Artur Queiroz*, Luanda
O mês de Outubro de 1987 foi fundamental para a vitória de Angola na guerra contra o regime racista da África do Sul. Mas também foi crucial na frente diplomática. A diplomacia angolana conseguiu reatar negociações bilaterais com os EUA e surpreendeu com uma exigência: Wasnhington tem de colaborar no desmantelamento do regime de apartheid. Pretória perdia posições na frente militar e o regime de PW Botha ficou encurralado até capitular com os Acordos de Nova Iorque.
O Presidente José Eduardo dos Santos conseguiu o pleno: A independência da Namíbia, a retirada das tropas estrangeiras do Sul e Sudeste de Angola e a democratização da África do Sul. Após intensa actividade diplomática, Angola ganhou em toda a linha. Nos campos de batalha, as tropas de Pretória iam de derrota em derrota até à Batalha do Cuito Cuanavale, que marcou o fim de um regime que foi o mais grave crime que alguma vez foi cometido contra a Humanidade. No Triângulo do Tumpo, nasceu uma nova ordem democrática mundial.
Chester Crocker, no seu livro “High Noon in Southern Africa” faz revelações fundamentais para se compreender o génio diplomático do Presidente José Eduardo dos Santos e a importância das acções dos seus colaboradores directos nesta época: Pedro de Castro Van-Dúnem (Loy), Alexandre Rodrigues (Quito), Afonso Van-Dúnem (Mbinda), Manuel Pedro Pacavira, Venâncio de Moura e António dos Santos França (Ndalu).
Na sua obra, O secretário de Estado dos EUA fala do “jogo das escondidas” dos angolanos, mas acaba por reconhecer que em Julho de 1987, quando foram reatadas negociações bilaterais, os angolanos marcaram pontos.
Crocker recorda que a visita de Andrew Young e Jesse Jackson a Luanda, a convite do Presidente José Eduardo dos Santos, rendeu bons frutos a Angola porque apostou na surpresa. O Chefe de Estado convidou Reagan a visitar Luanda e “ir aos países da Linha da Frente para avaliar correctamente a situação na África Austral”.
O Presidente José Eduardo dos Santos nada deixou ao acaso. E se o convite a Reagan não fosse aceite, prontificava-se a ir a Washington explicar a situação. Ao mesmo tempo exigiu o descongelamento das relações bilaterais. A diplomacia norte-americana foi apanhada de surpresa. O Secretário de Estado Crocker reconhece no seu livro que no terreno “os combates da UNITA eram infrutíferos”.
Em finais de 1986, Manuel Pedro Pacavira recebeu instruções do Presidente da República para ir a Washington. O então embaixador de Angola em Havana cumpriu a missão e depois de vários contactos, Chester Crocker diz que “silenciosamente ele estabeleceu um canal com o meu adjunto, Chas Freeman”. A Administração Reagan percebeu que da parte do Governo de Angola havia flexibilidade e vontade de negociar.
A situação em 1987 foi relatada no livro de Chester Crocker como “de caos económico em Angola” devido à queda dos preços do petróleo. Mas militarmente as FAPLA estavam firmes nas frentes de batalha. Este comentário do antigo Secretário de Estado confirma a realidade: “Savimbi estava entalado entre a sua dependência da África do Sul e a superioridade convencional das FAPLA”.
Por isso, prossegue, “José Eduardo dos Santos recusou negociar com Savimbi mas reforçou o Programa de Perdão e Clemência”. Crocker resumiu assim a situação em Outubro de 1987: “A África do Sul está mais fraca e a região mais forte, ao lado de Angola”.
O regresso de Angola à mesa das negociações com os EUA, em 1987, foi marcado por mais um ataque fortíssimo do Presidente José Eduardo dos Santos: Na agenda foi colocado, em primeiro lugar, o fim do apartheid!
No terreno as FAPLA marchavam sobre Mavinga. Em Lusaka, na cimeira regional, o Presidente José Eduardo dos Santos anunciou que Angola ia propor um Acordo Quadro Global com a África do Sul, Cuba e a SWAPO, sob a égide da ONU. As grandes potências ficavam de fora.
No Triângulo do Tumpo as forças de Pretória foram derrotadas e nas margens pantanosas dos rios da região ficou enterrado o apartheid. Daí ao Acordo de Nova Iorque foi um pequeno passo. O edifício da paz estava concluído. Mas o Arquitecto da Paz ainda tinha mais obras para edificar a Pátria Angolana. Por isso ainda lhe sobrou tempo e clemência para assinar o Acordo de Bicesse com os órfãos do apartheid.
Outubro de 1987 foi um dos mais
importantes marcos no caminho da Paz e da Reconciliação Nacional
O Presidente da África do Sul, PW Botha, convocou para o dia 28 de Agosto de 1988 uma reunião classificada como ultra secreta para tomar decisões de Estado sobre a derrota das forças armadas de defesa e segurança no Triângulo do Tumpo.
