terça-feira, 30 de maio de 2023

Portugal: "Vê Lá, Não Mates o Miúdo". Agentes da PSP que conspurcam a instituição?

 JOVEM ACUSA AGENTES DA PSP DE O TEREM TORTURADO NA ESQUADRA

Rubens Gabriel Prates entrou na esquadra do Martim Moniz, em Lisboa, por volta das 10 horas da manhã. Oito horas depois entrou no hospital com escoriações nos dois braços, dores agudas nas pernas e suspeita de fratura no braço esquerdo. O jovem de 18 anos acusa agentes da PSP de o terem torturado e apresentou queixa-crime no DIAP de Lisboa.

João Biscaia | Ricardo Cabral Fernandes | Setenta e Quatro

Não sabia do filho há horas, até que no Comando Metropolitano da PSP, em Moscavide, lhe disseram que tinha sido transportado de ambulância para um hospital em Lisboa. Passava das 19 horas daquela quinta-feira quando Karina de Paulo entrou nas urgências do Hospital de São José. Dirigiu-se de imediato ao atendimento e, enquanto esperava, olhou em redor e viu o filho a um canto, sentado numa cadeira de rodas e com um polícia de pé ao seu lado.

Algemado, Rubens Gabriel Prates tombava a cabeça sobre a mão direita, de olhos fechados, e enrolava com um dedo uma madeixa do seu cabelo encaracolado. A primeira intenção de Karina foi alcançá-lo, mas a presença de um agente fê-la parar num momento de dúvida. “Até ali ninguém me havia dado qualquer motivo para o meu filho estar na esquadra de Moscavide, então não sabia se podia ir falar com ele, se atrapalharia a situação dele.” Pediu desculpa e licença ao agente e agachou-se em frente ao filho de 18 anos.

Perguntou-lhe se estava bem e Rubens respondeu-lhe com um olhar vazio. Estava medicado: os médicos deram-lhe 10 miligramas de olanzapina e 5 miligramas de diazepam, um antipsicótico e um ansiolítico, respetivamente, refere a sua ficha de urgência. A mãe pôs-lhe a mão no peito, para lhe sentir a pulsação, e reparou que lhe faltava o colar com o crucifixo que trazia sempre consigo. 

Quando Rubens percebeu que tinha a mãe à sua frente, conta Karina, despertou momentaneamente do torpor e começou a balbuciar, nervoso: “mãe, não faça nada — eles foram lá a casa, eles vão-me matar, eles vão matar a senhora”, chorando depois. Ao ouvir isto, o agente que guardava o jovem brasileiro levou-o para uma sala, onde o deixou sozinho, mas Pedro, amigo de Karina e uma das duas pessoas que a acompanharam, dirigiu-se ao agente para pedir explicações. 

“Quando me aproximei para perguntar porque o estavam a esconder”, contou, “quase sacavam dos cassetetes”. Pedro reparou que os agentes pareciam agitados com a sua presença, de Karina e da outra testemunha, e as suas exigências em querer saber do estado de Rubens: “um deles começou a dizer-me que me afastasse, porque se sentia ameaçado; uma parvoíce”.

A outra pessoa que acompanhou Karina ao São José foi Lucinda (nome fictício por medo de represálias). Viu-lhe “as mãos arranhadas e inchadas”, alguns “hematomas e sinais de pancada” na cara, “um penso num pulso” e os “olhos muito vermelhos”. Mas não havia qualquer marca de dentadas. Karina, sabendo apenas o pouco que lhe haviam dito, começou a suspeitar que algo estava errado.

Afastaram-se dos polícias e Rubens recebeu alta hospitalar, mas o seu destino foi novamente Moscavide. Afinal, estava detido e teria de passar a noite nos calabouços da PSP até ser presente a um juiz.

Uma hora antes, quando foi à procura do filho no Comando Metropolitano da PSP, uma agente disse a Karina que o filho tinha saído dali de ambulância por se ter “automutilado”. “Não lhe posso dizer nada, mas a senhora ainda se vai rir”, ter-lhe-á dito a agente. “O seu filho mordeu-se”, explicou, fazendo um gesto de quem morde a própria mão. “Ela [a agente] estava desconfortável a falar comigo.” Karina ligou para o Hospital de Santa Maria e disseram-lhe que ninguém com o nome do filho tinha dado entrada. Restava o São José.

A história da mordida não batia certo e Karina permaneceu no São José à procura de respostas. Não as encontrou. Tentou falar com a psiquiatra que atendeu o filho, mas sem sucesso. Conseguiu falar com o urologista que lhe deu a alta, “mas ele fez-se de ignorante e nem me conseguia olhar nos olhos”. “Disse que não podia fazer juízos de valor sobre a natureza das lesões e que só trata as pessoas”, afirmou Karina. O médico ter-lhe-á dito que apenas verificou que Rubens “tinha escoriações nos braços e que tinha chegado com uma tala num deles, mas que não havia fratura”.

A ficha de urgência confirma que Rubens deu entrada no hospital às 18h48 com “escoriações em ambos os membros superiores”, queixas de dores nos membros inferiores e com uma tala no braço esquerdo, “colocada por bombeiros”. Um exame de raio-x confirmou que não havia fratura, mas no relatório é diagnosticada uma “dor aguda com trauma”.

Antes de ser visto por um médico da pequena cirurgia, Rubens foi observado por uma médica psiquiatra. A razão de o levarem ao hospital terá sido “agitação psicomotora com instabilidade emocional”. A ficha de urgência alega que Rubens se tornou agressivo dentro da cela em Moscavide e que se “automutilou com latas”, contrariando a versão de que se teria mordido. Na mesma ficha, os médicos relatam ter-lhe feito uma “limpeza e desinfeção de feridas”, dando-lhe alta às 20h48 de 17 de novembro de 2022. Rubens passou precisamente duas horas no hospital.

