sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Venezuela | JUAN GUAIDÓ: ASSIM TERMINA UM MANDATO FICTÍCIO

Na virada do ano, o parlamento paralelo da Venezuela destituiu seu “presidente”, mantido pelos EUA com dinheiro sequestrado – e incensado pela mídia ocidental. Mas “governo imaginário” continuará, apesar da autofagia na oposição

Rôney Rodrigues* | Outras Palavras | # Publicado em português do Brasil

Juan Guaidó, o autoproclamado presidente da Venezuela, foi tombado pela mesma oposição que o empossou como o mandachuva do país, cargo ocupado – de fato e pelo voto popular – por Nicolás Maduro desde 2013. O gabinete fictício do jovem engenheiro, portanto, chega ao fim após uma aventura de quatro anos: em votação online no crepúsculo de 2022, em 30/12, o Parlamento paralelo do país, formado por deputados opositores, decidiu destituí-lo do governo interino, alegando que “o que era temporário tornou-se perpétuo”, nas palavras de Juan Miguel Matheus, ex-deputado opositor. Na realidade, diante da retomada do diálogo entre o país caribenho e os Estados Unidos – e das eleições marcadas para o ano que vem –, Guaidó deixou de ser útil aos planos de ilhar o governo Maduro e provocar sua queda. Porém, o governo interino, um dos “experimentos mais extravagantes da história da diplomacia internacional”, como definiu o El País, segue de pé. Mais que isso: controla ativos bilionários do Estado venezuelano que estão congelados no exterior.

O corpo dessa Assembleia Nacional ilegítima formou-se dentro da institucionalidade, em 2015, quando a oposição venceu o chavismo, formando ampla maioria no Legislativo venezuelano. Há três anos, no entanto, os deputados opositores prorrogam seus poderes, cujos mandatos se encerrariam em 2020, quando um novo Parlamento foi eleito, sob boicote da oposição nas urnas. Hoje, ela é controlada por quatro grandes partidos de oposição: Primeira Justiça, Ação Democrática, Um Novo Tempo e Vontade Popular – este último integrado por Guaidó, único a votar contra sua destituição.

A oposição bem poderia alçar outro nome à “presidência”, mas decidiu liquidar de vez o cargo, apesar do clamor de Guaidó por “institucionalidade” acima de “nomes e interesses pessoais”, o que soa irônico vindo de um presidente autoproclamado. Hoje com 39 anos, ele se projetou no cenário político venezuelano em 2007 como uma das vozes da nova geração de líderes estudantis no país – que contaram com recursos e inteligência de think tanks estadunidenses – liderando protestos contra o governo Hugo Chávez. Logo foi apadrinhado por Leopoldo López, ex-prefeito de Chacao que encabeça a ala mais extremista da oposição, envolvido em conspirações golpistas e nos protestos violentos de 2014. Guaidó passou nove anos no Parlamento, cinco deles como deputado suplente (2011-2015) e quatro como titular. Foi presidente da Comissão de Controladoria em 2017. Era um político sem grande envergadura, mas ocupava a presidência da Assembleia Nacional em um momento chave: a reeleição de Maduro em 2018, logo contestada pela oposição e pelos Estados Unidos da América, apesar da presença de diversos observadores e missão técnica de especialistas internacionais, em um sistema eleitoral já descrito pelo ex-presidente estadunidense Jimmy Carter como o “melhor do mundo”.

Guaidó, então, usou uma desculpa esfarrapada: ele era o presidente da Assembleia Nacional, o funcionário público de maior escalão do país eleito de forma democrática e, diante de irregularidades nunca comprovadas nas urnas, tornava-se automaticamente o presidente da Venezuela – até, pelo menos, quando houvesse “eleições livres e justas”, como alegou na época. O objetivo era desgastar o governo Maduro diante de uma população acossada pela hiperinflação, estimular protesto e, assim, assumir Miraflores. O mote: haveria um governo legítimo e provisório que se insurgia contra a “ditadura chavista” e que poderia dialogar com o resto dos países. Logo, os Estados Unidos, a União Europeia e mais 50 nações reconheceram o opositor como presidente. Ativos venezuelanos no exterior foram congelados. Sanções econômicas, ampliadas brutalmente. Embaixadas “maduristas”, fechadas. Um plano simples e perfeito, mas que não contava com a resiliência do chavismo – e o entusiasmo que Guaidó gerou naqueles primeiros meses aos poucos foi se dissolvendo.

