segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Portugal | A INFLAÇÃO E A DÍVIDA PÚBLICA

O Estado, tão lesto em acudir ao grande capital, em vez de aproveitar as crescentes receitas fiscais associadas ao crescimento nominal dos preços, limita-se a distribuir umas esmolas.

Miguel Viegas | AbrilAbril | opinião

Já vimos em artigos anteriores que os efeitos da inflação são muito diferentes, havendo quem ganhe muito com a atual situação. As grandes empresas acumulam lucros fabulosos em função do crescimento das margens que decorre de um aumento superior nos preços de vendas face ao aumento dos custos. Basta ler a imprensa especializada onde são divulgados quase diariamente os resultados das principais empresas nacionais e estrangeiras. Para que uns ganhem, outros têm de perder. Os trabalhadores, pensionistas e restantes consumidores estão hoje confrontados com uma imensa perda de poder de compra dos seus rendimentos face ao crescimento galopantes da maioria dos bens essenciais. O Estado, tão lesto em acudir ao grande capital, em vez de aproveitar as crescentes receitas fiscais associadas ao crescimento nominal dos preços, limita-se a distribuir umas esmolas, preferindo subjugar o país à ditadura do défice, do euro e da União Europeia.

Existe, contudo, uma outra razão para o governo sorrir com esta inflação. Esta razão chama-se dívida pública. A dívida pública mede-se hoje em percentagem do PIB. A sua evolução depende de três fatores. Em primeiro lugar, o saldo primário das contas públicas (diferenças entre receitas e gastos, excluindo o pagamento de juros). Um saldo positivo diminui a dívida e vice-versa. Em segundo lugar temos o chamado «efeito bola de neve». Como a dívida é medida em percentagem do PIB, podemos ter uma dívida em valor a crescer, mas se o PIB crescer mais, a dívida em % do PIB pode baixar. Este efeito depende da diferença entre a taxa de crescimento nominal do PIB (que inclui a inflação) e a taxa de juro implícita da dívida. Finalmente, temos o efeito de stock que depende da gestão de ativos do Estado e de acertos estatísticos.

A Tabela 1 indica a contribuição das três componentes descritas para a evolução da dívida pública portuguesa. Podemos ver que o efeito «bola de neve» foi o principal responsável pela diminuição da dívida pública (em % do PIB) e prevê-se que assim continue em 2023. Somando os anos entre 2021 e 2023, podemos ver uma redução prevista da dívida de 12,1 pontos percentuais. Para esta redução a contribuição do efeito «bola de neve» é esmagadora, com 12,5 pontos percentuais (4,4+8,1). A contribuição do saldo primário é igualmente positiva, mas de menor dimensão (1,5) e o efeito de stock é negativo, fazendo aumentar a dívida em 1.81 pontos percentuais.

Este efeito «bola de neve» é tanto maior quanto maior for o diferencial da taxa de crescimento nominal com a taxa de juro da dívida. A taxa de juro implícita da dívida tem estado ligeiramente abaixo dos 2%, mas já está a subir e assim continuará no futuro.

Quanto ao crescimento nominal (crescimento real mais inflação), foi de 6,1% em 2021 e será de 11,11% em 2022, a confirmarem-se as previsões. Para 2023, apesar do crescimento dos juros, tudo indica que continuaremos a ter uma inflação elevada e logo um crescimento nominal muito acima da taxa de juro. Com esta conjuntura, que não poderá manter-se eternamente, o governo dispõe de uma ampla margem que poderia e poderá servir em 2023 para repor o poder de compra dos trabalhadores e pensionistas e investir nas infraestruturas e nos serviços públicos de que o país tanto carece.

Mas, para isso, Portugal precisa de outro governo!

*O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

Imagem: António Cotrim / EPA

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