Sem conseguir obter respostas, Karina desistiu e, acompanhada por Pedro e Lucinda, regressou a casa. Ao chegarem, viram roupa espalhada pelo chão, plantas desenterradas dos vasos, loiça fora do sítio: toda a pequena casa, uma subcave em Arroios, próxima do Banco de Portugal, virada de pantanas. Só no dia seguinte, depois da audiência do filho em tribunal, é que descobriu o que tinha acontecido: Rubens tinha sido detido entre as 9h30 e as 10 horas, levado para a esquadra do Martim Moniz, supostamente agredido, forçado a autorizar uma busca a sua casa, levado para Moscavide e depois para o hospital, onde o encontrou. Para Karina, passou “um dia de inferno, um dia de surra”.

COMO O DIA COMEÇOU

Esperava-se um dia ameno em Lisboa. Era 17 de novembro de 2022, uma quinta-feira, e, apesar de se estar a meio do outono, o céu não tinha nuvens. Não havia muita movimentação no Poço do Borratém, uma espécie de largo entalado entre a Rua da Madalena e a Praça do Martim Moniz, de costas para o Beco dos Surradores, porta velha para a Mouraria e a colina do castelo. As descargas das encomendas para os restaurantes começaram mais tarde, as lojas sob as arcadas ainda estavam para abrir e a fila para entrar no elétrico 28 não chegava até ali. Eram 9h30.

Rubens Gabriel Prates chegou demasiado cedo ao Gabinete de Empreendedorismo Social da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior e enrolou um cigarro. Ia assistir a uma sessão de esclarecimento e ter uma entrevista de emprego, em grupo, reencaminhado pela Santa Casa da Misericórdia, para fazer uma formação como técnico de armazém para a Jerónimo Martins. Era às 10 horas, mas às 9h30 ele já estava à porta. O Gabinete confirmou a marcação ao Setenta e Quatro.

A meio do cigarro, o jovem reparou numa carrinha da PSP que passava em marcha lenta na via de sentido único. A carrinha parou à sua frente e os seis agentes (cinco homens e uma mulher) que iam dentro dela “ficaram muito tempo” a olhar para si. A porta lateral abriu-se, deslizando, e os agentes vieram na sua direção. Deixou cair o cigarro, encostou as costas à parede e levantou os braços, com o telemóvel numa das mãos. “Estás aqui a vender droga, né?”, ter-lhe-á perguntado um dos agentes. “Não, estou aqui para uma formação”, respondeu-lhe.

Quando deu por si já estava de cara no chão e mãos atrás das costas, a ser algemado. Disse que tinha com ele a carta com a convocatória para a formação e algumas tiras de haxixe, “para o meu consumo”. Mas ninguém o revistou nem lhe deu voz de detenção. Rubens não terá resistido, mas afirma ter sido pontapeado no corpo e pisoteado na cara, quando já estava imobilizado e algemado. O seu telemóvel caiu ao chão e um dos agentes tê-lo-á pisado e pontapeado para debaixo de um automóvel estacionado.

"Agarraram-me e meteram-me para dentro da carrinha”, afirmou Rubens. "Nas traseiras, atrás dos bancos, comecei a gritar, ‘o meu telemóvel, o meu telemóvel!’ e um dos agentes foi buscá-lo e guardou-o”. Assim que entraram na carrinha para seguir caminho, relatou, todos os agentes retiraram do peito as respetivas identificações, num ruído uníssono de velcro a ser arrancado. Um outro, o que mais perto dele estava, vestiu luvas.

Cinco dias depois, a 22 de novembro, a PSP desmantelou uma rede de tráfico de droga no bairro da Mouraria, tendo detido 13 pessoas, segundo a Lusa. Além de milhares de doses individuais de heroína, cocaína e haxixe, a PSP declarou ter apreendido mais de sete mil euros e dez armas proibidas. Apesar dos “contínuos esforços policiais e judiciais”, explicou a PSP à agência noticiosa, a Mouraria “dispõe de características geográficas e socialmente enraizadas que potencia ressurgimentos contínuos da venda de droga”. 

O Setenta e Quatro falou com moradores e comerciantes daquela zona que afirmaram que a Rua de São Pedro Mártir, que desemboca no Beco dos Surradores e vai dar à esquina onde Rubens esperava pela entrevista de emprego, é um dos principais pontos de compra e venda de droga na Mouraria. Nos dias que antecederam a operação policial, disseram os moradores e comerciantes, a vigilância (e passagem) da polícia aumentou naquela zona. 

Até aqui, o caso de Rubens é semelhante a um outro, que aconteceu na primeira quinzena de janeiro deste ano, na Damaia, em Lisboa. A polícia entrou no bairro na sequência de uma operação por causa de uma mota roubada e Marcos, jovem negro de 17 anos, estava à porta da casa de um amigo. Um agente tirou-lhe o telemóvel e, depois, com outros dois, atiraram-no ao chão. Foi detido e, em declarações à CNN Portugal, disse tê-lo sido por simplesmente estar no lugar errado à hora errada.

Foi no curto caminho entre o Poço do Borratém e a esquadra na Rua da Palma, que, além de continuarem as agressões, começaram os insultos. Encolhido a um canto, tentando perceber quem eram aqueles agentes, Rubens terá olhado para um polícia mais próximo de si e que, reparando, lhe terá dado um soco na cabeça, repreendendo-o: “Não olhes para mim, preto de merda”. Rubens afirma que nas horas seguintes esse agente foi o “mais excitado” em lhe bater, o mesmo que lhe chutou o telemóvel para longe, continuando no caminho até à esquadra a dizer coisas como: “estou aqui para acabar com a tua raça. Ouviste, preto de merda?”.

