domingo, 14 de abril de 2024

Angola | Criminosos Regressam ao Local dos Crimes -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

O criminoso bem-sucedido nunca deve voltar ao local onde matou porque se arrisca a pagar pelos seus crimes. Vai com sorte se cair nas malhas da Justiça. Porque pode chocar de frente com as vítimas, sedentas de vingança. Uma delegação integrada por deputados da UNITA foi ao Cuando Cubango, a província que mais sofreu com a agressão dos racistas sul-africanos escondidos sob a capa dos sicários da Galo Negro. Ouviram este clamor: Kuhumwangele ndyileke nane, ndyileke nane Kuhumwangele, ndyileke nane linga ndyileko. Diz-me onde está a minha mãe, diz onde está a minha mãe para eu lá ir. As Mamãs que sobreviveram, disseram aos intrusos: Tumbulangombe ndyikuhe, mwana lipanda kalunga. Um filho não tem preço!

Os sicários da UNITA no Cuando Cubango raptaram, torturaram e mataram civis indefesos, ao serviço dos racistas de Pretória. Cometeram crimes hediondos. Uma delegação de deputados do Galo Negro voltou ao local dos massacres, das torturas, das violações, dos assassinatos. Eles já esqueceram esses dias de morte, sem sol. Mas as vítimas têm esses acontecimentos gravados a ferro e fogo nos seus corações. Refresquem a memória:

“As colunas de reabastecimento às FAPLA tinham imensas dificuldades. A UNITA concentrou grandes forças ao longo da via com a missão de impedir que atingissem o Cuito Cuanavale. Essas acções da UNITA eram apoiadas por golpes aéreos da aviação sul-africana. As colunas tinham 200 viaturas carregadas. Levávamos entre 15 e 20 dias para fazer 200 quilómetros numa estrada asfaltada. Rebentavam minas. Sofríamos emboscadas e ataques aéreos. Morriam muitos civis e combatentes. (General Nando Cuito). Os sicários da UNITA, nas vestes de deputados, encontraram familiares e amigos das vítimas. Queriam ser recebidos com flores e chocolates!

A palavra novamente ao General Nando Cuito:

Do Longa ao Cuito Cuanavale sofríamos ataques esporádicos. Parte dos abastecimentos, combustíveis, munições ficavam na estrada. Quando estabilizámos a situação no Triângulo do Tumpo a vitória dependia da estrada. Tivemos um reforço, a 10ª Brigada de Infantaria do capitão Incendiário, que morreu mais tarde em combate. Recebemos mais dois batalhões e desdobrámos a tropa ao longo da via. Depois a 8ª Brigada de Infantaria do capitão Zenzeca comandava as colunas. Acabou-se o martírio e começámos a fazer o percurso em oito horas. Viaturas e cargas chegavam intactas.

Antes da estabilização no Tumpo muito sangue correu entre o Longa e Cuito Canavale. Muito civil indefeso morreu. Os sicários da UNITA faziam o trabalho sujo dos racistas de Pretória. Nas vestes de deputados foram atacados pelas vítimas, no mesmo percurso. A palavra ao General Nando Cuito que comandava as tropas angolanas no terreno:

O piloto Penelas faleceu em combate. Foi fazer um bombardeamento e nunca mais voltou. Já no fim da batalha. Tinha 20 anos. Eu nessa altura tinha 27! Éramos todos muito jovens. A aviação sul-africana perdeu o domínio do ar. Temos um relatório do inimigo que revela os seus mortos e os aviões que abatemos. Nunca mais apareceram. 

Os sicários da UNITA ficaram. Foram amnistiados, perdoados, cobertos de mordomias, bolsos a abarrotar de dinheiro, cuspindo na dor das suas vítimas. Tolerados em nome da Reconciliação Nacional. Os sicários da UNITA que foram ao Cuando Cubango nas vestes de deputados, deviam saber que nem todos perdoam. Nem todas as vítimas aceitam reconciliar-se com criminosos de guerra.

