quarta-feira, 1 de novembro de 2023

NABIL ABUZNAID: "EM GAZA, UMA CRIANÇA MORRE ANTES DE PODER CRESCER"

O chefe da missão diplomática da Autoridade Palestina em Portugal denuncia o genocídio de palestinos às mãos israelitas. Também denuncia que Israel usa a acusação de “antissemitismo para desacreditar qualquer crítica” contra as suas políticas na Palestina.

João Biscaia em Setenta e Quatro entrevista Nabil Abuznaid

Há quase três semanas que Israel bombardeia sem descanso a população enclausurada na Faixa de Gaza. O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, diz que as Forças de Defesa de Israel tentam não atingir civis, mas as consequências no terreno apontam para uma punição coletiva e desproporcional do povo palestino pelo ataque do Hamas a 7 de outubro.

Quase seis mil civis palestinianos, dos quais mais de 2300 crianças, foram mortos pelos bombardeamentos israelitas, e o número não pára de aumentar a cada dia – numa única noite de bombardeamentos, esta semana, foram mortos 700 civis palestinos.

Além dos constantes ataques da força aérea israelita, a população civil de Gaza vive o acentuar diário do cerco israelita: não tem água, eletricidade ou combustível, e a comida escasseia. Os hospitais deixaram de conseguir assistir os milhares de feridos. E as dezenas de camiões com ajuda humanitária que entraram no pequeno enclave ajudam menos de 1% dos 2,3 milhões de civis. Num dia normal, entrariam centenas – por dia.

Um cenário que poderá piorar nos próximas dias e semanas, quando Netanyahu der luz verde aos seus militares para avançarem com a invasão terrestre de um território que muitas organizações humanitárias consideram "a maior prisão a céu aberto do mundo”. Suspeita-se, além disso, que o objetivo de Netanyahu é a transferência populacional forçada dos palestinos, reduzindo ainda mais a dimensão territorial da Faixa de Gaza, o que representa, de acordo com o direito internacional, um crime contra a humanidade.

“O que está a acontecer em Gaza é um genocídio. Estão a fazer guerra a todos os seres humanos, a todos os civis: homens, mulheres, crianças, velhos. Não há lugares seguros das matanças que temos visto: mesquitas, igrejas e hospitais estão a ser bombardeados pelos israelitas”, disse em entrevista ao Setenta e Quatro Nabil Abuznaid, chefe da missão diplomática da Autoridade Palestina em Portugal. “Cortar o abastecimento de eletricidade e água, fechar as fronteiras e não deixar entrar qualquer tipo de provisões médicas é desumano e inaceitável.”

O representante palestino não tem dúvidas de que a comunicação social tem feito uma cobertura “injusta” e “iníqua” dos acontecimentos. “Noticiam o ataque do Hamas sem mencionar a raiz do problema, sem esclarecer que o povo palestino sofre uma ocupação militar há 56 anos”, criticou. E uma das estratégias de Israel, denuncia Abuznaid, é usar acusações de “antissemitismo para desacreditar qualquer crítica”, o que tem colhido frutos na Europa e nos Estados Unidos. 

Publicou no jornal Público um artigo no qual menciona as suas lembranças da guerra de 1967 e o início da ocupação israelita: tanques de guerra a entrar pela sua aldeia. Passaram-se 56 anos. O que significou para si a ocupação? 

Uma ocupação é a forma maior de terrorismo. Tira as liberdades de expressão e de movimento às pessoas e expropria-as dos seus pertences. Para mim e para a minha família, a ocupação significava medo. 

Estávamos sob controlo militar e tínhamos de lidar com soldados sempre armados, temendo pela nossa vida. Proibiram-me de atravessar a fronteira para a Jordânia. Estive preso duas vezes. Lembro-me de dias em que o exército [israelita] recolhia toda a gente da minha aldeia para nos pôr sentados ao sol, no verão, ou debaixo de árvores quando chovia. 

Israel tem leis diferentes para judeus e palestinos, ainda que cerca de um milhão e meio de palestinos sejam considerados cidadãos. Os palestinos, mesmo os cristãos, não são tratados de maneira igual aos judeus.

