eleições, José Eduardo venceu na primeira volta, mas aceitou um acordo
de bastidores que lhe tirou a percentagem suficiente para ficar ligeiramente
abaixo dos 50% e, portanto, oferecer a segunda volta a Savimbi. Nem isso evitou
a segunda guerra civil…”
Mas foi responsabilidade do
Presidente José Eduardo o MPLA ter ganho as eleições em 2008, 2012 e 2017.
Haverá seguramente outros, mas são estes, em meu entender, os pontos marcantes
do mandato do Presidente José Eduardo. Isso não o absolve, ou melhor, não
desculpa os pecados e excessos que cometeu, mas dá-lhe direito ao
reconhecimento e ao respeito por aquilo que alcançou.
Algumas das pessoas que hoje
comentam o Presidente José Eduardo, nunca tiveram de exercer a coragem de
hipotecar os melhores anos da sua juventude para defender e lutar pela
liberdade da sua pátria, nunca experimentaram a angústia de viver num país em
guerra, a angústia de tomar decisões que poderiam ou não resultar na morte de
pessoas, nunca sentiram o peso da responsabilidade de ser o último a decidir…
Não foi por acaso que ao longo do
texto sempre usei a expressão Presidente José Eduardo dos Santos, e não
simplesmente José Eduardo. É por reconhecimento, por respeito!”
Mário Pizarro Lisboa, Julho de 2022