Na reunião ultra secreta em
Pretória um dos pontos focados foi a perda de material de guerra como os
tanques Oliphant, de fabrico alemão. Estavam presentes os mais altos dirigentes
sul-africanos e tomaram uma decisão dolorosa: Acabar com o regime de apartheid
e acatar a Resolução 435 da ONU sobre a Independência da Namíbia.
O documento secreto ao qual tive acesso tem poucas palavras, mas são significativas.
A Acta Final é hoje revelada ao mundo com todos os detalhes.
Na reunião de alto nível estiveram presentes além do Presidente PW Botha, o ministro da Defesa, general Magnus Malan, o ministro das Relações Exteriores, Pik Rudolf Botha, o general Jannie Geldenhuys, o major general Neil Van Tonder e o major general Kat Liebenberg.
A agenda da reunião tinha quatro pontos: Fracasso na tomada do Cuito Cuanavale (número um), fracasso na tomada da aldeia do Tumpo (número dois), material de guerra capturado pelo inimigo (número três) e as baixas em combate (número quatro).
Uma correcção. A aldeia do Tumpo é na verdade a aldeia de Samaria que fica no alto de uma colina sobranceira à grande chana, a qual foi baptizada pelo General António José Maria (Zé Maria) por Triângulo do Tumpo porque naquela imensa planície correm os rios Tumpo, Dala e Cuanavale. (Hoje posso revelar que o documento secreto me foi revelado por este General das FAA. Já não é segredo. Ele até foi preso por ter conseguido arrancar a Acta da Derrota aos arquivos secretos do regime racista de Pretória).
O secretário da reunião escreveu que o Presidente da República (PW Botha), usando os seus poderes constitucionais decidiu “desmobilizar a 82ª Brigada e o 61º Batalhão Mecanizado, que foram formados para a Batalha do Tumpo”.
Mas o momento mais importante da reunião estava para vir. A acta refere taxativamente: “O ministro da Defesa e o general Geldenhuys assumem aqui a total responsabilidade da derrota”. Está escrito!
A acta da reunião ultra secreta revela outro aspecto dramático para o regime de apartheid, mas bom para a África Austral e o mundo civilizado: “Dadas as consequências da derrota no Cuito Cuanavale, o Governo da África do Sul foi obrigado a aceitar a Resolução 435 da ONU sobre a Independência da Namíbia”. PW Botha e os seus pares reconheceram naquele momento que a Batalha do Cuito Cuanavale os deixou de tal forma vulneráveis, que foram obrigados a abrir mão do país ocupado ilegalmente.
A acta da reunião datada de 28 de Agosto de 1988 (faz hoje 24 anos) e revela um detalhe fundamental para compreender o alcance político da vitória das FAPLA na Batalha do Cuito Cuanavale. O Presidente PW Botha, mais uma vez invocando os seus poderes constitucionais “delegou no Dr. Neil Barnard, Chefe da Inteligência Nacional, para preparar negociações com Nelson Mandela e providenciar a sua libertação”.
Os grandes chefes do regime de apartheid perceberam que a derrota no Triângulo do Tumpo era o fim do regime e tinham que agir rapidamente para não perderem tudo. Por isso, correram a abrir as portas da cadeia onde se encontrava Nelson Mandela.
Em Angola estavam combatentes do ANC, prontos para “explorar o sucesso” da derrota das forças de defesa e segurança da África do Sul na Batalha do Cuito Cuanavale.
A acta secreta entra, a seguir a este ponto, nas justificações para a derrota no Triângulo do Tumpo. Primeira justificação descrita no documento: “todos os ataques para desalojar as FAPLA do seu último reduto, fracassaram”. Mais uma justificação: “todos os ataques a Este do rio Cuito (Tumpo) também falharam. A partir daí, o Alto Comando das SADF convenceu-se de que só era possível destruir o inimigo introduzindo forças massivas o que ia implicar pesadas perdas de vidas sul-africanas. Politicamente isso era inaceitável”.
PW Botha e os seus generais foram forçados a reconhecer a derrota. Abílio Camalata Numa, Paulo Lukamba Gato e Demóstenes Chilingutila dizem que a Batalha do Cuito Cuanavale “está mal contada”. Que apresentem uma versão diferente desta que está escrita na acta secreta da reunião de 28 de Agosto de 1988, no gabinete do Presidente PW Botha.
Os assuntos tratados na reunião eram de tal forma melindrosos que PW Botha obrigou todos os presentes a assinar a acta. O documento foi de facto assinado em primeiro lugar pelo Presidente PW Botha, a seguir assinaram Magnus Malan, Pik Rudolf Botha, Jannie Geldenhuys, Neil Van Tonder e Kat Liebenberg.