A situação é pior em Gaza e na Cisjordânia. Aí, as pessoas vivem sob controlo militar, sem quaisquer direitos. Se fores um palestino a viver na Cisjordânia estás despojado de qualquer direito básico.

E em Gaza é ainda pior. É uma das regiões mais densamente populadas do mundo. As pessoas vivem pobremente. Não se pode ir da Cisjordânia a Gaza. Todas as entradas são controladas pela ocupação israelita.

Nos Acordos de Oslo, em 1993, houve um compromisso mútuo pela paz. O que pensou na altura?

Os Acordos de Oslo foram uma oportunidade de paz e esperança para os palestinos. Lembro-me de ver gente a celebrar, atirando ao ar arroz e flores, enquanto o exército israelita partia de algumas cidades palestinas.

Mas, infelizmente, alguns meses depois da assinatura dos acordos, um colono israelita chamado Baruch Goldstein entrou na principal mesquita da cidade de Hebron com uma espingarda automática e começou a disparar sobre os fiéis que rezavam a oração da manhã. Matou 29 palestinos e feriu outros cem.

A motivação desse ataque era acabar com os Acordos de Oslo, mas [o líder palestino] Yasser Arafat e [o primeiro-ministro israelita] Yitzhak Rabin conseguiram salvar os processos de paz ao acordarem trazer observadores internacionais para Hebron. Mas, infelizmente, um outro israelita de extrema-direita, Yigal Amir, assassinou Rabin. Perdemos toda a esperança.

Arafat afirmou nessa mesma noite: “não perdemos apenas Rabin; perdemos todo o processo de paz”. Teria de haver líderes como Rabin em Israel para voltarmos a ter esperança num processo de paz. Infelizmente, apenas vemos governos de direita sem qualquer interesse em fazer a paz.

Tem havido discussões sobre o que chamar àquilo que Israel está a fazer à população de Gaza. Alguns historiadores – até israelitas, os "novos historiadores" – dizem que é um caso claro de genocídio. Juristas dizem que, à luz do direito internacional, não se pode afirmar que o seja. Qual é a sua posição?

O que está a acontecer em Gaza é um genocídio. Estão a fazer guerra a todos os seres humanos, a todos os civis: homens, mulheres, crianças, velhos. Não há lugares seguros para as matanças que temos visto: mesquitas, igrejas e hospitais estão a ser bombardeados pelos israelitas.

Tudo isto é uma violação de direitos humanos e do Direito Internacional Humanitário que afirma que a vida dos civis deve ser protegida em caso de guerra. De acordo com o direito internacional, deslocar pessoas das suas casas também não é aceitável, e temos visto Israel a tentar deslocar forçosamente as populações do norte para o sul de Gaza. Cortar o abastecimento de eletricidade e água, fechar as fronteiras e não deixar entrar qualquer tipo de provisões médicas é desumano e inaceitável.

Crê que as instituições internacionais alguma vez irão julgar esses crimes de guerra?

Não há ocupações boas ou ocupações más. A ocupação israelita comete violações graves e crimes de guerra diariamente Já tentámos apelar a instituições como o Tribunal Penal Internacional, mas, infelizmente, em dez anos não houve qualquer investigação séria.

Condenou o ataque do Hamas de 7 de outubro, que matou centenas de israelitas no dia. O Hamas representa o povo palestino e a sua luta?

Condeno todas as mortes de civis independentemente de quem são ou de onde são. Não seria ético, enquanto ser humano, condenar um lado e não condenar o outro. O Hamas é uma fação palestina, e todas as fações estão sob a alçada da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). A OLP negociou a paz com Israel; têm um reconhecimento mútuo. Apenas a OLP pode falar e negociar em nome dos palestinos.

É o sexto ataque a Gaza neste século. Na Cisjordânia, a violência de colonos contra palestinos tem-se tornado mais frequente e mais violenta, com linchamentos e pogroms. Qual a razão deste escalar de violência?

