Reportagem na favela do Chuvisco, maior colégio eleitoral do país, mostra como foi o primeiro turno para quem tem que decidir entre o ônibus para ir votar e alguma comida no prato. Abstenção de 20,95% foi a maior desde 1998
Talita Bedinelli na Sumaúma | Outras Palavras
Ana Mirtes da Silva Santos se espreme na beirada de um fogão velho de quatro bocas dentro de sua casa de madeira. Tenta se desviar de uma goteira. Aquele único cômodo, onde a sala é separada do quarto por um tapume sem porta, guarda sua vida e a de Samuel, seu filho de 10 anos. Há uma pia, uma mesa, um televisor, uma bicicleta, uma geladeira. Tem uma cama de solteiro onde ambos dormem, um cobertor xadrez que cobre a janela no lugar do vidro, algumas roupas. Sobre o chão de cimento, retalhos do que um dia foi um carpete, empapados pelos pingos que avançam pela telha furada. É possível sentir a água sob os pés. Ana chora ao contar que, no dia anterior, quando a chuva também não deu trégua, sua camiseta ficou encharcada sem que ela sequer pisasse na rua. Quando Ana chora, o choro é também o desabafo de muitas dores acumuladas. Desde que a pandemia fez rarear os bicos de faxina, houve dias em que ela e o filho almoçaram arroz com alface ou uma papa feita com fubá. Na ausência de comida para os dois, ela já escolheu alimentar o filho e dormir com fome. “O estômago rói por dentro”, diz.
#Publicado em português do Brasil
É terça-feira da semana que antecede as eleições mais importantes desde a redemocratização do Brasil. No domingo seguinte, o país decidiria nas urnas se o petista Luiz Inácio Lula da Silva e o extremista de direita Jair Bolsonaro se enfrentariam em um segundo turno acirrado. Ana Mirtes, que mora na favela do Chuvisco, o maior colégio eleitoral do país, e na cidade brasileira mais rica, não pôde escolher. A pobreza sequestrou dela o direito básico de eleger quem gostaria que liderasse o país.
Ana preferia o petista, mas não foi votar porque o dinheiro da condução que a levaria até a zona eleitoral faria falta no estômago. Duas horas após o início da votação, ela se viu no dilema de votar ou comer. Foi a mesma decisão de muitos de seus vizinhos, que contribuíram para que o nível de abstenção destas eleições fosse o maior desde 1998: 20,95% não compareceram às urnas.
Para quem vive a indignidade de não saber como vai se alimentar todos os dias, parece não haver tempo para se preocupar com quem vai gerir o país. Não assegurar o direito à alimentação é uma violação constitucional, mas nas vielas da comunidade da zona sul de São Paulo sobram histórias que expõem malabarismos na busca por comida.
As doações de cesta básica garantem o arroz, o feijão, o macarrão, a farinha, o óleo e o fubá. Mas só chegam 35 por mês para as 500 famílias, explica uma liderança comunitária da favela do Chuvisco, que promove um rodízio entre as famílias mais necessitadas. Para frutas e verduras, muitos recorrem à boa vontade de feirantes, que entregam os restos que sobraram após a hora da xepa. Proteína é preciso comprar. Geralmente é ovo ou salsicha, mais baratos.
A favela é o retrato de um Brasil
faminto, onde apenas 4 em cada 10 famílias conseguem ter acesso pleno à comida,
conforme dados da Rede Brasileira
de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan),
publicados
A insegurança alimentar voltou a piorar no país a partir de 2016, explica a pesquisadora da Rede Penssan, Rosana Salles Costa. Os cortes econômicos do governo de Michel Temer, o aumento do desemprego e a desestruturação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar, que monitorava e propunha políticas públicas para a área e foi destituído no primeiro dia de governo Bolsonaro, fizeram com que um Brasil fragilizado chegasse à pandemia. As políticas bolsonaristas, que retardaram a vacinação contra a covid-19, agudizaram a crise econômica. Criou-se o cenário perfeito para a ampliação da fome.