Nada nem ninguém pode contar a Batalha do Cuito Cuanavale, melhor do que uma acta oficial, secreta, à qual tive acesso, com o respectivo anexo. Para se sentirem moralizados, os grandes chefes do apartheid dão a eles próprios um motivo de ânimo: “As três derrotas no Tumpo foram as únicas que a África do Sul sofreu na guerra em Angola”. Esqueceram o fracasso da “Operação Protéa” que bateu contra a parede na Cahama. E outras derrotas, literalmente de Cabinda ao Cunene.
O final da acta tem uma dimensão grotesca e mostra a situação do Presidente PW Botha: “Eu fui mal informado sobre a situação no Tumpo e por isso obrigo todos os presentes a assinarem a acta desta reunião”.
Além da acta, a reunião de 28 de Agosto de 1988 produziu uma directiva política que só por si confirma a estrondosa derrota das forças do apartheid no Triângulo do Tumpo. A reportagem do Jornal de Angola teve acesso ao documento que significa a liquidação do apartheid:
“Directiva Política Urgente para o Gabinete do Presidente. Directiva Política das SADF” É assim que se intitula o documento ao qual tive acesso e serve de base a esta reportagem. Contém várias decisões, ponto por ponto.
Primeiro ponto.
“O Tribunal Militar deliberou em relação às responsabilidades assumidas antes, durante e depois das operações militares ‘Hooper’ e ‘Packer’ na Região do Tumpo, expulsar a partir da data efectiva de 28 de Agosto de 1988, os oficiais Mike Muller, Gerhard Louw e Cassie Schoeman”.
Recordo que Mike Muller foi o comandante sul-africano que afirmou: “se tomo o Tumpo vou direito ao Cuito Cuanavale”. Foi derrotado.
Segundo ponto:
“Os seguintes oficiais foram despromovidos na Parada Militar e transferidos para o Quartel-General de Pretória: Jan Malan e Koos Lienbenberg”.
Terceiro ponto. “Origem e data. Tribunal Militar MC/302/5B. Data 28/8/88”.
Desta directiva política foram enviadas cópias para a Autoridade Controladora do Tribunal Militar Principal, Chefe do Exército, Chefe do Estado-Maior das Operações, Chefe da Força Aérea, General Cirurgião, Chefe do Estado Maior da Inteligência, General Capelão e Chefe do Estado Maior das Divisões. O documento é assinado por Magnus Malan.
No dia 28/8/88, após a reunião ultra secreta onde foi reconhecida a derrota em Angola, os chefes do apartheid arranjaram logo bodes expiatórios para o fracasso no Triângulo do Tumpo.
Um ano antes da reunião ultra secreta, no dia 28 de Agosto de 1987, o poderoso general Jannie Geldenhuys chamou Savimbi à sua presença e disse-lhe que precisava dos mísseis Stinger que o Presidente Reagan lhe tinha dado. Este episódio vem descrito com muitos pormenores no livro “Guerra em Angola” de autoria do analista militar sul-africano Helmoed Roemer Heitman. Ele revela que o general Geldenhuys chamou Savimbi “para actualizá-lo” e de seguida disse-lhe que precisava dos seus mísseis Stinger para proteger os canhões G5 na guerra de Angola.
O Presidente Reagan sabia que ao dar os mísseis a Savimbi estava a colocá-los nas mãos dos sul-africanos, mas assim não podia ser acusado de violar as sanções impostas pela comunidade internacional ao regime de apartheid. Claro que Savimbi obedeceu de imediato às ordens do seu general. Na página 43 do livro, está descrito o encontro entre ambos. Quem tiver dúvidas, leia o livro de Helmoed Roemer Heitman intitulado “Guerra em Angola”. Leiam esta parte:
“Não alcançámos os nossos objectivos em Angola porque um numeroso efectivo do exército sul-africano, numa composição três vezes superior às nossas forças, equipado com material de guerra sofisticado, veio em socorro das tropas da UNITA que já tinham entrado em desespero, face ao avanço das FAPLA, provocando o nosso retrocesso de forma ordeira, até ao Triângulo do Tumpo, onde montámos um sistema de defesa muito bem organizado”.
O líder que derrotou o regime racista de Pretória e construiu a Paz foi hoje sepultado. Vamos chorar muito por ele. Minha saudosa Avó dizia-me: Meu filho, atrás de nós virá quem nos honrará. Por fim deixo-vos para reflexão este provérbio umbundo: Okulila kweponde, aswelela anda l’ovava. Tradução livre: Quando morre o soberano, dispersa-se a sua gente. Estão a ver por que razão os votos se dispersaram? A tradução à letra é esta: Quando o bagre morre as lágrimas vão com a água.
*Jornalista
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