Assim que chegaram à esquadra, relembrou Rubens, insistiram na mesma pergunta: “O que é que estavas ali a fazer? Estavas a vender droga?”. Entre calduços, chapadas e empurrões, levaram-no para uma sala enquanto acediam à sua informação cadastral. Para Rubens, tanto as injúrias como as agressões se tornaram mais violentas assim que os agentes viram o seu cadastro no computador. Passou os primeiros quatro meses de 2022 em prisão preventiva, no Estabelecimento Prisional de Lisboa (EPL), por roubar três telemóveis e estava com pena suspensa por três anos e quatro meses. Foi preso quando tinha 17 anos e fez 18 numa cela.

O tom dos agentes mudou: “onde é que está a droga, preto do caralho?”. “Começaram a dizer que eu era traficante e a bater-me”, disse Rubens. Chapadas na cara, na nuca. Injúrias racistas. “Só vais sair daqui quando me arranjares 50 gramas, ouviste?”, terá dito um dos agentes. “Ou isso ou vais arranjar alguém que traga”, continuou. “É bom que te chibes, preto de merda”. Enquanto isso, disse Rubens, chegou um outro agente, com uns papéis na mão, que indagou calmamente: “mas já revistaram o gajo?”. 

Só aí deram com a droga que Rubens já havia informado ter em sua posse, afirmando ao Setenta e Quatro que a tinha “acabado de comprar na Praça da Figueira, para levar depois para casa, daí estar sem dinheiro comigo”. No auto de apreensão ficou registado que trazia consigo oito tiras de haxixe, cerca de 15,3 gramas antes de feitas as perícias — bem acima do limite legal de 5 gramas, definido como o equivalente ao consumo de dez doses diárias. A quantidade que possuía valia por volta de 100 euros e, ao não ter dinheiro consigo, não configura crime de tráfico de droga. Se o tom já havia mudado, foi o trato que piorou daí em diante.

Levaram-no para a casa-de-banho e ordenaram que se despisse. Rubens ficou completamente nu e os agentes repararam numa tatuagem que tem no flanco direito do tronco: um palhaço, uma versão do Joker com as onomatopeias “Ha! Ha! Ha!” em redor da figura. Um dos agentes sacou do seu telemóvel, digitou algo na barra de procura do Google e, com o ecrã em frente à cara, pediu-lhe que lesse em voz alta o que lá estava escrito. Leu: no Brasil, dentro do crime organizado, tatuar um palhaço pode significar que o tatuado já matou um polícia.

“Quando acabei de ler a frase começaram a bater-me com cassetetes nas costelas”, afirmou Rubens. “Encolhi-me com dores e caí no chão.” Bateram-lhe nas pernas, sobretudo nas coxas, lembrou. E retomaram as injúrias racistas: “começaram a dizer: ‘não tomas banho? Tens essa cor de merda, devias limpar essa cor de merda’”. No chão, Rubens reparou que alguém se aproximava, porque a violência e os insultos pararam subitamente por momentos.

Seria “um superior”, segundo ele, que terá olhado para aquela situação por um momento e retomado o seu caminho sem dizer nada. Tornaram a bater-lhe, afirma, e foi aí que começou a gritar. Diagnosticado com transtornos de ansiedade ainda em criança, Rubens diz que começou a ficar indisposto, a hiperventilar e a chorar. “Para de chorar e veste-te, cabrão”, terá ordenado um dos agentes.

Enquanto se vestia, continuaram as agressões: socos e cacetadas nas costelas. Voltou a cair. Rubens terá dito várias vezes que não conseguia respirar. Decidiram bater-lhe na cara enquanto ordenavam que se calasse, segundo Rubens, que se lembra de cuspir sangue e de ouvir um dos agentes dizer: “vê lá, não mates o miúdo”. Já vestido e novamente algemado, foi “arrastado para uma sala”: “estavam a bater-me muito nas costelas e nas pernas, mal conseguia andar”.

No caminho para a tal sala, se vacilava das pernas voltavam a bater-lhe, relembrou. Então, deixou tombar o corpo. “Doía-me tudo e só conseguia chorar de tristeza e de raiva”. Não se quis mexer mais. Arrastaram-no pelas algemas, sentaram-no direito numa cadeira e um agente ter-se-á sentado à sua beira: “obrigou-me a desbloquear o meu telemóvel e mandou-me mandar mensagem ao meu dealer a dizer que queria 50 ou 100 gramas”. Não o fez.

Um dos agentes, disse Rubens, começou depois a ver o seu perfil no Instagram, onde havia publicações alheias que incluíam legendas como “ACAB” e “1312” e pessoas a fumar canábis, a exibir armas e a ouvir drill, trap e gangsta rap. Passou depois para as suas próprias publicações: vídeos a fumar em casa, fotografias de canivetes e armas de ar comprimido.

Foi então que um outro agente lançou uma ideia para cima da mesa: “Se não tens a droga aqui, é porque está em casa”, afirmou um deles. Rubens respondeu que não havia droga em casa. “Vamos a tua casa e vamos levar os cães”, acrescentou um outro. “Não vamos, a minha mãe não está lá”, retorquiu Rubens. “Vais deixar-nos ir a tua casa”, disse um dos agentes.

Rubens continuou a recusar, mas os polícias insistiram e puseram-lhe um papel à frente para ele assinar, um termo de autorização de busca domiciliária, a que o Setenta e Quatro teve acesso. Já estava preenchido, bastava assinar. Se assinasse, Rubens autorizava os elementos daquela corporação a “passar busca domiciliária à minha residência, [...] com observância das formalidades legais”. “Vais connosco, não vai acontecer nada”, ter-lhe-á dito um dos agentes, apertando-lhe a nuca. Rubens disse que não assinava. Puxaram-lhe as orelhas com brusquidão.

