Na economia não há buracos negros. Se uns perdem, outros ganham na proporção inversa e a inflação não é exceção.
Miguel Viegas | AbrilAbril | opinião
A inflação está na ordem do dia. Na União Europeia e em Portugal, ouvem-se mais uma vez os burocratas de serviço, travestidos de peritos em ciência económica, a clamar por uma contenção salarial. O argumento falacioso assenta basicamente na guerra da Ucrânia e no seu caráter temporário. Mais cedo ou mais tarde, a coisa volta à normalidade, com a inflação nos 2% como manda o BCE, e, nos entretantos, os trabalhadores perdem mais uma boa fatia do seu rendimento.
Sucede que na economia, não há buracos negros. Se uns perdem, outros ganham na proporção inversa. E a inflação não é exceção. Do lado dos que ganham, temos as grandes empresas que beneficiam da alta de preços mantendo os custos de produção, e acumulando assim os tais lucros anormais de que se fala. Outro ganhador é o Estado, que beneficia com receitas fiscais acrescidas, designadamente a partir do IVA que incide sobre os preços inflacionados. Fala-se num acréscimo de 10 mil milhões de euros a mais relativamente ao que estava orçamentado. Este número estará um pouco acima dos dados da OCDE que atribuem um acréscimo de receita de 0,6% por cada ponto percentual de inflação acima do previsto. Mas a inflação (não compensada) beneficia igualmente o estado por via da dívida pública. Voltaremos a este ganho que é significativo num próximo artigo.
Os perdedores são, no fundamental, os trabalhadores e suas famílias. Mas mesmo deste lado, a inflação não atinge todas as famílias por igual. Como iremos ver, as médias tanto do lado da inflação como do lado do rendimento, escondem um padrão de desigualdade que não pode ser desvalorizado. Com base nos dados do INE, vamos decompor o cabaz de preços que serve de referência para o cálculo da inflação e verificar que nem todos os produtos evoluem da mesma maneira. Vamos ver depois que a composição do cabaz de consumo varia dos agregados mais ricos para os agregados mais pobres. Cruzando os dados, vamos verificar que a perda de poder de compra que decorre da inflação é mais pesada junto dos agregados mais pobres.
Neste primeiro quadro colocámos em evidência o peso relativo das três principais categorias de bens essenciais que mais pesam no orçamento das famílias. Como seria de esperar, os produtos alimentares e os custos de habitação representam uma parcela maior nas famílias do primeiro quintil, que são as mais pobres.1
Podemos igualmente ver, na última coluna, que a inflação não foi a mesma nas várias categorias de bens. Apesar de termos uma inflação média homóloga em agosto de 8,94%, os preços dos bens alimentares, que representam uma maior proporção da despesa dos agregados mais pobres, aumentou bastante mais, tal como os custos associados à habitação.
Com estes dados, usámos os valores da despesa dos agregados nos diferentes quintis e aplicámos os valores da inflação homóloga da Tabela 1 para calcular as perdas de rendimento em euros e depois calcular as perdas relativas de cada estrato. Só à conta daquelas três categorias de bens essenciais, as famílias mais pobres perdem cerca de 970 euros anuais. As famílias com maiores rendimentos perdem mais em valor absoluto, mas são menos penalizadas em termos relativos. Conforme pode ser visto no gráfico, as quebras de rendimento real em termos relativos são de 8,14% nas famílias do primeiro quartil. No lado oposto, verificamos que a quebra é de 6,04%.
Confirmam-se aqui três coisas. Em primeiro lugar, as perdas de rendimentos são significativas. Note-se que aqui apenas contabilizamos três categorias de bens. Associando as outras, as perdas são ainda maiores. Em segundo lugar, as perdas de rendimento causadas pela inflação afetam de forma mais severa as famílias mais pobres porque os bens essenciais são aqueles onde a subida de preços é maior. Em terceiro lugar, confirma-se que as medidas propostas pelo governo ficam muito aquém do necessário para compensar as perdas dos trabalhadores e das famílias. Três boas razões para participar nas manifestações da CGTP, em Lisboa e no Porto, no próximo dia 15 de outubro!
*O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)
Nota: 1. Os quintis são obtidos dividindo as famílias em cinco fatias iguais e ordenadas das mais pobres às mais ricas. Os primeiros 20% são os mais pobres, o segundo grupo de 20% são mais remediados, e assim até aos últimos 20% que são as famílias mais ricas
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