quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Portugal | A investigação à pedofilia na igreja pode acabar bem?

Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião

Um batalhão de comentadores de várias tendências partidárias entreteve-se a semana passada a malhar no Presidente da República por causa de declarações trapalhonas acerca de casos de pedofilia na igreja católica. Todos já sabem a sequência, iniciada por uma tentativa de explicar que, afinal, o número de casos ("apenas 400" foi a ideia que passou) seria relativamente reduzido comparando com outros países. Marcelo acabou num pedido de desculpas às vítimas depois de tentar, pelo meio e com rotundo fracasso, emendar a perceção inicial.

Fizeram todas essas cabeças televisivas filinha para criticar Marcelo, alinharam todas na solidariedade para com as vítimas, louvaram todas o trabalho da Comissão Independente nomeada pela igreja católica para se autojulgar (e ninguém se perturbou por este processo implicar um juízo em causa própria), exigiram todas que se levassem as investigações do Ministério Público até ao fim, mas admitiram todas que, "obviamente", não estava em causa o posicionamento moral do Presidente nesta questão que "como toda a gente sabe", repetiram, é de condenação da pedofilia e de que as investigações "vão até ao fim", demonstrando assim que a inflação da polémica em torno da figura tinha, afinal, algo de artificial.

No domingo, o humorista Ricardo Araújo Pereira concebeu na TV um número hilariante sobre o caso político tuga da semana onde ridicularizou e, ao mesmo tempo, humanizou Marcelo. A rir, a irritação da turba mediática foi, mais uma vez, aplacada.

Araújo Pereira já fizera o mesmo na semana anterior, sobre outra sequência de contradições presidenciais: o tema dessa vez era o aviso telefónico a D. José Ornelas, presidente da Conferencia Episcopal, de que estaria a ser investigado por suposto encobrimento de casos de abuso sexual de menores.

Há aqui várias coisas laterais ao problema da pedofilia na igreja católica que me incomodam.

Uma é esta necessidade de todos estes "influencers" do regime político se atropelarem para surfar a primeira onda de uma qualquer maré de indignação efémera.

O mecanismo funcionou agora sobre Marcelo, mas repete-se todas as semanas e pode ir a temas de importância tão diferente como a guerra na Ucrânia ou a compra de automóveis na TAP: desde que haja um ceguinho para bater, todos estes supostos pensadores se alinham para dar o seu estalo estrepitoso e isso acaba, pela repetição intensiva durante dias e dias, num ato de crueldade moral... faz-me muita impressão ver bater em quem já está caído no chão.

Outra coisa que me preocupa é este funcionamento em rebanho alimentar uma perigosa emotividade que, em matérias como esta, não pode resultar bem.

Estamos a ver desenvolver-se o mesmo enredo do processo Casa Pia, a maior investigação a abusos sexuais de menores feita até agora neste país: a dada altura, impulsionada pela multidão mediática que gritava, uníssona, "cacem-nos, cacem-nos, cacem-nos!" quase toda a classe política apareceu em listas de suspeitos que circulavam pelos jornais e, ainda hoje, depois de acontecer muita coisa feia na política, na imprensa e na justiça, há quem pense que houve pedófilos políticos que não foram investigados e quem, como eu, acredite que, no final, acabaram por estar, entre os condenados, algumas pessoas inocentes.

Outra observação que me preocupa, decorrente do que atrás escrevi, é constatar esta necessidade da classe política interferir, direta ou indiretamente, num processo que exigiria uma rigorosa distância para garantir a credibilidade do resultado final. Esse seria o único caminho possível para ajudar seriamente as vítimas e resguardar o que for possível resguardar da imagem da igreja católica - e alguém tão experiente como Marcelo não ter percebido isso, por muitas boas intenções que tenha, é confrangedor.

Querer condenar todos os clérigos portugueses por pedofilia (ou pelo seu encobrimento) como questão de princípio é tão horroroso como tentar impedir o julgamento dos tribunais, manipular as investigações e a opinião pública, abafar casos que efetivamente tenham acontecido e escondê-los da comunicação social.

Se a degradação da credibilidade das investigações continuar a ser atacada pela excitação mediática e pelo combate político entre fações sectárias, a favor e contra igreja, a justiça às vítimas, quando ainda for possível aplicar, falhará e a pretendida regeneração moral da igreja católica portuguesa será, apenas, uma falácia.

*Jornalista

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