“Já te disse que se me arranjares 50 gramas que te mando embora”, terá voltado a dizer um dos agentes. Perante a inação de Rubens e a recusa em assinar a autorização, colocaram-lhe as mãos estendidas em cima da mesa e começaram a bater-lhe com o cassetete em cada uma, à vez. “Não vais assinar, cabrão?”, dizia um dos agentes, segundo Rubens. “E dava-me com o cassetete nas mãos”, diz Rubens, reconstituindo os gestos das pancadas ao Setenta e Quatro. Repetia a pergunta, batia-lhe nas mãos e ria-se, segundo o jovem. Rubens, então, assinou o papel.

Antes de saírem da esquadra em direção àquela que era então a sua habitação, na rua António Pedro, a pouco mais de um quilómetro de distância da 4ª Esquadra da PSP, Rubens foi constituído arguido e assinou um termo de identidade e residência. De acordo com a informação horária impressa nos documentos, já passava das 12h30. Rubens confirma: “trouxeram-me até casa, algemado, era meio-dia e tal, e entraram com a minha chave”.

Acompanhado por três agentes, sem cães, Rubens desceu as escadas até ao apartamento na subcave. Foi mandado ficar no limiar entre a escadaria e a pequena cozinha que era também sala de estar e de jantar. “Vá, diz lá onde é que está a droga”, terá exigido um dos agentes a Rubens, algemado, a meio de duas chapadas. “Esse [agente] ficou comigo”, disse Rubens, “e os outros foram revistar a casa”. “O mais agitado, o que me agredia mais, andava de um lado para o outro a desarrumar tudo, a atirar coisas para o chão.” 

Abriram gavetas e armários, voltaram colchões e almofadas, desenterraram plantas de dentro dos próprios vasos e voltaram a lá metê-las, mas “nos vasos errados”, disse Karina com um suspiro de incredulidade. Pendurada na parede do quarto de Rubens estava uma máscara de palhaço que Rubens afirma usar no Halloween — ele, diz, gosta muito de palhaços.

Os agentes encontraram dentro de um armário um par de luvas de boxe, desporto que Karina pratica quando tem tempo. “Gostas de lutar, é?”, terá perguntado um dos agentes ao jovem brasileiro, enquanto colocava a luva direita na mão respetiva. “Começou a dar-me socos no estômago e nas costelas”, assegura Rubens. “Então não vais dizer onde está a droga?”, continuava o agente. “E dava-me. Mas nunca na cara”. 

O jovem brasileiro e os três agentes saíram pela mesma porta por onde entraram. Segundo Karina, alguns vizinhos queixaram-se do barulho ao senhorio e a mãe de Rubens teve de lhe explicar a situação, receosa de ser despejada. No retorno à esquadra de mãos vazias, os agentes terão regressado à abordagem tomada no início: insistiram para que Rubens ligasse aos seus amigos para pedir 50 gramas de haxixe. Entre chapadas, o agente que mais o agredia ter-lhe-á dito que, se estivesse no Brasil, iria à sua “favela exterminar todos os pretos como tu”.

O mesmo agente terá arrancado um colar de ouro que Rubens trazia ao pescoço, deixando um visível arranhão no peito. No colar pendiam dois pingentes: um crucifixo e uma medalha com as iniciais de Rubens e da sua namorada e a data em que começaram a namorar. O agente terá entortado a medalha e partido o crucifixo. “Estava a tentar fazer-me tortura mental”, explica o jovem. Funcionou: Rubens começou a chorar de frustração e de raiva, sem força para mais.

Um outro agente terá dito àquele para parar com aquilo, “que já estava a exagerar”, contou Rubens. Depois, “chegou um superior a dar ordens e com uns papéis para eu assinar”. Seria o auto de apreensão, o auto de constituição de arguido e o termo de identidade e residência. Rubens iria ser transferido para Moscavide, para os calabouços, onde passaria a noite detido esperando audiência em tribunal na manhã seguinte.

Rubens calcula que tenham passado mais de cinco horas entre a detenção e a entrada na carrinha da PSP que o levou para a esquadra em Moscavide. Ao sair da esquadra do Martim Moniz, “um dos agentes — o mesmo que proferira as injúrias de cunho discriminatório e que mais vezes o agredira”, segundo a queixa-crime apresentada na DIAP de Lisboa, terá apertado Rubens na nuca e segredado ao seu ouvido: “Puto, sabes que essas feridas todas, esses arranhões, foste tu que caíste, certo?”. E terá continuado, em tom de ameaça: “se eu souber que fizeste queixinhas, tu tem cuidado que eu sei onde moras, onde a tua namorada estuda e onde a tua mãe trabalha".

Metido de novo na carrinha, Rubens foi levado para Moscavide. Lá chegados, disse o jovem brasileiro, um dos agentes da esquadra de Moscavide, ao ver o estado em que chegava, perguntou-lhe se precisava de ir ao hospital, mas um dos agentes do Martim Moniz respondeu por ele e perguntou a Rubens: “não precisas, pois não?”. Com medo, o jovem disse que não. Foi metido numa cela e começou a chorar.

Rubens crê que a sua reação terá chamado a atenção dos agentes daquela esquadra, que foram verificar as suas lesões e terão afirmado que haveria que “relatar aquilo, não está nos papéis”. Tiraram fotografias às suas lesões, segundo o jovem. Um dos agentes de Moscavide terá tentado tranquilizar Rubens: “não te preocupes que ninguém te vai maltratar aqui”. Ficou na cela, dorido e a pedir para falar com a mãe. Tentou dizer aos agentes que o guardavam que os seus colegas da esquadra do Martim Moniz o tinham agredido. Voltou a pedir que telefonassem para a sua mãe. Foi ignorado, disseram-lhe que, segundo os agentes que o levaram, ele já tinha feito uma chamada.

