quinta-feira, 22 de junho de 2023

Angola | POEMAS PERFUMADOS PELA MÚSICA – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

A crítica literária faz imensa falta a quem se dedica à escrita. Fazem-nos falta Carlos Ervedosa, Filipe Neiva, David Mestre, Orlando de Albuquerque, Mário António, para só falar nos que mais cultivaram o género antes da Independência Nacional. Uma senhora perita na arte escreveu que o poema “Namoro” de Viriato da Cruz tem imagens belíssimas, uma delas é escrever uma carta em papel perfumado. E o cartão com o canto sim e canto não pedindo namoro à dama eleita. Achei piada à imaginativa literata. Porque eu comprei papel perfumado na Argente Santos para escrever cartas de amor.

Os cartões “por si meu coração sofre” existiam à venda em qualquer papelaria e tabacaria. Uma embalagem de 20 custava meia cinco. Caríssimo. Um fino de cerveja crua na esplanada do Baleizão custava dois escudos.

Eu sou canhoto e fui obrigado a escrever com a mão direita porque a senhora professora dizia que quem usava a mão esquerda era alma do diabo. Escrevo mal com as duas mãos. Em criança aprendi a escrever à máquina e desde então só me sinto bem com teclados, mãos esquerda e direita debitando palavras. Tinha vários fornecedores de papel. Em algumas repartições públicas existiam formulários impressos numa face da folha. Eu desviava-os e escrevia nas costas. Os bancos também tinham à disposição dos clientes formulários para os depósitos! Eu desviava-os e escrevia nas costas. 

O melhor papel para escrever à máquina era o dos panfletos com propaganda do viaje agora e pague depois. Escrevi nas costas a peça de teatro “Os Barrocados” inspirada nos Heróis do 4 de Fevereiro, que escaparam à repressão policial escondendo-se em buracos das barrocas de Luanda. Essa obra foi apreendida pelo senhorio a quem não paguei quatro meses de renda de um anexo no Maculusso. Deve ter ido para o lixo. Gente sem maneiras!

Vendi um original pornográfico ao velho Maciel que ele depois pôs a circular pirateando a Dona Cassandra Trios. Pagou 50 escudos pronto pagamento. Fui à Argente Santos e comprei uma resma de papel perfumado. Escrevia cartas de amor a uma senhora que constituiu família com um empreiteiro de prédios nas avenidas além Kinaxixi. Foi o mercado que me inspirou. E o dinheiro fácil da escrita pornográfica.

As cartas enviadas à minha amada partilhada eram originais. Saíam mesmo da minha cabeça e do meu coração. Com algumas enviava uns versos sofridos. Mas existia à venda um livro intitulado “As 20 Mais Belas Cartas de Amor” que custava dez escudos. Um dia propus ao Velho Maciel fazermos um livro com as cem mais apaixonadas cartas de amor. Ele recusou. Não sabe o que perdeu. Eu era mesmo muito bom a destilar amor em papel perfumado.

O primeiro divulgador do poema “Namoro” de Viriato da Cruz foi Ernesto Lara Filho. Nas noites de boémia ele declamava poemas de Agostinho Neto, Mário António, António Jacinto, Maurício Gomes, Aires de Almeida Santos e outros poetas angolanos. Encerrava sempre com o “Testamento” da irmã Aldinha (Alda Lara): À prostituta mais nova/Do bairro mais velho e escuro,/Deixo os meus brincos, lavrados/Em cristal, límpido e puro...

Um dia o cantautor Fausto, do Huambo, assistiu à cessão. E logo ali decidiu musicar o poema “Namoro” inspirado nas palavras ditas pelo Mano Arnesto. Terminada a obra cedeu-a ao Sérgio Godinho que gravou o tema. Um poema embrulhado em música é o estádio supremo da arte. Rui Mingas também musicou peças de Agostinho Neto, Viriato e Mário António o maior poeta de Luanda, juntamente com Tomás Jorge.

O músico Mário Rui Silva (Má’Rui) pôs música em versos que escrevi. Aquilo ficou um monumento e repetimos a dose. Ninguém ouviu, ninguém conhece, por isso não existe. Os meus livros também são mundialmente desconhecidos. Mas um deles mereceu uma crítica de Mário António, publicada na revista Colóquio Letras, da Fundação Gulbenkian. O Bessa Múrias avisou-me do feliz acontecimento. Nem queria acreditar no que li.

Mário António também era do Partido Comunista Angolano, como Viriato da Cruz. Também fundou o MPLA, como Viriato da Cruz. Tem mais de cem obras publicadas entre poesia (voz única e inimitável), ensaio, sociologia e outras áreas das ciências sociais. Escreveu até morrer. Ninguém faz conferências sobre o maior intelectual angolano de todos os tempos. É o maior poeta de Luanda e um dos maiores de Língua Portuguesa. 

Depois do 4 de Fevereiro, Mário António ficou horrorizado com aquelas mortandades e recusou a luta armada. Virou pacifista e aderiu à Igreja Católica. Baniram-no por traição e deserção. Mas nunca foi hostil ao MPLA. Nunca conspirou contra o MPLA. Nunca mobilizou um governo estrangeiro contra o MPLA, como fez Viriato da Cruz. Grande parte da sua obra foi editada pela Editora Pax, ligada ao bispado de Braga.

Viriato da Cruz faleceu uns meses antes do 25 de Abril de 1974. Muitas vezes me interrogo sobre o seu posicionamento se fosse vivo. O que diria quando Agostinho Neto, Lúcio Lara, Manuel Pedro Pacavira e alguns dos mais notáveis Comandantes da guerrilha assinaram o cessar-fogo com Portugal. Qual seria a sua posição face à UNITA que ele apadrinhou junto do governo de Pequim. Mas isso pouco interessa. A maior derrota que sofreu, a prova de que era um político medíocre, cego pela ambição, foi aquele momento mágico protagonizado por Agostinho Neto quando anunciou a África e ao mundo, em nome do MPLA, a Independência de Angola. O resto é conversa de matumbos.

A FNLA proclamou a Independência Nacional no Uíge, na presença do ricaço Ferreira Lima, analfabeto de pai e mãe, colonialista cruel, matador de milhares de angolanos. A UNITA içou a bandeira do regime racista de Pretória no Huambo.

Abílio Camalata Numa publicou um texto insultuoso para João Lourenço, o Presidente de todos os angolanos. O povo faz uma manifestação de protesto e os assassinos da UNITA aproveitam a boleia, manchando a justeza da luta. O povo protesta contra o Executivo e o criminoso de guerra Numa aproveita a onda para canibalizar a nossa indignação. Não se pode fazer nada enquanto a associação de malfeitores UNITA existir. Adalberto solta os cães para nos desmoralizar. Ninguém quer estar do lado da UNITA. Ninguém quer ser confundido com a UNITA. Tirando o deputado Justino Pinto de Andrade e outros cultores do banditismo político. Dificilmente saímos deste pântano putrefacto.

*Jornalista

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