O General Nando Cuito recorda esses tempos de guerra e sem sol, quando os sicários da UNITA matavam angolanos a soldo dos patrões racistas de Pretória:

Os sul-africanos trouxeram a artilharia pesada para perto do Triângulo do Tumpo. Como estavam numa zona mais elevada, viam o cemitério da vila. Tiraram as coordenadas com um GPS, e quando íamos enterrar os nossos mortos, eles atacavam com a artilharia e ficavam lá mais quatro ou cinco. Num funeral morreram 13 camaradas. Nesse dia decidimos enterrar os mortos na berma da estrada para Menongue. 

Os sicários da UNITA nas vestes de deputados não foram homenagear os mortos enterrados na berma da estrada. Não foram pedir perdão pela traição. Não foram dizer ao Povo do Cuando Cubango que Savimbi nunca mais. Pelo contrário, foram endeusá-lo, apresentar o criminoso de guerra que dirigia o Galo Negro como um mártir! Aprenderam a transformar assassinos em vítimas e vítimas em assassinos, com o chefe Miala e o execrável Francisco Queiroz, que agora abocanha uns trocos a distribuir prémios Sírius.

Oiçam o General Nando Cuito, que ao lado dos seus combatentes, testemunhou os crimes de guerra da África do Sul e sua criadagem da UNITA:

No Tumpo estavam apenas militares sul-africanos. Andavam com eles dois homens da UNITA, o Pongolola, já falecido, e o Renato Campos. Outro homem que estava no apoio aos sul-africanos era o logístico da UNITA na base do Licua, Sebastião Lameira. Um tanque sul-africano atropelou-o e os racistas de Pretória abandonaram-no gravemente ferido. Nós salvamos-lhe a vida. Teve cuidados médicos e foi tratado como um irmão. Soube dele quando disse mal de nós e nos insultou. O Alcides Sakala, anos mais tarde, fez exactamente a mesma coisa. Os sicários da UNITA não têm emenda.

Os provocadores do Galo Negro que foram ao Cuando Cubango já esqueceram ou nunca souberam. Por isso este é o momento de lhes apresentar os factos da História. Entre 19 de Setembro e o início de Outubro de 1985, a África do Sul avançou com uma intervenção militar de grande envergadura, no Cuando Cubango. As FAPLA tinham desencadeado a “Operação II Congresso” para aniquilar o “biombo” dos racistas de Pretória, as forças da UNITA. Quando as tropas de Savimbi estavam praticamente aniquiladas, as Forças de Defesa e Segurança de Pretória vieram em sua defesa e atacaram as FAPLA, no Lomba. Os racistas ainda precisavam de se esconder por trás de uma pretensa “guerra civil” em Angola. 

Entre 14 de Agosto e 25 de Novembro de 1987, a África do Sul lançou a “Operação Moduler” destinada a travar a ofensiva das FAPLA na via entre Cuito Cuanavale e Mavinga, vila ocupada pelos racistas e onde o Presidente PW Botha esteve, levado pela mão de Savimbi. Pela primeira vez nos tempos modernos, um Chefe de Estado entrou dentro de um país soberano pela força das armas. As FAPLA tiveram de recuar e adoptar posições defensivas. Pretória lançou então a “Operação Hooper” para capturar o Cuito Cuanavale e avançar sobre Menongue. Tropas da UNITA já estavam na zona do Bié. O objectivo final era criar um “país” para Savimbi a Sul do rio Cuanza. 

O teatro desta operação foi o Triângulo do Tumpo, Cuito Cuanavale. Os racistas de Pretória foram derrotados. E com a derrota, forçados a capitular em Nova Iorque, aceitando a independência da Namíbia. Mas a África do Sul, apesar da mudança de regime, não largou mão do seu “biombo” e guardou os “melhores combatentes e o melhor material” em bases secretas no Cuando Cubango. Essas forças, que a ONU não viu, atacaram em toda Angola quando a UNITA perdeu as eleições, em Setembro de 1992. Início da rebelião armada.