O tema voltou aos holofotes
nestas eleições. Bolsonaro substituiu o Bolsa Família pelo Auxílio Brasil, de
R$ 600 – que corre o risco de diminuir para R$ 405 no ano que vem, segundo a
previsão do Orçamento federal de 2023. E prometeu antecipar o pagamento deste
mês para antes do segundo turno, em um aceno aos eleitores mais pobres. Já Lula
discute incluir a proposta de Ciro Gomes, de uma renda básica de R$ 1.000, em
seu programa de Governo, em troca do apoio do pedetista. Mas Rosana, que é
também professora do Instituto de Nutrição da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), destaca que, para acabar com a fome, não basta apenas ter um
programa de transferência de renda. É preciso ter uma política de governo que
inclua, além da óbvia melhora econômica, o congelamento dos preços dos itens da
cesta básica, por exemplo, que apenas no último ano subiram entre 13,4% e
26,54% nas capitais brasileiras, segundo o Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Em setembro, Ana Mirtes recebeu
pela primeira vez os R$ 600 do Auxílio Brasil. “O dinheiro não dá para nada”,
diz. “Só o gás custa R$ 125. Eu uso um rabo quente para economizar e
fazer durar mais”, explica. Aponta então para uma resistência de chuveiro
pendurada sobre a pia, onde esquenta a água antes de colocar no fogão, para
acelerar o processo de cozimento. Uma gambiarra perigosa, que pode dizimar num
incêndio seu barraco e o de todos os vizinhos. Além da comida, ainda é preciso
comprar roupas, remédios, itens de higiene pessoal. Tudo isso
Em outra casa a algumas ruas de distância, Rafael Damasceno, de 27 anos, também desistiu de votar em 2 de outubro. “Eu pensei bem. Mas esse povo só promete, promete. Todo mundo só rouba”, afirmou. Durante a semana, ele chegou a cogitar comparecer às urnas, mas queria aproveitar o domingo de sol para conseguir vender balas no farol, um esforço prejudicado pela chuva incessante daquela semana. Perto da hora do almoço, entretanto, ele comemorava que seus bicos como entregador do iFood haviam rendido R$ 150. Com o dinheiro, ele comprou carne, finalmente, e batatas. Ficou em casa para almoçar com a mulher e os quatro filhos. Tinha a mistura garantida até quinta-feira, calculou. Mas, ainda assim, votar ficou de fora dos planos porque ele não tem qualquer esperança de que sua vida irá mudar com o resultados das urnas.
Na terça-feira antes da eleição, sua mulher, Ritiele Patriste, de 23 anos, abriu a geladeira e apontou para as prateleiras quase vazias. Na última delas, havia dois grandes chumaços de cenoura já escurecidas. Mais acima, uma garrafa com água e uma panela de pressão com um pouco de feijão cozido. Na porta, um pote de mostarda com banha e um único ovo, que havia sobrado do dia anterior.
Apesar de o armário ter alguns pacotes de feijão, açúcar, arroz, macarrão e óleo — de uma cesta básica recebida há alguns dias — para a mistura do almoço só havia aquele ovo para os seis integrantes da família. Quando soube que havia conseguido R$ 6 pelo iFood, Rafael decidiu comprar mais nove ovos para complementar a refeição.
Até antes da pandemia, ele trabalhava como jardineiro e a família vivia de forma mais estável. Mas foi demitido e passou a fazer parte da massa de 9,7 milhões de desempregados do país, de acordo com os últimos dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Sem dinheiro para comprar uma bicicleta para as entregas, ele precisa esperar a do tio — também entregador –– ficar livre para poder fazer os bicos. Por isso, não trabalha todos os dias e não sabe direito quando o dinheiro vai entrar. Até o mês passado, a família só conseguia se alimentar quando tinha doação de cesta básica. Frutas, verduras e legumes vinham de graça da pós-xepa da feira. Mas o dinheiro para complementar a alimentação precisava sair das entregas de Rafael ou da venda de balas no farol. “Quando não tem nada, a gente precisa pedir para os vizinhos. Junta latinha, revira lixo”, explica Ritiele.
