Fernanda Câncio* | Diário de Notícias | opinião
Normalmente não se escreve nos jornais sobre o que se passa com os jornais onde se escreve. Normalmente não se escreve nos jornais sobre os patrões dos jornais - e quando se escreve, é para dizer bem. Normalmente fazemos de mortos sobre tudo o que nos diz respeito. Normalmente, creio, estamos errados nisso tudo.
“Gostava de ter um patrão que gostasse de jornalismo. Que gostasse de jornais. Acho que as pessoas que investem na Comunicação Social têm de gostar, perceber de jornalismo, entender o seu valor para a democracia e para a vida.”
Isto foi dito por um de nós, jornalistas do DN, na reportagem que este sábado o DN publicou, online, sobre o DN e o que se tem vivido, no jornalismo em geral e no DN em particular, nos últimos tempos. É uma coisa que parece básica, claro, isto de patrões de jornais deverem perceber o que são jornais, mas que, quando o financiamento do jornalismo se tornou um assunto aflitivo e a gestão das empresas jornalísticas passou a ser sinónimo de “restruturações e cortes”, soa cada vez mais pungente.
Daí que quando esta segunda-feira comecei a ler a entrevista concedida ao Público por Marco Galinha, empresário do Grupo Bel e chairman da Global Media Group (GMG), o grupo empresarial de media que detém, entre outros títulos, o DN, a TSF, o Jornal de Notícias, O Jogo, o Dinheiro Vivo e o Açoriano Oriental, tenha ficado agradada com algumas das suas afirmações.
Antes de mais, recorde-se o
contexto: de
O empresário veio assim, em conjunto com outros “antigos acionistas” - Kevin Ho, José Pedro Soeiro e Mendes Ferreira - apresentar-se como um viabilizador daquilo que seja “a melhor solução para o GMG e para os jornalistas”, perspetivando a entrada de novos acionistas mas assegurando: “Não vou deixar cair o grupo, isso garanto. Se todas as propostas falharem, farei tudo para manter a sua sustentabilidade.”
Para quem trabalha no GMG, e nomeadamente para os jornalistas, a intervenção destes acionistas, que têm mantido comunicação connosco, e que disseram tudo estar a fazer para pagar os salários em falta até esta quarta-feira, criou uma janela de esperança. Normal pois que esta entrevista de Marco Galinha seja vista à lupa.
Comecemos pelas afirmações que têm tudo para nos agradar.
“Há muitos empresários que querem ser os homens mais ricos do cemitério, mas não querem saber nada do que se passa na sociedade. (…) Nós [empresários] temos o dever de manter o jornalismo. O Público [referindo o facto de o diário ser propriedade do grupo SONAE] é um grande exemplo disso. Como empresário, tenho o dever de manter isto minimamente independente e estável, de acordo com as minhas possibilidades.”
Outro exemplo: “Estou empenhado, apesar das greves que houve no GM [refere-se às greves que tiveram lugar no Global Media Group nos últimos meses, a última das quais a greve geral no grupo, a 10 de janeiro, na qual o DN participou]. Mas digo-vos que algumas das greves não só foram genuínas como justas, tinham razão de ser.”
Não é decerto todos os dias que vemos um empresário a admitir como “legítimas e justas” greves numa empresa na qual é acionista (mesmo se, no caso, minoritário) e a assumir ter uma responsabilidade social que pode até passar - é esse o título da entrevista (“Admito manter um DN a perder entre 500 e 700 mil euros por ano”) - por perder dinheiro para manter um jornal.
Também não é todos os dias que se lê da boca de um empresário da comunicação social que passou a gostar de jornalistas depois de os ter como empregados - “[O GMG] tem jornalistas magníficos, incorruptíveis, que sem receberem salário continuaram a trabalhar, o que me marcou. E fiquei seu fã e admirador”. E que estes não devem ser tratados “a chicote”: “Tratando bem os jornalistas, vamos ter melhores resultados. Não vale a pena pensar que é a tratar mal, a fazer cortes, a entrar com o chicote. Eles, jornalistas, estão determinados em executar a sua missão. E não houve nenhum acionista até hoje que conseguisse mudar a sua mentalidade.”
Mais uma coisa incomum na entrevista é o facto de Marco Galinha admitir que pode ter feito uma avaliação errada do fundo internacional ao qual vendeu a maioria da sua participação, chegando mesmo a não desmentir a afirmação das entrevistadoras do Público de que se pode tratar de um “fundo abutre”: “Não fiquei com essa perceção [de que se trataria de um fundo predador] quando pela primeira vez negociei com eles. (…) Todo o trabalho feito de compliance e de auditoria ao fundo não indicava o que veio a acontecer.”
Sucede que na mesma entrevista o empresário diz coisas bastante contraditórias face às citações anteriores. É que, apesar de estar em litígio com o fundo e de certificar que este não respondeu sequer às suas “cartas e comunicações”, assaca o caos e a “brutal destruição de valor” que se seguiu à entrada do WOF ao “ruído que se gerou em torno do GMG”, mas associando esse ruído a “organizações instaladas nas redações”.
E prossegue: “Tenho provas factuais de dirigentes de um partido a montar campanhas dentro das redações, a fomentar greves.” Fala também de jornalistas do GMG “alinhados com um partido extremista”. A seguir, identifica o partido em causa: “Fui patrão de uma empresa completamente falida, onde quem mandava verdadeiramente era uma organização, o BE.”
Não é fácil perceber do que fala o chairman do GMG: como jornalista do DN, se alguma vez me dei conta da influência de um partido político na GMG não foi decerto o Bloco de Esquerda. A dada altura da entrevista Marco Galinha associa a alegada atuação do partido a um título em específico - a TSF (cujo conselho de redação exarou no final da tarde desta segunda-feira um comunicado a repudiar essas imputações) - mas refere também a existência de “acordos com deputados em situação de exclusividade na Assembleia da República”, o que remete para o artigo de opinião que a atual coordenadora do BE, Mariana Mortágua, escrevia no Jornal de Notícias.
Em qualquer contexto, estas acusações de Marco Galinha surgiriam como no mínimo destemperadas. Quando está a negociar a entrada de novos acionistas no grupo, não serão exatamente o tipo de coisa a que o empresário dá o nome de “ruído” e “destruição de valor”?
Para além desse efeito, que não é de somenos, convém lembrar Marco Galinha que a liberdade e independência que na entrevista diz defender para os jornalistas - “acredito num jornalismo livre e independente” - implica reconhecer aos jornalistas o direito a opiniões, visões do mundo, do país, da empresa, dos títulos, do bem e do mal, diferentes, muito diferentes ou mesmo radicalmente diferentes, das suas.
* Jornalista
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