A “Operação Hooper” desenrolou-se nas elevações de Chambinga (via de Mavinga) e no Triângulo do Tumpo. Face à humilhante derrota que lhes foi infringida pelas FAPLA, as forças sul-africanas retiraram. Deixaram no terreno muito material de guerra e tiveram pesadas baixas. Enterraram os seus mortos numa colina sobranceira às lagoas dos rios Tumpo e Cuito.
Os generais de Pretória decidiram então o tudo ou nada e lançaram a “Operação Packer” entre 26 de Fevereiro e 23 de Março de 1988.

Pretória tinha recebido da ONU um ultimato para retirar de Angola as suas tropas até 10 de Dezembro de 1987. Não cumpriu, pelo contrário, desdobrou ainda mais tropas no terreno. Chester Crocker, no seu livro “High Moon in Southern Africa” faz uma referência à decisão das Nações Unidas: “Esta resolução da ONU, aprovada por unanimidade, a 25 de Novembro de 1987, condenava a intervenção em Angola e apelava à retirada das SADF, até10 de Dezembro. Pik Botha rejeitou a resolução. Em 5 de Dezembro, o chefe de Estado-Maior, Geldenhuys, anunciou que as suas forças haviam completado a sua tarefa e começaram a retirada táctica sob condições operacionais, ou seja, uma retirada lenta que podia ser interrompida por combates”.

Pelo livro de Helmoed-Roemer Heitman, “War in Angola-The Final South African Phase” (Página 169) sabemos que o general Liebenberg teve este desabafo: Ao não tomarmos o Cuito Cuanavale, tivemos de fazer como o cão e meter o rabo entre as pernas”. Os sul-africanos também tiveram que manter a invasão militar para além do dia 10 de Dezembro. Não existia qualquer retirada táctica, pelo contrário. A Operação Hooper começou depois da data limite imposta pela ONU. Mas as mentiras de Pretória tinham a cobertura de Washington e das grandes potências ocidentais, que apesar do embargo ao regime racista, mantinham estreitas relações por baixo da mesa. Todos esperavam o colapso do Governo Angolano.

Chester Crocker faz a seguinte leitura à situação em finais de 1987: “Existia o caos económico em Angola, devido à queda dos preços do petróleo. Mas militarmente as FAPLA estavam firmes nas frentes de batalha”. Este comentário é completado com esta posição lúcida: “Savimbi estava entalado entre a sua dependência da África do Sul e a superioridade convencional das FAPLA. Por isso, José Eduardo dos Santos recusou negociar com Savimbi mas reforçou o Programa de Perdão e Clemência”. Crocker resume assim a situação em Outubro de 1987, quando foi lançada a Operação Moduler: “A África do Sul está mais fraca e a região mais forte, ao lado de Angola”.  

O coronel Jan Breytenbach, no seu livro “The Buffalo Soldiers  The Story of South Africa’s 32º Battalion 1975-1993” faz este relato impressionante: “Um cínico oficial norte-americano, comentou que a missão de um soldado de infantaria é aproximar-se do inimigo e morrer com ele. Bem, muitos soldados da UNITA morreram, naquele dia 23 de Março, mesmo antes de entrarem em contacto com as FAPLA. Os canhões de 23mm eliminaram os ocupantes dos tanques como palha, enquanto os estilhaços da artilharia e os obuses dos morteiros faziam grandes estragos”. 

Esses militares das forças regulares de Savimbi não tiveram a sorte dos que iam recuando de 20 em 20 quilómetros, como Abílio Camalata Numa, à medida que se desenrolavam os combates no Triângulo do Tumpo. A potência de fogo das FAPLA era tal, que só se via fumo e poeira, ainda que o céu estivesse limpo de nuvens.

O “pai” das forças da UNITA, Jan Breytenbach, foi uma testemunha privilegiada porque assistiu, desde o início, à derrocada das tropas invasoras. “Toda a potência defensiva das FAPLA foi dirigida contra o comando do Regimento do Presidente Steyn e contra uma UNITA já em fanicos”.