Em setembro, ela também conseguiu receber a primeira parcela dos R$ 600 do Auxílio Brasil, “o que trouxe um pouco de melhora”. Mas o dinheiro não cobre as despesas com quatro crianças com idades entre 1 e 7 anos. Além do gás e das contas de água e de luz, é preciso comprar mais leite, fraldas, produtos de higiene e roupas. O que garante que seus filhos comam todos os dias com alguma qualidade é a escola. “Prefiro levar porque eles tomam café e almoçam lá. Chegam em casa e a gente só tem que dar uma coisinha.” Mas naquela semana chuvosa, em que as vielas se transformaram em pequenos riachos e foi preciso se equilibrar em pedaços de madeira para caminhar sem se molhar, as crianças tiveram que ficar em casa.
Não ter acesso a todas as refeições com frequência pode prejudicar o aporte de nutrientes fundamentais, como vitaminas, proteínas e minerais, que fazem o metabolismo funcionar. Falta ao corpo energia para as atividades do dia a dia, especialmente as braçais. O sistema imunológico enfraquece e fica mais suscetível a doenças infectocontagiosas.
A depender da gravidade e da quantidade de tempo que se passa fome, pode haver comprometimento de ossos e músculos, explica Inês Rugani, professora do Instituto de Nutrição da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Crianças têm uma camada extra de vulnerabilidade. A falta dos nutrientes essenciais pode desacelerar o crescimento. Se acontecer nos dois primeiros anos de vida, quando o sistema nervoso está em formação, pode haver prejuízos na capacidade cognitiva, levando a uma dificuldade maior de aprendizado e de interação com o mundo. A fome é, portanto, uma marca que será carregada por toda uma vida, ainda que no futuro haja comida em abundância.
Da rua da entrada da favela, no domingo da eleição, deixavam a casa de três cômodos as irmãs Camila, de 24 anos, Joyce Cristina, 18, e a mãe delas, Andrea Gomes de Souza, de 43. De banho recém-tomado e cabelos molhados, cruzaram a favela e seguiram em fila indiana por um caminho junto a um portão com filetes de madeira escorados. A cada trecho, precisavam decidir se passavam por baixo ou se pulavam o pedaço de pau. Um cálculo que tem que ser preciso, já que um tropeço poderia fazer com que os pés, calçados por chinelos de dedo, acabassem mergulhados na água misturada com esgoto que corre ao lado.
Era quase meio-dia e o grupo havia decidido votar. Começava ali uma caminhada de 50 minutos. Quase no final do percurso, Andrea desistiu. Acabara de descobrir que o colégio onde votou nos últimos anos, no meio do bairro nobre de Campo Belo, sucumbiu à especulação imobiliária. Virou um prédio. O site do Tribunal Superior Eleitoral apontava que sua nova seção estava a quilômetros de distância. Como Joyce ainda não tem título, sobrou Camila, que com a filha Ana Vitória, de 1 ano e 8 meses nos braços, conseguiu chegar à urna eletrônica em outro colégio mais à frente.
Camila tinha sido convencida pelo padrasto de que votar era importante, por isso tirou o título de eleitor neste ano. Apertaria o número 13, de Lula, mas não sabia que também teria que votar para dois deputados, senador e governador. Caminhava apenas com um pouco de bolacha de água e sal no estômago. Na macabra gincana da alimentação, há dias de sorte, como a tarde anterior, em que a família comprou bistecas depois de o cunhado conseguir dinheiro com a venda de fios de cobre. E há dias de azar absoluto, em que não há o que comer e o jeito é dormir à espera de uma manhã melhor.
“A fome dói. Dói a cabeça, dói o estômago. O que eu sinto é tristeza no coração”, diz ela. Desde o início da pandemia, e agora com a bebê pequena, tem sido difícil se virar com os bicos no supermercado ou como babá, como fazia antes. Por sorte, a filha conseguiu uma vaga na creche, onde faz todas as refeições, explica ela, no caminho que cruza o bairro rico onde vota. Um homem branco olha para Ana Vitória e pergunta, rindo: “Ela está pra adoção? Eu quero!”. A jovem mãe retruca, com raiva: “Vai me adotar também?”.
Camila deixou a seção de votação sem emoção. Achou a urna complicada, mas conseguiu confirmar seus votos. Dali, visitaria a sobrinha, que mora com o pai em outra favela e fazia aniversário naquele dia. Ao voltar para casa, não sabia o que teria para jantar.
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