A derrocada do presidente que foi sem nunca ter sido já era comentada sob anonimato ao menos desde junho do ano passado. Embora não seja surpreendente, ela revela uma tempestade geopolítica perfeita aliada a uma oposição cada vez mais pulverizada, sem tutano para apresentar qualquer projeto para o país que não seja o ressentimento ao chavismo. Alguns pontos são essenciais para entender como a cabeça de Guaidó rolou pelas mãos de seus próprios aliados.

Uma liderança capenga. Parte da oposição sempre viu Guaidó como um político inexperiente, sem envergadura para tornar-se um líder popular, mas com a vantagem de ser facilmente manipulável. Outros o viam como um construtor de consensos, filho dileto da nova política. O fato é que ele aproveitou-se de um vazio de lideranças opositoras: caciques da velha e nova política pisavam em ovos, investigados por atos antidemocráticos no país. Fez-se, então, o presidente esquálido – alcunha venezuelana para se referir aos antichavistas. Porém, após quatro anos, sua imagem desgastou-se. E o respaldo internacional, que alicerçava sua presidência fictícia, diluiu-se. Além disso, sua mensagem sempre foi ambígua para a população venezuelana: dizia ser o presidente legítimo da Venezuela, mas queria disputar com Maduro o cargo que considerava usurpado.

Crise da oposição. A autofagia se instalou entre aqueles que ocupam cargos fundamentais dentro da estrutura do governo paralelo. As disputas internas se acentuaram e, sem instituições e poder locais para corroborá-lo, os venezuelanos passaram a ver o governo paralelo como um “Reino de Nárnia”. Além disso, com o projeto chavista abalado pela grave crise econômica que o país atravessa, os deputados opositores mostraram-se incapazes de articular setores descontentes do Judiciário e das Forças Armadas. Soma-se a isso uma geopolítica em transe, propícia a novos arranjos diplomáticos. Esse conjunto de fatores coloca a oposição numa encruzilhada: insistir numa estratégia que se mostrou infrutífera ou tentar recompor a direita venezuelana sob a perspectiva de retomar a perspectiva eleitoral, o que exige rifar seu “presidente interino”.

Disputa do eleitorado. Guaidó insiste que 60% da população o apoia, porém, pesquisa de intenção de voto realizada pela Universidade Católica Andrés Bello e pelo instituto Delphos, divulgada em dezembro pelo site El Pitazo, deu pistas sobre a autoidentificação política no país: 28,7% dos entrevistados se consideram chavistas; 32,9% opositores e 38,5% não se identifica com nenhuma das duas tendências. Em 2012, o chavismo contava com quase 60%. Mas a oposição também de desidratou, já que tinha 50% em 2017. Há ainda um outro dado: 26% manifestaram-se que seguramente votariam em primárias de oposição, processo para escolher um único candidato opositor. O que se observa, portanto, é uma corrida para capturar o voto indeciso, caso a oposição volte às vias democráticas, mas isso requer que a Assembleia paralela submeta-se às regras constitucionais em vez de sabotar os pleitos, como fez nos últimos anos.

Velhos antichavistas ressurgem. Enquanto o governo autoproclamado patina, conhecidas lideranças da oposição, até então no ostracismo, voltam à cena política. Maria Corina Machado e Henrique Caprilles estão entre eles, pregando uma oposição renovada, o diálogo com o governo, a “pacificação” do país e a via eleitoral através da realização de primárias entre os partidos opositores. Uma nova rodada de negociação entre o governo e a oposição foi aberta no México, com o objetivo de rever algumas sanções e liberar ativos para “atender as necessidades sociais vitais”. Esta oportunidade de diálogo é vista com otimismo, apesar do fracasso de tentativas anteriores.