O comandante do célebre Batalhão Búfalo, do seu posto de observação, verificou que as forças de artilharia invasoras recuaram para áreas mais seguras. Os comandantes perceberam que face à barragem de fogo das FAPLA e à intervenção dos MIG da Força Aérea Nacional, a derrota estava garantida. Só faltava saber a sua dimensão.  Jan Breytenvach dá uma indicação: “Se os artilheiros se puseram ao fresco, o mesmo não se pode dizer dos pobres soldados de infantaria da UNITA, que entraram em acção encavalitados nos tanques Oliphant e nos Ratels. Os seus mortos ficaram espalhados em grande número pelo campo de batalha”. (The Buffalo Soldiers The Story of South Africa’s 32º Battalion 1975-1993. Página 309).

Com paciência, indulgência e boa vontade, Angola aceitou negociar com o governo da África do Sul, em Nova Iorque. Cuba também se sentou à mesa. Como consequência dos acordos, o Governo de Angola estendeu a mão às tropas da UNITA que combateram ao lado do regime de Pretória. Eles estavam a correr o risco de caírem na situação de párias. 

Savimbi sabia como o Governo da África do Sul tratou os militares do Batalhão Búfalo e suas famílias. Eram quase todos combatentes do ELNA de Holden Roberto. Quando já não eram necessários, foram metidos num campo de concentração, na fronteira Norte com a Namíbia. Eu estive lá e vi em que circunstâncias viviam. O campo ficava perto de uma base secreta da força aérea da África do Sul, que foi desactivada depois do 25 de Abril de 1974, mas servia para receber os aviões de carga que levavam os abastecimentos aos internados angolanos. Publiquei a reportagem na revista portuguesa Sábado (primeira série). 

Savimbi e seus sicários corriam o risco de dar uso àquele campo de concentração. Porque na Jamba, nunca mais. Era território de Angola. Se não lhe fosse dada aquela oportunidade de Bicesse, ficava esquecido, como ele abandonou e esqueceu centenas de antigos combatentes da UNITA e seus familiares, que foram mutilados durante a guerra. Em 2012, encontrei-os a penar na base perto da Luiana, que foi território de grandes tragédias (Ler os livros de Jorge Valentim e Bela Malaquias) e operações de charme. Com a morte de Savimbi, Angola entrou, finalmente nos caminhos da Paz. Foi uma longa marcha que começou em Dezembro de 1956 e terminou gloriosamente com o triunfo dos angolanos no dia 22 de Fevereiro de 2002.

Os sicários da UNITA nas vestes de deputados foram ao Cuando Cubango provocar. Portaram-se como donos da terra que violaram, senhores do Povo que traíram, massacraram, torturaram e mataram. A violência não é solução para nada. Mas não é boa ideia provocar as vítimas de ontem.

A Presidente da Assembleia Nacional, Carolina Cerqueira, condenou, num comunicado, os actos de violência sobre os sicários da UNITA nas vestes de deputados. Fez bem. A direcção da UNITA disse que o texto é “desprezível”. Ataca o Governo Provincial do Cuando Cubango. Fala em “milícias do regime”. Meninos! Quando existirem milícias em Angola contra os sicários da UNITA, nem um fica com vontade de provocar e insultar.

O Grupo Parlamentar da UNITA, numa bebedeira geral de kapuka adulterada, exige que “o Presidente da República assuma suas responsabilidades na defesa da vida, dos direitos e liberdades dos cidadãos”. Também exige que “o presidente do MPLA oriente as suas estruturas a aderirem ao espírito dos acordos de paz, tolerância e reconciliação nacional”. 

Os assassinos regressaram ao local dos crimes. Foram mal recebidos. A culpa é do Presidente da República, da Presidente da Assembleia Nacional e da direcção do MPLA. Makutu-é! 

* Jornalista

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