Com este novo governo de direita, liderado por Benjamin Netanyahu, temos testemunhado ações extremamente violentas contra cidadãos palestinos. Esse governo inclui alguns do maiores radicais da direita israelita, como Bezalel Smotrich e Itamar Ben-Vir, que apelaram publicamente à chacina de palestinos e à destruição das suas aldeias. Foi o que aconteceu em Hawara, perto de Nablus.

Como se não chegasse, Netanyahu foi à Assembleia-Geral das Nações Unidas, no mês passado, mostrar um mapa dos países do Médio Oriente que não incluía a Palestina. Negou a própria existência dos palestinos e da Palestina. Este governo tornou tudo pior.

Quando figuras como Netanyahu, Smotrich, Ben-Gvir e [Yoav] Gallant saírem das suas posições de poder, não serão recordados como heróis. O povo vê grandes líderes nos homens que são capazes de levar os seus povos à paz.

Esse bando de extrema-direita está a fazer o oposto. Está a fazer Israel agir como o assassino, o opressor e o ocupante. Grandes líderes não são julgados pelo número de inimigos que matam, mas pelo número de vidas que salvam.

A situação em Gaza já é catastrófica, com mais de cinco mil mortos confirmados.

É difícil assistir à matança de civis desarmados em Gaza. O número de vítimas aumenta a cada minuto. Há neste momento crianças e idosos debaixo de escombros. É triste ver pais escreverem os nomes dos filhos nos seus braços e pernas para que os seus corpos possam ser identificados caso morram num bombardeamento.

Cerca de 60 famílias inteiras foram mortas, desapareceram completamente. Outras famílias tomaram a decisão de se separar, dividindo-se entre amigos ou vizinhos, para garantir que alguém daquela linhagem sobrevive.

Esta manhã vi um repórter perguntar a uma criança de Gaza o que ela gostaria de ser quando crescer. A criança respondeu que em Gaza se morre antes se poder crescer, portanto não podia responder. Consegue imaginar como se sente uma criança em Gaza?

A cobertura mediática da guerra em Gaza tem sido justa?

Tanto as posições políticas dos líderes europeus como a cobertura mediática têm sido injustas. Noticiam o ataque do Hamas sem mencionar a raiz do problema, sem esclarecer que o povo palestino sofre uma ocupação militar há 56 anos. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, disse isso e foi atacado severamente pelo governo israelita.

Os media são influenciados pelas informações erradas dadas pelo exército israelita. Podemos tomar o exemplo da morte da jornalista Shireen Abu Akleh, assassinada por um soldado israelita em maio de 2022. Israel declarou que Shireen havia sido morta pelos próprios palestinos.

Só ao fim de três meses vários relatórios e diversas investigações é que Israel se viu forçado a assumir a responsabilidade pela morte da jornalista, dizendo que lamentava tê-la assassinado por acidente. O que se passou depois do bombardeamento ao hospital de Al-Ahli é igual. Acredito que daqui a seis meses Israel virá admitir que foi o seu exército a bombardeá-lo.

Felizmente, temos visto manifestações por todo o mundo que denunciam essas posições injustas e a cobertura mediática iníqua. Nos Estados Unidos, jovens estudantes universitários têm liderado essas manifestações, pressionando o seu governo a parar esta guerra e a acabar com a ocupação israelita. Muita gente, incluindo muitos portugueses, entende que a luta palestina é pela liberdade.

Os bombardeamentos e as matanças vão continuar. Se não nos unirmos contra os massacres em Gaza, tudo irá piorar. Neste momento, toda a voz humana conta. Exorto todas as pessoas a levantarem a sua voz e a exigirem o fim desta guerra contra o povo de Gaza.

Algumas dessas manifestações têm sido denunciadas como antissemitas. Há quem afirme que o cântico “From the river to the sea/Palestine will be free” [“Do rio ao mar/Palestina será livre”] apela à morte de judeus.

Em primeiro lugar, nós, os palestinos, somos um povo semítico. Depois, a nossa luta não tem nada que ver com o judaísmo. O nosso problema é a ocupação. Essas manifestações que acontecem por todo o mundo pedem um fim para a ocupação, não apelam ao ódio.

