quinta-feira, 6 de junho de 2024

Karkamanos na Guerra à Civil de Angola – Artur Queiroz

Acordo de Bicesse, Portugal

Artur Queiroz*, Luanda

O Acordo de Bicesse sucedeu aos Acordos de Nova Iorque assinados por Angola, Cuba e África do Sul. A UNITA era nessa época uma unidade especial das tropas sul-africanas invasoras, que na Batalha do Cuito Cuanavale “ficou feita em fanicos”, como escreveu mais tarde o coronel Jan Breytenbach, pai das forças armadas de Savimbi. Entre a retirada das tropas invasoras de Angola e as negociações no Estoril, Portugal, os racistas de Pretória esconderam Jonas Savimbi na Jamba ou no Gabão, para não atrapalhar.

Após a derrota das tropas do regime racista de Pretória no Triângulo do Tumpo, o arco-íris na África do Sul começou de imediato a ser “pintado”. Era preciso garantir uma transição para a democracia, num clima de paz social. Neil Barnard, chefe dos serviços secretos, revelou mais tarde que trocou confidências e deu todas as garantias a Nelson Mandela.

O futuro Presidente da África do Sul contou nas suas memórias que já no fim das conversações com Neil Barnard, telefonou ao presidente P W Botha no dia do seu aniversário (12 de Janeiro) para lhe dar os parabéns. O chefe do apartheid retribuiu a amabilidade. Convidou-o para tomar chá e serviu-o. “Saí com a impressão de que tinha falado com um chefe de estado criativo, caloroso, que me tratou com todo o respeito e dignidade”, recordou Nelson Mandela.

Chester Crocker, diplomata norte-americano, no seu livro “High noon in Southern Africa” escreveu a propósito do clima na África do Sul, quando as forças armadas do apartheid acumulavam derrotas entre a Caixa do Chambinga e o Triângulo do Tumpo: 

“A agitação e a resistência combativa em áreas urbanas habitadas por negros – e a falta de apoio do ocidente a P W Botha – precipitaram a reacção dos brancos. P W Botha era culpado pela mudança e pela violência. Mas os brancos agora culpavam-no também pelas sanções e pelo isolamento da África do Sul. Este clima interno ajudou a explicar a mais recente série de repressões: No final de Fevereiro de 1988, o Governo proibiu praticamente todas as actividades das 17 principais organizações negras, incluindo as da Frente Democrática Unida. Nem mesmo escapou a actividade política da COSATU, a maior federação de sindicatos.”

Chester Crocker sabe o que escreve. O regime de apartheid em Fevereiro de 1988 já estava em decomposição, devido às derrotas que ia acumulando em Angola e culminaram com a derrota final no Triângulo do Tumpo, a 23 de Março de 1988. Dia da Libertação da África Austral.

Alguns angolanos estão de costas voltadas para a sua História Contemporânea e ignoram os factos ocorridos no Cuando Cubango, Huíla e Cunene entre 1981 e Março de 1988. Mas os sul-africanos publicaram livros sobre esses acontecimentos, que mudaram África e o Mundo. Destroçaram o regime racista de Pretória. O Coronel Jan Breytenbach no seu livro “The Buffalo Soldiers: The Story of South Africa’s 32ºBattalion 1975-1993”, página 268 escreve: “Quase conseguimos desalojar a 25ª Brigada das FAPLA mal posicionada no terreno. A vitória esteve ao nosso alcance e estivemos a ponto de desalojar as tropas angolanas atacando por trás, as suas posições”. Mas falharam. O coronel explica porquê na página 269:

“O Brigadeiro Numa, da UNITA, que tinha estacionado a 20 quilómetros da parte traseira e afastada do campo de batalha, ordenou uma retirada imediata. O Brigadeiro Numa decidiu que a discrição era a melhor parte da operação e retirou, apressadamente, a sua brigada para uma posição 20 quilómetros mais distante em relação à posição da noite anterior”. 

O coronel Jan Breytenbach faz mais este relato impressionante: “Um cínico oficial americano, uma vez comentou que a missão de um soldado de infantaria é aproximar-se do inimigo e morrer com ele. Bem, muitos soldados da UNITA morreram, naquele dia 23 de Março, mesmo antes de entrarem em contacto com as FAPLA. Os canhões de 23mm eliminaram os ocupantes dos tanques como palha, enquanto os estilhaços da artilharia e os obuses dos morteiros faziam grandes estragos”.