Maduro revitalizado no cenário internacional e diálogo com os EUA. A derrota de neoliberais e ultradireitistas em diversos países-chave – como os Estados Unidos, o Brasil, o Chile e a Colômbia – abriu novos horizontes para o governo Maduro recompor suas alianças. Além disso, em busca de diplomacia real, a União Europeia deixou de reconhecer o governo interino e o Grupo de Lima, criado em 2017 para dar guarita à oposição venezuelana, naufragou. A fronteira com a Colômbia foi reaberta e o novo governo de Gustavo Petro defende a reintegração da Venezuela à Organização dos Estados Americanos (OEA). Finalmente, a retomada das relações bilaterais com o Brasil abre a espaço para que a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), nas quais Maduro aposta suas fichas para fortalecer as relações Sul-Sul, ganhem novo fôlego. O contexto da guerra da Ucrânia também é decisivo: Joseph Biden, presidente dos Estados Unidos, mostra-se pragmático e aberto ao diálogo com o governo Maduro, explorando a possibilidade de comprar gás e petróleo venezuelanos.

***

Mais que a perspectiva eleitoral da oposição chegar a Miraflores, o que está em jogo com o “governo provisório” é o controle dos principais ativos da Venezuela no exterior, congelados com as sanções impostas pelos Estados Unidos e outros países. Por isso, na mesma votação que destituiu Guaidó, a Assembleia Nacional paralela renovou seus plenos poderes sobre essa fortuna do Estado venezuelano, “administrada” pela oposição. Entre esses ativos, estão as contas da Citgo Petroleum Corp., subsidiaria da empresa estatal venezuelana PDVSA nos Estados Unidos, e 31 toneladas de ouro guardadas no Banco da Inglaterra. A quantidade exata é incerta, mas Jorge Rodríguez, presidente do Parlamento legítimo, afiança que os ativos embargados chegam a US$ 20 bilhões; quase R$ 103 bilhões.

A forma como a oposição gerencia esses recursos é nebulosa. Guaidó já afirmou que, entre 2020 e 2021, US$ 130 milhões foram gastos em ajudas humanitárias, “defesa da democracia”, com a Assembleia Nacional e com a gestão de ativos no exterior. O governo esquálido, nos últimos anos, tornou-se alvo de acusações de corrupção e uso indevido deste fundo, inclusive por alguns de seus próprios integrantes, acusam o Parlamento paralelo de corrupção e outros crimes.

O poder deste governo imaginário deriva basicamente pelo controle dessa riqueza, represada por Washington e seus aliados como forma de estrangular a economia venezuelana que, ao lado da dolarização informal e de um conjunto de medidas para cortejar o capital privado, produziu a crise que assola o país, assim como o êxodo de venezuelanos. Logo após os deputados ilegítimos eliminarem o cargo de Guaidó, a Casa Branca voltou a enfatizar que considera o governo Maduro ilegítimo, embora tenha iniciado diálogo com Miraflores, como já dito.

Sob anonimato, um alto funcionário da Casa Branca disse ao Washington Post que “se eles mudarem de nome ou qualquer outra coisa, ainda os chamaremos de governo interino, com o objetivo de fomentar conversas” com Maduro, que já acenou estar disposto a normalizar as relações com os EUA. A Chevron, corporação petroleira estadunidense, já poderá operar parcialmente no país, ao lado da PDVSA. É um primeiro (e polêmico) passo para cessar as sanções contra a Venezuela, tímidas, mas que escancaram para a oposição que tudo é business – e que, se for do interesse de seu principal aliado, o pragmatismo imperará.

O certo é que a Casa Branca não mediu bem a capacidade de resistência de Maduro. Guaidó tende a entrar na lata do lixo da história. E o chavismo, aos trancos e barrancos, mostra que não será tombado tão fácil, como muitos acreditavam.

Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS

Rôney Rodrigues - Editor de Outras Palavras. Formado em jornalismo pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), colaborou com veículos como Superinteressante, Caros Amigos, Brasil de Fato, Rede Brasil Atual e Revista Móbile. Assessorou movimentos sociais e entidades envolvidas na pauta urbana. Especializado na cobertura de temas relativos ao direito à cidade e em conflitos urbanos, mantém o blog outraspalavras.net/doispontos

Leia em Outras Palavras / Outras Mídias:

PERU: RELATOS DO MASSACRE DE AYACUCHO

CHILE: AS REGRAS DO NOVO PROCESSO CONSTITUINTE

Sem comentários:

Mais lidas da semana