Rubens encheu-se de raiva. “Tudo me doía, mas a raiva era maior”. Arrancou o lavatório de alumínio da parede da cela e começou a bater com ele nas paredes e a gritar “liguem à minha mãe” e “vou-me matar se não me tirarem daqui”. Gritou que tinha esquizofrenia, “para pararem de me ignorar”. Só aí ligaram à sua mãe, dizendo-lhe que o filho estava na esquadra detido. De acordo com os registos no telemóvel de Karina, a chamada chegou às 15h36, cerca de seis horas depois de Rubens ter sido apanhado no Poço do Borratém.

No seguimento, os agentes daquela esquadra terão chamado os bombeiros de Moscavide que levaram Rubens para o Hospital de São José. Do caminho até lá, Rubens lembra-se de um bombeiro que lhe tratou das feridas e lhe pôs uma tala no braço direito, tal como refere a ficha médica do São José. No hospital foi visto por três médicos, fizeram-lhe um raio-x, desinfetaram-lhe as feridas e, duas horas depois, regressou aos calabouços de Moscavide. Foi apresentado a um juiz no dia seguinte, sexta-feira.

Duas semanas depois de Rubens ser detido, o coletivo Vozes de Dentro, que se dedica a apoiar reclusos, convocou um protesto “contra a tortura policial” para 3 de dezembro, no Martim Moniz. “Este é o caso de outro espancamento e outra detenção que é apenas um exercício de poder violento, racista, xenófobo, patriarcal”, lê-se no comunicado do coletivo. E denunciam médicos coniventes com a violência e “com a tortura aplicada pela polícia, que não escrevem um relatório digno, nem explicam à mãe em que condição se encontra o seu filho espancado e novamente detido”.

O Setenta e Quatro questionou repetidas vezes a PSP, mas esta não deu qualquer resposta até à publicação deste artigo. Foi-lhe perguntado se tinha conhecimento de uma queixa-crime por abuso de autoridade, ofensa à integridade física, tortura e perseguição, entre outros crimes, levantada contra agentes desconhecidos da esquadra do Martim Moniz; que ações ia a direção nacional da PSP tomar relativamente à queixa e aos agentes envolvidos; se a PSP dispõe de câmaras de vigilância dentro das suas esquadras; se a esquadra do Martim Moniz foi alvo de mais queixas por violência, abuso de autoridade, ofensa à integridade física, intimidação, coação, entre outros, contra agentes dessa esquadra; e, por fim, se tomou, nos últimos cinco anos, medidas disciplinares graves contra agentes da esquadra do Martim Moniz.

“Os casos de tortura nas esquadras da grande Lisboa são conhecidos por todos: autoridades competentes, nas ruas, nos bairros”, disse ao Setenta e Quatro Lúcia Gomes. “Frequentemente há targeting a determinadas pessoas e, sobretudo, quando se tratam de comunidades racializadas acantonadas nos locais a que a lei chama de Zonas Urbanas Sensíveis”, acrescentou a advogada com experiência em casos de violência policial. 

A advogada chega inclusive a dar como exemplo a esquadra da PSP do Bairro Alto, em Lisboa. “Histórias da esquadra do Bairro Alto com espancamentos com toalhas molhadas para não deixar marca, as sucessivas operações na estação do Rossio em que nenhum branco é encostado à parede e é a melanina ou o sotaque que ditam suspeições, as intervenções durante a pandemia e a estratégia de sempre: acusar as vítimas por resistência e coação, falsificando autos, e perpetuando esta prática”, denunciou. 

Em 2020, o Comité Anti-Tortura (CPT) do Conselho da Europa recomendou às autoridades portuguesas que adotassem medidas firmes para prevenir violência policial e para que as denúncias fossem investigadas de forma eficaz, relatou na altura a Rádio Renascença. A delegação do Comité disse ter recebido um número considerável de “alegações credíveis de maus-tratos”, com estas a consistirem sobretudo em agressões com chapadas, socos e pontapés no corpo e na cabeça, aquando da detenção e durante a permanência nas esquadras. “O CPT conclui que os casos de maus-tratos pela polícia não são raros, não sendo apenas o resultado de alguns polícias incumpridores das regras e limites a que estão sujeitos na sua atividade”, lê-se na notícia.

A recomendação parece ter sido acolhida pelas autoridades. Um ano depois, em 2021, o Ministério Público instaurou 334 inquéritos-crime por violência policial, mais 57% que em 2020, escreveu o Diário de Notícias. Não se sabe, no entanto, no que deram.

A violência policial em Portugal foi ainda destacada no relatório anual de países sobre práticas de direitos humanos do Departamento de Estado dos Estados Unidos. “Houve relatos credíveis de uso excessivo de força pela polícia e de maus-tratos e outras formas de abuso de prisioneiros por guardas prisionais", lê-se no documento. Com base em dados da Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) de 2021, o relatório avança que houve 1.174 denúncias de maus-tratos e abusos por polícias e guardas prisionais, o mais elevado desde 2012. Destas, 565 foram contra agentes da PSP e 353 contra militares da GNR.

OS DIAS SEGUINTES

Na manhã seguinte, Rubens foi ouvido em tribunal e saiu em liberdade, voltando para casa. Só aí a sua mãe soube o que tinha acontecido no dia anterior. Houve duas preocupações imediatas: requisitar quaisquer documentos clínicos que ajudassem a esclarecer o estado em que o filho estava quando deu entrada no hospital e a entrevista de emprego no Gabinete de Empreendedorismo Social (GES) da junta de freguesia de Santa Maria Maior à qual Rubens havia faltado.

Rubens conseguiu justificar a falta e acabou por fazer a formação para operador de armazém, não tendo sido, todavia, chamado para trabalhar. A entrevista e a formação eram passos essenciais no seu processo de reintegração social depois de ter estado quatro meses no Estabelecimento Prisional de Lisboa por roubar três telemóveis. Estava com pena suspensa por três anos e quatro meses.

