A neurociência mostra que o ser
humano não evoluiu para se autodestruir, mas é induzido pelas sociedades
patriarcais. Maturana propõe um reencontro com a cultura matrística, ou seja,
com modos de existir não hierárquicos e colaborativos
# Publicado em português do
Brasil
Antonio Sales Rios Neto* | Outras
Palavras
“Escrevemos frequentemente a
palavra Democracia.
No entanto, nunca é demais repetir que essa é uma palavra
cuja essência ainda dorme, imperturbada (…)
É uma palavra notável, cuja história ainda não foi escrita, eu suponho,
porque essa história ainda está para ser interpretada.
Ela é, de certa forma, a irmã caçula de outra palavra notável
e frequentemente usada, Natureza,
cuja história também está à espera de um escritor.”
Walt Whitman
Democracia precisa ser vivida, e
não defendida
Este é o primeiro de uma
coletânea de textos, contendo ideias encadeadas, que se propõem a oferecer
reflexões que possam nos auxiliar na difícil tarefa de investigar as prováveis
raízes da impossibilidade de realização, de uma forma mais espontânea, continuada
e não violenta, das muitas tentativas de governança democrática já
experimentadas pela humanidade. Ao mesmo tempo, o propósito desta coletânea é
também buscar uma compreensão ampliada acerca do acelerado e preocupante
fenômeno do declínio dos regimes democráticos na contemporaneidade e dos
possíveis desdobramentos dessa onda antidemocrática num futuro próximo.
A história já demonstrou que em
momentos como o atual, em que os autoritarismos estão recrudescendo e assumindo
o modo de fazer e de conduzir a política, a loucura humana sempre agudizou de
um modo insuportável e autodestrutivo. Mesmo assim, a humanidade, nas muitas
ocasiões em que se viu envolvida nesses momentos de impasse civilizatório,
conseguiu desviar-se da rota de autodestruição, reorganizar-se e abrir-se a
novas conformações políticas, acolhendo novas experiências democráticas, ainda
que sempre muito insuficientes, restritas e limitadas às condicionantes
impostas pela cosmovisão hegemônica de cada época histórica.
Estamos, hoje, vivendo a turbulência
de mais uma transição
de época histórica que, assim como as que ocorreram no passado, é
marcada pela sensação de profunda intranquilidade, descontinuidade,
desorientação, insegurança e vulnerabilidade diante dos acontecimentos em curso. A visão de mundo
tecnoeconomicista predominante na atualidade, que tem no poder do capitalismo
de plataforma sua expressão política mais forte, ainda deve prevalecer por
algum tempo nesse interregno histórico. Embora alguns analistas políticos
estejam inclinados a acreditar que um Estado revigorado, sob os auspícios de
uma espécie de iliberalismo high tech, guiará a nossa próxima fase
histórica, assim como o liberalismo industrial guiou os últimos 250 anos, há
muitos indícios que apontam que não é esta a perspectiva mais provável (e
desejável) para a humanidade.
As profundas desigualdades
sociais, os desarranjos ambientais em curso e a ebulição sociocultural, que vêm
se exacerbando desde o final dos anos 1960, dão alguns sinais de que a
cosmovisão que poderá emergir, já nas próximas décadas, tenderá a um novo
entendimento de realidade convergente com os aportes teóricos formulados ao
longo do século XX. Aprendemos por meio de Thomas Kuhn que, no embate dos
paradigmas e das interpretações do mundo, ciência e filosofia sempre caminharam
atreladas às cosmovisões, ora influenciando, ora sendo influenciadas. Entre
esses aportes mais recentes estão: relatividade (Einstein, 1905), incerteza
(Heisenberg, 1927), complementaridade (Bohr, 1928), acaso e necessidade (Monod,
1971), auto-organização (Atlan, 1972), Gaia (Lovelock, 1972); pensamento
complexo (Morin, 1973), autopoiese (Maturana e Varela, 1974), neguentropia (Prigogine,
1977), ordem implicada (Bohm, 1980), fractais (Mandelbrot, 1983), caos (Gleick,
1989; Lorenz, 1996), catástrofes (Thom, 1989), lógica fuzzy (Kosko,
1995), dentre outros (esta lista está longe de ser exaustiva). Como bem
constatou, por volta dos anos 1990, o Nobel em Química (1977), Ilya Prigogine,
“assistimos ao surgimento de uma ciência que não mais se limita a situações
simplificadas, idealizadas, mas nos põe diante da complexidade do mundo real”.
A lógica econômica rapinante dos
atuais agentes políticos – que existe desde antes de o homem inventar a
propriedade privada e o excedente de produção –, e o anacronismo institucional
que conduzem à anarquia geopolítica vigente, seja pelo lado do capitalismo
liberal crepuscular do Ocidente, seja do lado do capitalismo iliberal
ascendente da Ásia, ou ainda do capitalismo subserviente e reprimarizado dos
países periféricos espoliados do Sul Global, dada a sua incapacidade de
resposta às crescentes convulsões sociais e ambientais globais em curso,
cederão, pouco a pouco, espaço para novos atores sociais cuja visão de mundo
ampara-se na percepção de que o real está mais associado a atributos fluidos e
relacionais, como interdependência, pluralidade, alteridade, diversidade,
comunidade e diálogo.