Fernanda Câncio* | Diário de Notícias | opinião
O sucesso dos partidos de extrema-direita e da sua retórica anti-democracia é, paradoxalmente, uma manifestação do triunfo do regime democrático. Porque só há dois tipos de pessoas com saudade da ditadura: ditadores e os que (já) não fazem ideia do que seja viver numa.
“Os miúdos que nascem agora estão tão longe do 25 de Abril como nós estávamos da 1ª Guerra Mundial.”
Quem me disse isto nasceu em
A começar pela facilidade com que o podem colocar em causa: que outro sistema político é tão dúctil e paciente perante quem o insulta e despreza, quem lhe vaticina, deseja e planeia o fim? Que outro sistema permite que qualquer pessoa se sinta à-vontade para caluniar os respetivos representantes, para os acusar de tudo e mais alguma coisa sem, as mais das vezes, qualquer consequência? Que outro sistema admite os ataques mais soezes e destrambelhados como forma de combate político e hesita tanto em puni-los, por tanto execrar a severidade e o silenciamento?
A essa ausência de noção do que seria viver-se em ditadura - que explica o enlevo com soluções “musculadas” em que que cada vez mais tropeçamos nas redes sociais e na retórica política mas também em inquéritos sociológicos (num realizado em 2023 em 30 países - não incluindo Portugal - sob os auspícios da Open Society Foundation, de George Soros, 35%d os inquiridos entre os 18 e os 35 anos disseram que “ter um líder forte é uma boa forma de governar um país”; 42% dos mais jovens consideram até um regime militar como “uma boa forma de governar um país”) - adiciona-se outro desconhecimento profundo: o daquilo que, em termos de bem-estar, de “vida boa”, se deve à democracia. E esse desconhecimento está longe de se ater a quem nasceu muitos anos depois do fim da ditadura.
Encontramo-lo, na verdade, em
grande parte das pessoas
Não passamos a vida a louvar haver esgotos, água nas torneiras, eletricidade, hospitais, escolas, estradas - coisas que há 50 anos, ao contrário do que se passava na maioria dos países da Europa ocidental, estavam muito longe de garantidas para uma parte considerável da população.
Encontramo-lo, na verdade, em
grande parte das pessoas
Não passamos a vida a louvar haver esgotos, água nas torneiras, eletricidade, hospitais, escolas, estradas - coisas que há 50 anos, ao contrário do que se passava na maioria dos países da Europa ocidental, estavam muito longe de garantidas para uma parte considerável da população.
O que nos ocorre é dizer que é pouco e devia ser mais, que já não devia haver pobres, que é iníquo haver pessoas a viver com tão pouco. É justo. É normal, claro, apontar o que falha; é apontando as falhas que se progride. O risco é que se confunda a existência de falhas com falhanço global; é que o ruído sobre tanta coisa que nos parece aquém do que deveria leve a considerar que está tudo errado. Há uma diferença entre percebermos que aquilo que existe foi uma conquista deste regime e querermos melhorar, e decretarmos que é tudo uma porcaria e que o regime falhou. Como, falhou?
Alguém se recorda de como era o sistema de segurança social da ditadura? Alguém sabe como viviam, de que viviam, os velhos que já não podiam trabalhar? Alguém sequer pergunta o que sucedia aos desempregados?
Sim: por definição, a
democracia não entusiasma quem vive
Haver de repente tanta gente em países democráticos a achar que a democracia não serve é, paradoxalmente, uma espécie de louvor à democracia - à completa incapacidade que temos todos (exceto os ditadores) de imaginar viver num sistema outro, e à fé que pomos na sua resiliência.
E é aí, claro, que nos enganamos: a democracia pode (se pode) ser destruída e só resistirá na medida em que estejamos dispostos a lutar por ela. É bom que nos aprontemos.
* Fernanda Câncio - Na redação do DN desde abril de 2004. Ao fim destas quase quatro décadas como jornalista, se me pedirem para explicar porquê - por que quis sê-lo -, terei de responder com um cliché. Porque queria (e quero, não desisti) mudar o mundo. Ao menos tentar.
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