quinta-feira, 15 de setembro de 2022

VIVO BEM SEM A RAINHA DE INGLATERRA?

Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião

Uma autopromoção de um programa da rádio Observador na sexta-feira perguntava: "Como vamos viver sem a Rainha Isabel II?". Depois deixava um número de telefone a convidar os ouvintes a discutir tal putativa orfandade com os jornalistas José Manuel Fernandes e Helena Matos.

Esta pequena vaga do maremoto mediático que se seguiu ao falecimento, na véspera, da monarca britânica, com uma torrente de jornalistas, comentadores, historiadores e diplomatas portugueses a lançar ondas e ondas de relatos, comentários e textos sobre o tema, numa inundação asfixiante que se vai prolongar, pelo menos, até ao dia do funeral da monarca britânica (e para o qual, de resto, também contribuo), deixou-me perplexo.

A pergunta colocada pelo Observador pressupõe que eu, cidadão português, não-britânico, eleitor de uma República que gritou na versão original do seu hino "contra os bretões, marchar!, marchar!", devo sentir a falta da rainha Isabel II?

Que mecanismos criam esta expectativa de simpatia lusitana para com a mãe do agora Carlos III?

Porque se comportam tantos jornalistas portugueses como se fossem súbditos e devotos da monarquia inglesa?

Uma das vantagens dos pensadores políticos do século XIX é que muitos deles diziam claramente ao que vinham, com muita pouca malícia - os que queriam a revolução escreviam-no, preto no branco; os que procuravam manter o statu quo dos poderosos do costume também não enganavam ninguém.

A melhor explicação da utilidade política da monarquia britânica está num livro de 1867 intitulado The English Constitution de Walter Bagehot, editor-chefe da Economist, revista que, ainda hoje, em homenagem, mantém uma coluna com o seu nome.

Bagehot, que era um homem do establishment britânico, elitista e que menosprezava as capacidades "do homem rude" do povo, explicou nesse livro que a monarquia da rainha Victoria do seu tempo preenchia uma das vertentes de um conjunto duplo de instituições, uma "parte digna" ou teatral, outra "parte eficiente".

Enquanto o governo, a Câmara dos Comuns e outras instituições cumprem as "partes eficientes" da governação, a monarquia, com a sua imponência, gravidade, moralidade e influência, desempenha as "partes dignas".

Em resumo, Bagehot defende que a ideia de ter uma família no trono, com quem as pessoas se identificam é "uma ideia agradável", que permite "adocicar a política", reduzindo-lhe tensão. Por outro lado, como o monarca no Reino Unido é também o líder da Igreja de Inglaterra, "o Estado fortalece-se", dominando os crentes, também, pela fé.

Finalmente, como o monarca é o "líder da sociedade", é um "tema central" do interesse público, transforma-se numa "diversão" para as conversas e debates dos súbditos e, ao mesmo tempo, atua como um agente que "lidera a moral" social. É por isso que, no entender de Bagehot, essa pessoa, mais do que brilhante, tem de ser "fiável" - e tanto Victoria como Isabel foram totalmente fiáveis nos seus papéis de "mães da nação".

Os poderes reduzidos do monarca na "parte eficiente" do Estado inglês (tem apenas o direito a ser consultado, de encorajar e de alertar) são assim compensados por um domínio quase total da "parte digna", exacerbado em múltiplos cerimoniais cheios de pompa e circunstância que atuam como um "disfarce" (a expressão, como todas as que deixei entre aspas, é de Bagehot) para a atuação das partes eficientes da governação, que podem perturbar o país.

Em suma, a monarquia inglesa, se tirarmos conclusões das definições deste seu grande defensor, é um narcótico para adormecer "as ordens inferiores", um aditivo para robustecer as classes dominantes e um estabilizador para as tensões sociais. A democracia é, assim, relativizada, aparente e muitas vezes inconsequente.

Esta atração de tantos jornalistas portugueses pela monarquia inglesa, este encanto pela "ideia agradável" de ver uma família no trono, este sentimento de perda de uma "mãe da nação" (que não é da nossa nação) pressupõe uma disposição para a aceitação de um domínio aristocrático desse tipo para Portugal, de vontade de adoção de um sistema com "partes dignas" que sirva de "disfarce" para a impopularidade das "partes eficientes" da governação, de redução do poder popular (e mesmo da classe média) nas instituições da nossa democracia.

Esta cumplicidade com a monarquia britânica que tantos jornalistas portugueses proclamam, mesmo inconscientemente, é conivente com a ideia de retirar poder aos mais fracos para fortalecer o poder dos mais fortes.

Por mim vivo bem sem a rainha Isabel II, uma pessoa respeitável e com evidentes méritos, mas que foi peça de um mecanismo de perpetuação de privilégio da classe aristocrática o que, para mim, é inaceitável por ser a eternização de um sistema onde uma parte da humanidade, por direito de linhagem, explora outra parte da humanidade. Isso chama-se injustiça.

*Jornalista

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