Onze meses antes da quinta-feira em que foi detido por agentes da esquadra do Martim Moniz, Rubens foi apanhado na Calçada da Estrela em flagrante delito, na madrugada de 4 de janeiro, com três telemóveis roubados. Tinha 17 anos, estava sozinho em Portugal e “tinha de fazer pela vida, não sabia o que fazer”, disse. Andava revoltado e a “abusar do álcool e da ganza”, não estava medicado, mas essa situação não atenuou a postura do juiz Carlos Alexandre em tribunal: ordenou que se calasse e decretou-lhe prisão preventiva pelo roubo dos telemóveis. Dois dias depois, Rubens entrou na prisão, saindo em abril do ano passado. Teve um bom comportamento nos meses em que esteve no EPL e, já em liberdade, estava a tentar endireitar a sua vida quando foi detido pela PSP.

“Os juízes têm medo que, não prendendo, isso possa ser usado pela comunicação social para finalidades desagradáveis em relação ao Estado. Além disso, as prisões preventivas têm a ver com a ansiedade dos magistrados de serem tudo situações muito excecionais, tudo situações de grande alarme social, tudo situações de urgência”, disse ao Setenta e Quatro António Pedro Dores, sociólogo e professor universitário. O ex-ativista dos direitos humanos nas prisões garante que, até do ponto de vista da lei, “é fortemente desaconselhável que pessoas até aos 25 anos estejam presas, muito menos preventivamente”. Para mais quando foram diagnosticadas com ansiedade, depressão e hiperatividade, como foi o caso de Rubens.

O que aconteceu com Rubens, continua, é “inconsistente com as recomendações”. “Existem recomendações, que não são lei mas meras recomendações, mas também existe jurisprudência que tem sido favorável a não se meter crianças na cadeia, por razões várias. Uma delas é a de sofrerem mais que outras pessoas”, explicou. Principalmente quando “o Estabelecimento Prisional de Lisboa é uma prisão preventiva e é das com mais fama de violência”.

Os recontos de Rubens guiam-se pelas lembranças amargas de dias especiais: “passei três aniversários institucionalizado, dos 13 aos 15 anos”. Desde cedo que o jovem brasileiro foi tido como “problemático” e colocado em instituições de acolhimento. Passou pela Casa Jovem Tabor, pela Casa Pia da Lourinhã e esteve quase para ir para a “prisão-escola” de Leiria. Mas a mãe lembra-se de um outro Rubens, aquele que chegou a Portugal de mão dada consigo e que entrou no 1º ano a já saber ler e escrever.

“Paguei escola privada no Brasil para que ele tivesse uma oportunidade”, afirmou Karina. Rubens fez amizades, integrou-se bem no novo país, ao início. Tinha seis anos. Cedo, todavia, começou o bullying violento e as ofensas, não poucas vezes racistas. “Lembro de ouvir uma criança, da idade dele, dizer para ele: ‘Rubens, a tua mãe é uma piranha’”. Começou a chegar a casa com histórias: batiam-lhe, isolavam-no, diziam-lhe que não podia ser amigo dos meninos brancos. Karina traça aí o início de uma história de discriminação e revolta que culmina com a prisão de Rubens naquela madrugada fria de janeiro.

Deixou de se sentir integrado na escola e, aos 12, 13 anos, começou a faltar às aulas para ficar na rua com os rapazes mais velhos da sua zona, muitos deles imigrantes, a maioria negros, brasileiros, angolanos e cabo-verdianos. Era aí que se sentia acolhido. Também foi aí que começou a fumar: “parávamos perto de uma boca”.

As faltas à escola chamaram a atenção dos serviços sociais, nomeadamente da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ). Mãe solteira, Karina trabalhava o dia inteiro, às vezes todos os dias da semana, a tomar conta de pessoas idosas e não conseguia acompanhar o filho como desejava. No fundo, teve de tomar uma decisão: conseguir dinheiro para se sustentar a si e a Rubens ou estar presente mas sem dinheiro. Ainda hoje se lembra dos contactos que teve com os serviços sociais: “não ofereciam ajuda, não perguntavam o que me faltava”. “Entraram em minha casa, revistaram tudo e abriram o frigorífico, sem sequer perguntaram se podiam ajudar”, recorda. Rubens foi-lhe tirado.

Foi levado para o Centro Jovem Tabor, em Palmela, à espera de uma vaga na Casa Pia e em “regime fechado”. No seu aniversário decidiu fugir com mais dois rapazes. Chegou a Cascais, onde vivia com a mãe, mas deixou-se “andar fugido”. A mãe deu-o como desaparecido às autoridades, mas foi ela que o encontrou. Mais tarde, no mesmo dia, terá sido interpelado por agentes da GNR que andavam à sua procura. Passou a noite na esquadra e foi devolvido à instituição, de onde voltou a fugir algum tempo depois, só para voltar a ser apanhado, novamente pela GNR.

Daí foi finalmente para a Casa Pia da Lourinhã, onde as condições eram melhores. “Podia estudar e davam-me uma semanada de sete euros e meio e se eu precisasse levavam-me ao hospital”, recordou. “Mas nunca consegui estar tranquilo, sempre fui problemático.” Apesar de sentir que havia melhores condições que em Palmela, tentou fugir duas vezes. Foi nessa altura que o pai biológico, em Belo Horizonte, no Brasil, pediu a guarda do filho. O tribunal de Cascais acedeu. Ficou lá quase dois anos.

Em 2016, o antropólogo Anton Peter Zoettl publicou um estudo no qual encontrou “um grande número de relatos de abuso de força por parte da polícia” contra jovens racializados, imigrantes e/ou economicamente desfavorecidos. O investigador da Universidade do Minho entrevistou 35 adolescentes, rapazes e raparigas, entre os 13 e os 20 anos, de um centro de detenção juvenil em Lisboa e a maioria falou-lhe de detenções, interrogatórios e revistas regulares, aleatórias e sem razão aparente. Todos os jovens entrevistados por Zoettl tinham um histórico de pobreza, imigração, abandono escolar e/ou detenção em prisões ou centros de correcção juvenil.

