sexta-feira, 12 de maio de 2023

Angola | Um Olhar Sobre a Sociedade Castrense – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

No final de 1974 Angola esvaía-se de pessoas e bens. Os portugueses faziam caixotes gigantescos e metiam lá dentro os electrodomésticos comprados a crédito, mobílias e até automóveis. Os serviços públicos definhavam. Unidades de saúde e escolas iam ficando sem profissionais. Até táxis e camiões “encostavam” por falta de motoristas. Nos musseques fechavam as cantinas, quase todas propriedade de agentes da polícia, taxistas e bufos da PIDE. 

Um mês depois da tomada de posse do Governo de Transição Daniel Chipenda e os soldados zairenses aquartelados nas delegações da FNLA cumpriam com sucesso a missão de levar a guerra às ruas de Luanda. O Norte de Angola estava ocupado pelas tropas de Mobutu e a UNITA serviu de biombo à invasão dos racistas de Pretória no Sul e Planalto Central. 

Os jovens angolanos que todos os anos eram incorporados nas tropas portuguesas no cumprimento do serviço militar obrigatório entraram em acção. Dois comandantes da guerrilha, Ingo e Tetembwa, assumiram a defesa dos musseques de Luanda. A meio do ano de 1975 começaram a chegar jovens que logo a seguir ao 25 de Abril de 1974 foram receber treino militar nos Centros de Instrução Revolucionária (CIR) do MPLA. Ajudaram a levar Angola à Independência. E garantiram a vitória na guerra pela soberania e a integridade territorial.

No auge dos ataques ao processo de descolonização, Angola tinha poucos quadros. Quase todos partiram nas pontes aéreas. Mas em contrapartida o Povo Angolano estava a ser defendido por jovens militares com elevada formação. Uns formados nas fileiras das tropas portuguesas onde estavam no mínimo três anos. Outros nos CIR. Nunca antes tinham pegado numa arma. Destes, muitos acabaram por morrer de armas na mão ou dedicaram as suas vidas à sociedade castrense até se reformarem.

A guerra não parou. Pelo contrário, os invasores e seus mandantes, entre os quais o estado terrorista mais perigoso do mundo (EUA), fizeram de Angola um imenso teatro de operações. Até meados dos anos 80, só formámos militares nas nossas escolas e nas academias estrangeiras como já acontecia desde o tempo da guerrilha.

Os nossos melhores comandantes guerrilheiros foram formados em Marrocos (inicialmente), na Argélia, Cuba, Jugoslávia e sobretudo nas academias soviéticas. Alguns desertaram da tropa portuguesa para se juntarem à guerrilha. Entre esses “desertores” estavam oficiais e sargentos. Uma unidade decisiva foi a Corvos ao Imbondeiro, comandada por Nelson Gaspar. A ela também se deve o êxito da libertação do Norte de Angola após a Independência Nacional. Até ao Acordo de Bicesse, tínhamos poucos quadros técnicos, As nossas escolas superiores não tinham capacidade para formar um número suficiente. Mas ao longo dos anos formámos excelentes militares. 

Em 2002, quando terminou a guerra, a sociedade castrense fazia a diferença. Quando eu entrava nas unidades militares de todo o país, ficava com a sensação de que estava noutro país. Impressionava sobretudo a capacidade de organização. Estranhamente esses quadros de excelência pouco foram aproveitados na reconstrução nacional. E hoje temos oficiais das Forças Armadas Angolanas com doutoramentos! Ainda que sejam todos doutores na capacidade de comando, organização, tactica e estratégia.

Nos últimos anos tenho sido ajudado por oficiais das FAA na compreensão dos fenómenos sociais e políticos em todo mundo. Um desses “assessores” disse-me que a Ucrânia vai ser massacrada porque o ocidente alargado está a mandar para lá grandes quantidades de armamento, mas é material de várias origens e técnicas. Isso pode ser eficaz numa guerra de guerrilha mas numa guerra convencional é o caminho para a derrota certa. Outros “assessores” explicam-me todos os dias o que significam as vitórias e os fracassos de Kiev. 

Hoje o Presidente João Lourenço falou a oficiais das FAA que participaram nas manobras militares no polígono Soba Matias, perto de Menongue. No seu discurso, o comandante-em-chefe disse que “as Forças Armadas jogam sempre um papel de destaque que nunca deve ser negligenciado”. Eis uma boa notícia. Porque é público e notório que os órgãos de soberania competentes estão a negligenciar a sociedade castrense. Tal como negligenciam a autoridade do estado. Vou dar um exemplo. 

Os terroristas da FLEC mataram três soldados das FAA e dois trabalhadores civis em Cabinda. O Ministério da Defesa nem uma palavra. A governadora de Cabinda, silêncio sepulcral. Os Media públicos ignoraram um ignóbil acto terrorista que tem o apoio do bispo de Cabinda e de, pelo menos, o deputado da UNITA Raul Tati. O próprio Ministério da Comunicação Social ignorou o hediondo crime. Isto para não falar da turma de Hélder Pita Grós. Adiante. O comandante-em-chefe fez esta declaração inquietante:

“Com o fim da Guerra Fria há bastantes anos, com a opção política da construção de um Estado democrático de Direito e da economia de mercado, Angola deve diversificar a sua cooperação e parcerias também no domínio da defesa e segurança, procurando igualmente formar oficiais e especialistas militares nas melhores escolas e academias militares do mundo, assim como adquirir equipamentos, armamento e técnica militar aí onde nos forem abertas as portas e garantido financiamento em condições favoráveis”.

O meu “assessor” para os assuntos militares, se for chamado a isso, pode explicar a sua excelência que armas não são sacos de arroz ou farinha, que podem ser comprados no mercado pelo melhor preço. Dotar as FAA de armamento com diversas origens é o caminho certo para a derrota. O Presidente João Lourenço, na sua entrevista à Voz da América já tinha tocado neste tema. Anunciou que as FAA vão adquirir armamento da OTAN (ou NATO). Alguém lhe deve ter dito que se o milho da União Europeia e dos EUA é igual ao da Federação Russa, com as armas é igual. O qual não.

Quanto à formação dos nossos militares, as escolas angolanas têm nível mundial. Não me parece que valha a pena recorrer a escolas estrangeiras a não ser em casos pontuais e específicos. Mas aplaudo entusiasticamente o comandante-em-chefe quando afirmou: “Palestras devem ser ministradas aos cadetes pelas testemunhas ainda vivas sobre sua participação nas grandes batalhas do Nto, de Kifangondo, do Ebo, da Cahama, de Cangamba, de Mavinga, do Cuito Cuanavale e outras não menos importantes”. Finalmente. A prata da casa é melhor do que a estrangeira. Podem crer!

* Jornalista

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