quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Cantilena dos Terroristas Ocupantes -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

O poeta Marcial escreveu numa das suas trovas que na guerra da Turquia lhe morreram os irmãos e uma filha moça que era a luz o seu dia. Os sábios de Constantinopla laurearam-no pela suprema arte poética que cultivava. Conheci a sua poesia num livro fabuloso que abandonei com outras imbambas para me perder sozinho, sem remorsos. Depois li as Cantigas de Amigo. As de Escárnio e Maldizer. E senti os cânticos da festa da morte nas aldeias vizinhas da nossa casa da Kapopa. A poesia é mais a parte humana em estado puro do que uma arte.

Com os sonhos embrulhados nas trovas deixei família e amigos. Fui estudar para o Uíge onde fiquei internado. Em 15 de Março de 1961 aconteceu a Grande Insurreição. Os flagelados de séculos, os escravizados, os exércitos mobilizados para os trabalhos forçados sem salário, os que foram impedidos, durante gerações, de frequentar as escolas, os segregados, as vítimas de um apartheid cruel exercido por colonos analfabetos, revoltaram-se. Imitaram os ocupantes. Gritaram tão alto a palavra liberdade que se ouviu em todo o mundo. 

Os massacres que se seguiram por parte das milícias dos colonos, com o apoio das autoridades colonialistas, ficaram gravados na minha memória de adolescente sonhador, subitamente agredido pelo racismo à solta. Pela vingança cruel. O mais doloroso foi ficar com uma certeza: Seria sempre olhado como mais um assassino. Mais um racista. Mais um ocupante. Na Grande Insurreição morreram os meus irmãos e perdi a terra que era luz da minha vida.

Em Maio de 1961 retomei os estudos no Liceu Salvador Correia. Chamavam-me refugiado. Mas estavam enganados. Eu era um mutilado do melhor da minha vida desde a infância feliz lá na Kapopa, em Camabatela, no Bindo. Ouvia a rádio e era agredido com uma violência dolorosa. Falava o Ferreira da Costa e chamava terroristas aos meus irmãos. Falava o António Maria Zorro, a partir da Emissora Nacional em Lisboa e chamava terroristas aos meus irmãos. Falava o Reis Ventura e dizia que os meus irmãos eram terroristas e assassinos. Falava o António Pires e rosnava: Temos de matar os terroristas. Falava o Mimoso Moreira e pedia que todos se erguessem contra os terroristas. Falava o Diamantino Faria e era a mesma agressão.

Eu vi os terroristas das milícias espancarem e matarem negros, até crianças, nas ruas do Uíge. Eu vi colonos analfabetos agredirem e humilharem os negros. Eu vi os comerciantes do Negage roubarem escandalosamente os negros no peso e na medida. Um quilo tinha meio e um metro 25 centímetros. Eu vi o chefe de posto e os sipaios, de chicote na mão, maltratarem mulheres e crianças, obrigadas a tapar os buracos das picadas quando os aguaceiros desfaziam os pisos. E na rádio diziam que os terroristas eram os que foram vítimas de terrorismo durante séculos.

Hoje vejo os Media do ocidente alargado a mesma posição. Israel ocupa ilegalmente a Palestina ignorando as resoluções da ONU. Como a África do Sul ocupava a Namíbia e ignorava a ONU porque tinha as costas quentes pelo estado terrorista mais perigoso do mundo. Mas terroristas são os palestinos. Israel fez da Faixa de Gaza uma prisão a céu aberto. Terroristas são os presos sem culpa formada. Israel impôs uma política de apartheid aos palestinos. Como a África do Sul impôs durante décadas o apartheid aos negros sul-africanos e namibianos. Os terroristas são os palestinianos porque lutam contra o apartheid imposto pelos sionistas.

Os colonialistas e seus mentores (EUA, potências europeias e Israel!) foram derrotados pelos que se revoltaram no dia 4 de Fevereiro e 15 de Março de 1961. O MPLA derrotou a coligação mais reacionária e agressiva que alguma vez se formou na Terra, numa luta sem tréguas que só terminou em Fevereiro de 2002. Foram 62 anos de guerra pela Liberdade e a Dignidade. 

Hoje as embaixadas dos EUA e de Israel em Luanda tratam o Presidente da República como se fosse o Idi Amin ou o Bokassa. Tratam Angola como se fosse um estado falhado. Para levarem a humilhação até ao ponto mais alto do absurdo, querem colocar nos angolanos as divisas de sargento como fizeram com os israelitas. Israel é o sargento dos EUA no Médio Oriente. Agora querem que Angola seja o sargento do estado terrorista mais perigoso do mundo na África Austral. Os jovens não reagem. Porque não têm memória nem conhecem o passado do Povo a que pertencem.

Ontem (escrevo aos primeiros minutos de hoje, segunda-feira) faleceu o Comandante Onambwe. O Jornal de Angola “online”, durante todo o dia, tinha na manchete estas notícias: “Presidente da República Dirige Segunda-feira Mensagem Sobre o Estado da Nação”. “Assembleia Nacional Chumba Proposta de Destituição do Presidente da República”. “Angola Almeja Melhorias nas Relações Empresariais com a Turquia”. “Vice-governador pede Celeridade e Transparência nas Obras do PIIM no Moxico”. Nem uma palavra sobre a morte do Comandante Onambwe, um Herói Nacional.

A TPA ignorou a morte do Comandante Onambwe no seu noticiário das 13 horas de ontem. Nem uma palavra durante todo o dia. No “Mais Domingo”, às 20 horas, abriram com palavreado. Depois como cuidar do corpo. Cultura do arroz e produção de mel. Já tinham passado estas reportagens no noticiário das 13 horas. Um chouriço para mostrar serviço. Ao fim de 55 minutos de “noticiário” avisaram que iam ler um comunicado do Bureau Político do MPLA. O partido anunciava a morte de Henrique de Carvalho Santos (Onambwe). Os nossos sentimentos à família enlutada. A TPA nem sequer informou a data do funeral. Nada.

O canal público de televisão trata o MPLA como os embaixadores dos EUA e de Israel tratam o Presidente João Lourenço e a República e Angola. A UNITA diz que o partido no poder controla os Media públicos. Mais uma aldrabice que se prova pelo exemplo anexo. Calma aí! E se as direcções da TPA e do Jornal de Angola receberam ordens superiores para ignorarem a morte do Comandante Onambwe? É uma maka mundial!

Henrique de Carvalho Santos (Onambwe) era comandante de coluna na guerrilha e um dos signatários da Proclamação das FAPLA. Na II Guerra de Libertação Nacional (25 de Abril 1974/11 de Novembro de 1975) esteve na primeira linha. Teve um papel importante na mobilização de apoios ao MPLA nessa época, nomeadamente Cuba. Foi ministro do Governo da República Popular de Angola. Era o “número dois” da DISA e nesse papel foi fundamental na derrota dos golpistas do 27 de Maio de 1977. Alguns camaradas de armas dizem mesmo que sem a sua intervenção os golpistas tinham triunfado.

Agora digo eu. Todos os que tiveram influência decisiva na derrota dos golpistas em 1977, depois de 2017 passaram a ser perseguidos ou simplesmente ignorados. A alguns caiu-lhes o mundo em cima. Até enfrentaram processos judiciais encomendados. Os sobreviventes do golpe de estado militar estão no poder. Mandam e comandam. 

* Jornalista

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