Grande parte das visitas à esquadra incluía violência física e psicológica, desde chapadas e pontapés a “ordens para se despirem completamente em frente a guardas e outros detidos”, ou o uso injustificado de algemas e insultos e ameaças. Para Zoettl, essa violência é aplicada “como ‘técnica’ de investigação policial”, “forma de fazer os jovens respeitar e submeter-se à autoridade policial”, como “medida ‘educativa’” e, por fim, “como um fim em si mesma”. Esses abusos eram usados sistematicamente como castigo extrajudicial por parte de agentes da polícia, concluiu o antropólogo.

Depois de uma temporada no Brasil, Rubens regressou a Lisboa já com 17 anos e a mãe vivia agora com um companheiro de nacionalidade alemã. Karina havia passado algum tempo em Frankfurt, onde aprendeu alemão e tirou uma formação de auxiliar de cuidados geriátricos, área em que trabalhava. Entretanto, voltou para Portugal. Rubens sentia-se a mais. As desavenças com a mãe agudizaram-se. O jovem fugiu, “ficou três ou quatro dias” fora de casa, e quando voltou os pertences da mãe já lá não estavam.

Karina voltara para Frankfurt. Deixava o apartamento a Rubens — com seis meses de renda paga adiantadamente — e uma mensagem: “fui para a Alemanha, faz-te à vida”. Ficaram muito tempo sem falar, até à altura das festas. Karina e o companheiro insistiram que Rubens passasse o Natal com eles, mas Rubens passou essa semana sozinho, “no Terreiro do Paço, com uma placa de ganza e garrafas de uísque”.

Alguns dias depois, Karina recebeu uma mensagem: “mãe, estou na esquadra”. Rubens roubava telemóveis para os vender para peças em lojas da baixa de Lisboa que não perguntavam de onde vinham os aparelhos. Dormiu uma noite na esquadra, a noite seguinte nos calabouços não sabe de onde. Não ouviu a sentença e quando o meteram de novo na carrinha que o havia trazido até ao tribunal não lhe disseram que ia preso.

Entrou no Estabelecimento Prisional de Lisboa, foi apadrinhado por um recluso mais velho e inicialmente recusou-se a tomar a medicação que lhe davam, pois não sabia o que estaria a ingerir. Acabou por tomá-la, coercivamente e todos os dias: “entraram três guardas na cela e abriram-me a boca”. Eram seis comprimidos por dia. “Passava o tempo a dormir”: depois do pequeno-almoço, depois do almoço e depois do jantar. Em tempos de pandemia, tinha dez minutos de pátio — ou menos, conforme a vontade dos guardas — mas muitas vezes escolhia não ir. Tomava a medicação, encostava-se e dormia.

“É comum darem medicação aos presos, para os porem zombies. Estamos a falar de psicotrópicos, medicação para doentes mentais. Uma das maneiras de os presos tentarem sair da tensão de estarem presos é dizerem que estão doentes, é sentirem qualquer coisa”, explicou António Pedro Dores. “A maneira mais prática para resolver o problema é dar-lhes uma coisa qualquer com que se entretenham e fiquem ali paralisados durante um tempo. É isso que eles [serviços prisionais] fazem de forma sistemática e organizada.”

Karina percebia a mudança na voz de Rubens quando podia falar com ele ao telefone. “Acordava à hora do lanche”, descreve Rubens, “lia a minha Bíblia e dormia”. “Às seis, sete horas eles ligavam a água quente, tomava banho”, depois jantava, tomava os comprimidos e “meia hora depois já estava a dormir outra vez”. Foi a sua rotina durante as primeiras semanas.

Depois passou a tomar medicação apenas quando a psicóloga indicava, mas outros reclusos eram obrigados. “Vi alguns serem amarrados para lhes darem injeções de largactil, que é um tranquilizante”, disse ao Setenta e Quatro. “Rapazes que já lá estavam há mais tempo diziam sobre outro: ‘se visses como ele era antes”, contou. “E dava para ver.” Reconheceu, inclusive, muitos antigos colegas da Casa Jovem Tabor e da Casa Pia, e lembra-se de ter conhecido outros reclusos que por lá também haviam passado. “Todos negros, mulatos, imigrantes.”

QUEIXA-CRIME

A 21 de dezembro do ano passado, a advogada de Rubens e Karina, Marina Caboclo, apresentou queixa-crime junto do Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa contra agentes da PSP que detiveram o jovem brasileiro na Mouraria. Denunciou os crimes de ofensa à integridade física qualificada, abuso de autoridade, injúria, ameaça, coação, tortura, com emprego de método particularmente grave, designadamente de espancamento, e de dano. O Ministério Público abriu inquérito.

Houve, no entanto, um crime alegadamente cometido dez dias depois de Rubens sair da esquadra de Moscavide: o de perseguição. Num domingo, por volta das 20h, 20h30, o jovem estava a atravessar a rua onde morava quando “avistou um agente da PSP, que se encontrava à paisana, mas cujo rosto o queixoso reconheceu, lembrando-se que no dia em que fora detido este agente lhe havia dito: ‘Lembra da minha cara que vais ver depois’”, lê-se na queixa. O agente terá ligado para um outro e, pouco depois, dois agentes se juntaram — Rubens acredita que estavam próximos do Banco de Portugal.