Aliás, muitos judeus estão a manifestar-se contra a ocupação israelita. Em Washington DC, capital dos Estados Unidos, cerca de 300 judeus foram detidos enquanto protestavam pacificamente no Capitólio. É possível que muitos deles apoiem a existência de Israel como Estado e, ao mesmo tempo, sejam contra a ocupação.

Além disso, Israel sempre usou o antissemitismo para desacreditar qualquer crítica. O presidente norte-americano Jimmy Carter, que mediou os processos de paz entre o Egito e Israel e conseguiu um acordo de paz entre os dois países, foi chamado antissemita depois de escrever o seu livro Palestine: Peace Not Apartheid. Agora é a vez de António Guterres ser chamado de antissemita.

Como vê a posição política dos Estados Unidos?

O presidente Joe Biden visitou Israel e deixou uma mensagem de morte e destruição, não de paz. Os Estados Unidos enviarem navios de guerra para a região enquanto Biden se reúne com líderes militares israelitas não é um bom sinal para os que têm esperança que haja um processo de paz. Esta postura pode ser vista como provocação para arrastar mais países para esta guerra. E isso, que pode estar para breve, só levará a mais morte e destruição. 

É possível alcançar a paz depois de tanta morte e destruição?

Sou otimista em relação a isso: alcançaremos a paz e será num futuro próximo. Este conflito não tem solução militar. Só se poderá chegar à paz com negociações. Temos mais de uma opção para lá chegar.

A primeira é a “solução de um Estado”: judeus, cristãos e muçulmanos vivendo em paz nos territórios históricos da Palestina sob uma única constituição e direitos iguais. Esta opção é rejeitada por Israel.

A segunda é a chamada “solução de dois Estados”: os palestinos teriam o seu próprio Estado na Cisjordânia, em Gaza e em Jerusalém Oriental. Este Estado ocuparia 22% dos territórios históricos da Palestina; os restantes 78% seriam o Estado de Israel. Esta solução é aceite por todo o mundo: pelos EUA, pela ONU e pelos países árabes e islâmicos, mas é rejeitada por Israel.

A terceira opção é aquela em que já vivemos: a continuação da ocupação israelita da Palestina através da anexação de terras, enquanto se elimina qualquer esperança de construção de um Estado da Palestina. Esta é a solução preferida por Israel.

Continuar a ocupação não é uma solução. As ocupações não duraram muito, ao longo da História. O mundo está contra a ocupação. E até muitos judeus israelitas começam a virar-se contra ela, pois não querem continuar a viver como ocupantes.

Acredita que, um dia, os palestinos serão livres para construir o seu próprio Estado?

Sem dúvida. Um dia viveremos numa Palestina livre e Jerusalém Oriental será a sua capital. Nascemos livres. Deus criou-nos livres e iguais. Nada no nosso sangue nos torna diferentes do resto do mundo, não há razão para sermos privados do nosso direito a viver livremente.

O Direito Internacional diz que a Palestina deve ser livre como qualquer outro país neste mundo. Infelizmente, estamos a pagar um preço muito alto pela nossa liberdade, mas conseguiremos alcançá-la. Espero que o mundo livre não abandone a Palestina e não deixe os palestinos para trás.

Como se sente em relação às posições tomadas pelas lideranças europeias, incluindo o governo português, sobre a guerra em Gaza?

Infelizmente, os Estados Unidos lideram esta guerra e constroem uma opinião pública que apoia Israel contra a Palestina. Muitos países europeus seguem essa posição sabendo que Israel é uma parte importante da política interna dos EUA. Desde 1944 que apoiar Israel se tornou algo importante nas campanhas eleitorais norte-americanas.

Assim, na Europa, alguns países seguem os EUA cegamente, enquanto outros agem segundo a culpa que ainda sentem pelo que foi feito ao povo judeu durante os anos da Alemanha nazi. Qualquer amigo do Estado de Israel deve apelar ao fim desta guerra que só criará mais ódio, matança e destruição.

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