Há muito que se sabe que o Mediterrâneo é um autêntico cemitério, e os números que se conhecem todos os anos não deixam de chocar. Entre janeiro e setembro de 2023, mais de 2500 pessoas (números conservadores) morreram ou desapareceram ao tentarem atravessar o Mediterrâneo.
Setenta e Quatro, em 14-12-2023, por Ricardo Cabral Fernandes
Um navio de uma milícia líbia, liderada pelo filho de um senhor da guerra, navega pelo Mediterrâneo quando recebe coordenadas de barcos com refugiados que tentam chegar a solo europeu. Altera a rota e interceta-os, por vezes disparando contra eles, afundando-os. Os refugiados que sobrevivem são depois levados para o leste da Líbia, território controlado pelo tal senhor da guerra, onde ficam à mercê dos seus captores: podem ser vítimas de tráfico humano, extorsão de resgates, obrigados a trabalhos forçados, torturados.
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O navio miliciano chama-se TBZ (acrónimo do nome da milícia Tareq Bin Zeyad) e pertence ao senhor da guerra Khalifa Haftar, segundo o Lighthouse Reports, media de jornalismo de investigação. E quem lhe dá as coordenadas dos refugiados? A agência europeia fronteiriça Frontex através dos meios aéreos de vigilância marítima à sua disposição – drones e aviões. Mais de mil refugiados, diz o Lighthouse Reports, foram intercetados e levados para a Líbia com a ajuda da agência europeia desde maio deste ano.
“A lei internacional proíbe a Frontex de partilhar posições de barcos de refugiados com a Guarda Costeira líbia por a Líbia não ser um local seguro para as pessoas regressarem”, escreveu o media de jornalismo de investigação colaborativo. Mas a situação é pior: o TBZ não faz sequer parte da Guarda Costeira Líbia, é simplesmente um navio de um senhor da guerra sem qualquer ligação formal ao (falhado) Estado líbio.
O media de investigação analisou vários casos em que o TBZ atuou e concluiu que “em todos eles havia opções mais seguras: navios mercantes navegavam nas proximidades (bem mais perto que o navio TBZ), navios de ONG ou das guardas costeiras maltesa e italiana poderiam tê-los assistido”. O TBZ só agiu por ter recebido informações da Frontex.
A Frontex tornou-se um mastodonte da estrutura europeia, nem que seja apenas pelas centenas de milhões de orçamento anual, e é difícil pensar-se não estar a par das consequências das suas ações. A própria União Europeia descreve a milícia TBZ, logo o seu navio, como filiada do Exército Nacional da Líbia, de Haftar, em documentos confidenciais obtidos pelo Lighthouse Reports.
“Encontrámos também relatórios confidenciais que mostram que os Estados da UE estão conscientes da natureza ilícita de muitas das atividades da TBZ, incluindo tráfico de seres humanos”, lê-se na investigação. O grupo é apoiado e partilha bases na Líbia com a empresa militar privada russa Wagner, considerada grupo terrorista pela UE desde 2021, mas nem isso trava a Frontex.
Há muito que se sabe que o Mediterrâneo é um autêntico cemitério, e os números que se conhecem todos os anos não deixam de chocar. Entre janeiro e setembro de 2023, mais de 2500 pessoas (números conservadores) morreram ou desapareceram ao tentarem atravessar o Mediterrâneo, de acordo com o Alto Comissariado para os Refugiados das Nações Unidas. Os Médicos Sem Fronteiras dizem mesmo que morreram pelo menos oito pessoas por dia. Cerca de 31 mil pessoas foram “resgatadas” e levadas para a Tunísia e Líbia e mais de 186 mil conseguiram chegar ao sul da Europa.
Com a inação europeia, a par e
passo com uma agência europeia que evita o escrutínio público usando
secretismo, não admira que de tempos a tempos aconteça uma tragédia de enormes
proporções no Mediterrâneo, como a do navio com 700 pessoas que se afundou
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