terça-feira, 30 de maio de 2023

Portugal | FALEMOS DE HABITAÇÃO SOCIAL - MAS A SÉRIO

Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião

Num momento de emergência habitacional, é preciso olhar para a (pouca) habitação pública existente e aprender com os muitos erros e as algumas, se houver, boas soluções. Sem nunca perder de vista o objetivo: justiça social.

eio uma notícia no Público sobre as rendas em atraso no município de Loures. Diz a respetiva Câmara que cerca de metade dos inquilinos de habitação social tem rendas em atraso, totalizando mais de 15 milhões de euros, e que vai dar uma última oportunidade para que os incumpridores paguem, ou passará para as ordens de despejo.

Trata-se, segundo a Câmara, de 1225 agregados faltosos, e de rendas entre 9,61 e 30 euros. Sendo o valor das rendas tão baixo, para se chegar a um passivo de 15 milhões, mesmo contando com as "indemnizações moratórias" (ou seja, os juros acumulados de penalização devido ao não pagamento), é necessário que haja muita renda por pagar. E haver muita renda por pagar só se explica de duas formas: houve quem não pagasse durante muito tempo e quem não cobrasse durante muito tempo. Sendo que se não cobrar não é decerto desculpa para não pagar, deixar o assunto arrastar-se durante anos - porque só podemos estar a falar de anos de incumprimento - é uma forma de desrespeito pelo que é de todos tão imperdoável como a de quem não cumpriu.

Este desrespeito é algo que, ao longo de décadas de reportagens sobre bairros sociais e a questão da habitação, sempre me confundiu: por que motivo parece ser tão difícil ao Estado e às autarquias gerir a habitação social? Porque é que não parece haver meio-termo entre o desleixo que permite passivos de milhões e as periódicas fúrias de despejo?

Veja-se o que diz a autarquia de Loures: dos agregados em incumprimento cerca de 30%, ou seja 800 famílias, nem sequer "apresentaram os papéis" - ou seja, não fizeram a necessária prova dos respetivos rendimentos "apesar de para isso terem sido alertadas várias vezes". Significa isto que a autarquia não sabe se aquelas pessoas continuam a ter direito à casa onde estão e se a renda que lhes é aplicada está de acordo com a sua capacidade financeira. Em última análise a autarquia, que diz ter cerca de mil famílias em lista de espera para uma habitação social - e nesse caso, com "papéis apresentados" e necessidade certificada pelos serviços - não saberá sequer quem está a ocupar aqueles fogos.

Não é um problema novo. No início do século, por exemplo, efetuei uma reportagem sobre o Bairro da Bela Vista, em Setúbal, quando se anunciava um programa de reabilitação do edificado orçado em 10 milhões de euros. Nesta reportagem, que foi publicada na Notícias Magazine e faz parte do livro Cidades sem nome - Crónicas da vida suburbana, um dos moradores da Bela Vista, de seu nome Francisco Sousa, propunha, perante situações como aquela que a Câmara de Loures denuncia, que a gestão do bairro passasse a ser efetuada, à imagem do bairro na Alemanha onde tinha vivido cinco anos, por quem ali residia.

Com o presidente do conselho diretivo da escola básica local, um dos professores e outros moradores e trabalhadores do bairro, Francisco Sousa tinha apresentado a ideia à autarquia. Na entrevista, elencou aquilo que qualificou como as "regras básicas" dessa gestão: a instituição de uma "renda mínima", que aquilatava em 25 euros (estamos a falar de 2003/2004, quando o ordenado mínimo não chegava aos 400 euros), eventual perdão das rendas em atraso e um recenseamento porta a porta. Para, explicava, "ver quem ocupou, quem vendeu a chave...". Para este homem, a solução para quem tivesse ocupado era "a rua", porque, considerava, "não se admite".

Não discuti com ele a dificuldade de compaginar a ideia da habitação social como forma de dar um teto decente a quem não o tem com a decisão de tirar teto a quem ocupa um sem seguir as normas (e que ao fazê-lo está tirar a vez a quem se candidatou de acordo com a lei). Não conheço quem tenha resposta boa para isso, e se não sabia encontrá-la na altura menos ainda a verei agora, quando mesmo a classe média alta se vê aflita para encontrar uma renda ou uma prestação de crédito que possa pagar - e portanto as casas de habitação pública se tornaram ainda mais preciosas.

Não sei igualmente se existe em Portugal algum bairro social no qual a gestão passe por moradores, ou também por moradores. À partida a ideia parecia-me interessante: há um apego ao lugar e um conhecimento das questões dos quais as estruturas camarárias ou estatais podem beneficiar.

Em todo o caso, não aconteceu na Bela Vista. Quando lá voltei em 2009 - o bairro tinha sido mais uma vez palco de uma intervenção policial musculada, com muitos diretos de telejornal - e procurei o morador que queria ajudar a geri-lo, encontrei-o "triste e desiludido". "A câmara dizia que tinha os seus gabinetes técnicos, e mandaram para aqui uns tipos todos engravatados fazer horário de expediente, sem conhecerem as pessoas", informou-me. "Percebi que se calhar ninguém está mesmo interessado em trabalhar a sério nestas zonas."

Não creio que seja totalmente assim - que ninguém esteja interessado em trabalhar a sério aquelas zonas -, mas o certo é que algo de tão fundamental para a coesão social como a habitação pública foi sido sempre ou quase sempre encarado como um fardo e um problema e não uma solução e uma vantagem, com o Estado a tentar despachar, assumindo milhões de passivo de rendas não cobradas, o seu parque habitacional para as autarquias e estas, mais uns milhões perdidos à frente, tentando livrar-se dele vendendo aos moradores por tuta-e-meia (como sucedeu por exemplo na Bela Vista).

Foi também por esse motivo que chegámos onde estamos, com um dos mais exíguos parques habitacionais públicos da Europa. Um erro imperdoável - parece que agora toda a gente descobriu isso - que ainda assim não leva a que se tenha encontrado uma forma eficaz e justa de gerir o que há.

Talvez investigando casos de sucesso, no país ou no estrangeiro, e aplicando o que deu resultado, não? Talvez estabelecendo valores de renda que sejam compatíveis com o rendimento dos locatários sem serem tão baixos que se tornem irrisórios e, paradoxalmente, desvalorizem as casas aos olhos de quem as ocupa. Talvez não permitindo que quem paga a renda se sinta idiota face ao vizinho que fica a dever anos a fio; talvez certificando que o rendimento obtido permite uma manutenção adequada, ao invés de servir de desculpa para deixar estragar. Talvez mudando todo um paradigma - esse que há décadas estigmatiza a habitação pública e os bairros que salvaram (porque salvaram) tanta gente da miséria. O que não pode mesmo ser é deixar como está. É que assim será muito difícil acreditar que o Estado pode ser capaz de resolver esta emergência.

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