“Revistaram-me no meio da rua”, disse Rubens. Revistaram-lhe as compras que trazia para o jantar, ordenaram depois que tirasse a camisola, baixasse as calças e as cuecas e, enfim, que descalçasse os ténis. Ficou nu e descalço na sua própria rua, segundo o próprio, sem qualquer razão, sentindo-se “como numa esquadra”, vexado e impotente. Tal como na esquadra, terão obrigado Rubens a desbloquear o próprio telemóvel e voltaram a vasculhar as suas mensagens e redes sociais. Entretanto, deixaram que voltasse a vestir-se. Perguntaram-lhe, disse Rubens, como tinham corrido as coisas no tribunal, se saiu de lá “na boa”, porque é que tinha ido ao hospital e se tinha feito reclamações a alguém. 

Um deles viu um vídeo que ele tinha gravado à porta do tribunal e publicado no Instagram, com a legenda: “bófias de merda, olha como me deixaram”. Os polícias, continuou o jovem, deixaram-no ir para casa, mas, a 2 de dezembro, voltou a ser interpelado na rua, desta vez por agentes que desconhecia. Ainda não eram 11 horas da manhã e o jovem seguia pela Calçada do Combro em direção à Escola Secundária Passos Manuel, onde estuda a sua namorada. “Ouvi um carro a parar atrás de mim e uma porta a bater”, relatou Rubens. Olhou para trás e tentou esgueirar-se, dobrando uma esquina, mas foi agarrado no braço por um agente da PSP. “Tu é que és o Rúben?”, terá perguntado o agente - chamavam-lhe sempre Rúben. Rubens afirma que, em todas estas abordagens, foi sempre chamado de Rúben. “És não és? Anda ali falar comigo”.

Conduzido pela Travessa da Condessa do Rio até à esquina com a Rua da Hera, longe do corrupio da Calçada do Combro, o agente sacou do seu telemóvel e mostrou-o a Rubens: “tu é que és o puto da foto'”. Segundo Rubens, era uma fotografia dele algemado, tirada na esquadra do Martim Moniz.

Revistaram-no, viram o que trazia na mochila. A caminho da viatura, Rubens perguntou porque é que o tinham de levar para a esquadra. “Temos de ver a tua permanência em território nacional”, terá dito o agente. Mas, assim que entraram no carro, o agente que o deteve virou-se para trás e ter-lhe-á dito: “Já sabes o que queremos, não é? Vais arranjar 50 gramas. Vá, chiba-te”. Rubens foi levado para a esquadra do Rato, onde voltaram a perguntar sobre o que teria dito em tribunal, que dissesse onde andavam “os rapazes da Praça das Flores”. E foi deixado sair duas horas depois, sem qualquer acusação.

Terá havido mais uma aproximação dos agentes a Rubens. A 17 de março, o jovem voltou a ser detido arbitrariamente pela polícia, desta vez no Jardim Dom Luís, perto do Cais do Sodré, enquanto passeava a sua cadela ainda cachorra, a Lua, que entretanto adotou. Rubens relembra que estava no relvado, à beira de uma feira de rua que ali costuma acontecer semanalmente, quando reparou em dois carros da PSP estacionados junto ao Mercado da Ribeira.

Decidiu atravessar a rua em direção a casa. Viu três agentes a correr na sua direção e reconheceu-os: um deles foi o que o agarrou, fora de serviço, na sua rua, outro era “o careca que conduziu a carrinha quando foram fazer as buscas a minha casa” e o terceiro um dos que o agrediu na esquadra do Martim Moniz. Terão começado por perguntar como estava e o que trazia com ele. Levaram-no para junto de um dos carros e começaram a revistá-lo. Só encontraram um telemóvel. Pegaram nele, atiraram o cartão SIM para o chão e procuraram o código IMEI: “vamos ver se é roubado, podemos ter aqui alguma coisa contra este gajo”.

Não era roubado. Entre tudo isto, ter-lhe-ão dito várias vezes que não seria preciso a sua mãe “ir fazer mais queixinhas”. Um jovem que passava num grupo terá reconhecido Rubens. Decidiu fazer um vídeo para lho enviar depois. Na legenda do vídeo, a que o Setenta e Quatro teve acesso, lê-se: “estavas bem acompanhado hoje”. O jovem aproximou-se e falou com Rubens, tendo dito que ficaria ali a testemunhar o que se passava. Os polícias meteram-no então dentro do carro junto com a sua cadela. “Temos de ver a tua permanência em território nacional”, disseram-lhe já dentro do carro, uma vez mais.

A queixa que a sua advogada interpôs pede às autoridades que recolham inúmeras provas, entre as quais a escala de turnos da esquadra do Martim Moniz (17 e 27 de novembro) e a do Rato (2 de dezembro), mas também a recolha de imagens de videovigilância onde foi detido naquela quinta-feira.

O objetivo da queixa-crime é apenas um: “a responsabilização dos agentes da PSP por uma conduta que, apesar de não ser incomum, configura abuso policial racista”, disse ao Setenta e Quatro a advogada de Rúbens e Karina. “Este caso tem uma característica muito preocupante: uma perseguição organizada e sistemática. Não existe em todos os casos [de violência policial]. Há uma reiterada abordagem à mesma pessoa pelos mesmos e outros agentes”, salientou Marina Caboclo, referindo não ter dúvidas de a motivação ser “ódio racial”.

* Título com alteração PG aliado ao título original em Setenta e Quatro

O Setenta e Quatro precisa de leitoras e de leitores, de apoio financeiro, para continuar. Em troca damos tudo o que tivermos para dar. Acesso antecipado às edições semanais e às investigações, conversas e publicações exclusivas, partilha de ideias e muita boa disposição  - CONTRIBUIR AGORA

LER MAIS RELACIONADOS EM Setenta e Quatro

Polícias Sem Lei: o ódio de 591 agentes de autoridade

“Vai trabalhar, malandro!”: as prisões em Portugal

10 de Junho de 1978: quando a PSP disparou a matar para proteger fascistas 

Sem comentários:

Mais lidas da semana