O pai das tropas da UNITA, Jan Breytenbach, foi uma testemunha privilegiada porque assistiu, desde o início, à derrocada das tropas invasoras. Leiam o que escreve no seu livro: “Toda a potência defensiva das FAPLA foi dirigida contra o comando do Regimento do Presidente Steyn e contra uma UNITA já em fanicos”.

O comandante do célebre Batalhão Búfalo, do seu posto de observação, verificou que as forças de artilharia invasoras recuaram para áreas mais seguras. Os comandantes perceberam que face à barragem de fogo das FAPLA e à intervenção dos MIG da Força Aérea Nacional, a derrota estava garantida. Só faltava saber a sua dimensão.  

Jan Breytenbach dá uma indicação: “Se os nossos artilheiros se puseram ao fresco, o mesmo não se pode dizer dos pobres soldados de infantaria da UNITA, que entraram em acção encavalitados nos tanques Oliphant e nos Ratels. Os seus mortos ficaram espalhados em grande número pelo campo de batalha”. (The Buffalo Soldiers The Story of South Africa’s 32º Battalion 1975-1993. Página 309).

O coronel Jan Breytenbach aponta muitos factores para o desastre militar. Mas mais uma vez implica a tropa de Savimbi. E escreve: “O oficial de inteligência da UNITA, Caxito, forneceu estimativas incorrectas da situação geral. Ele baseou-se na opinião exagerada que Jonas Savimbi tinha de si mesmo, segundo a qual era o mestre da guerra de guerrilha no continente africano. Se qualquer um dos seus generais ousasse apontar os pontos fracos da estratégia de guerra de Savimbi, isso era considerado um insulto imperdoável. Essa audácia era geralmente recompensada com uma bala na nuca.”

O Coronel Jan Breytenbach, no seu livro “The Buffalo Soldiers The Story of South Africa’s 32º Battalion 1975-1993” escreve o epitáfio: “o dia 30 de Abril de 1998, marcou o início da ‘Operação Displace’, quando o comando mudou do coronel Fouché para o comandante Piet Nel, um célebre paraquedista, conhecido nos círculos castrenses como ‘Piet Graspol’ (PietTufo de Capim). Assumiu o comando de uma força que foi designada, erradamente, por 20º Grupo de Combate. A unidade devia ser designada por Grupo de Batalha 20. O grupo incluía o esquadrão antitanque do major Hannes Nortmann, uma companhia motorizada de fuzileiros do 32º Batalhão, duas secções de engenheiros e uma bateria G-5 de 155mm. A UNITA forneceu três batalhões para ocupar o sistema defensivo projectado para manter as FAPLA à distância”.

Em Pretória, P W Botha nem queria acreditar que as suas forças estavam derrotadas, quando os chefes militares lhe relatavam grandes êxitos no terreno e os jornalistas apresentavam Savimbi como um chefe militar imbatível. O derrotado presidente do regime de apartheid terminou o seu mandato a 15 de Agosto de 1989, um ano e meio depois da vitória das FAPLA no Triângulo do Tumpo e como resultado do Acordo de Nova Iorque. Entregou o poder a Frederik de Klerk, o presidente da transição.

Chester Crocker escreve sobre os meandros dos Acordos de Nova Iorque: “A missão do embaixador sul-africano Neil van Heerden a Washington, em Março de 1988, acabou por marcar o ponto de viragem na política externa sul-africana. Nós (os EUA) soubemos da decisão sul-africana de reunir com os cubanos e os angolanos em meados de Abril. Não havia necessidade de uma etapa intermédia de negociações de proximidade. Este era um encontro directo”.

A mudança na política externa de Pretória foi tão grande que deixou Washington de fora e P W Botha, face à derrota militar, decidiu negociar directamente com Angola e Cuba. Só mais tarde a diplomacia norte-americana voltou a ganhar protagonismo. Quem nunca esteve, nem de perto nem de longe, nas negociações, foi a UNITA. A criadagem ficou de fora.

Washington, no dia da Independência da Namíbia, meteu “uma cunha” ao Presidente José Eduardo dos Santos, nas instalações da nossa Embaixada em Windhoek, para dar uma mão aos derrotados. O argumento de Herman Cohen tinha peso: “Nós já não apoiamos Savimbi, O regime na África do Sul mudou. A UNITA torna-se uma organização pária que pode pôr em perigo a paz nesta região. O Presidente José Eduardo dos Santos concordou. Assim se chegou a Bicesse, uma oportunidade de ouro que Savimbi e os restantes sicários do Galo Negro desperdiçaram. Em 1992 regressaram à guerra e assumiram o papel de párias, inimigos da paz.

Paulo Lukamba Gato escreveu esta fantasia: “Conhecedores da personalidade e integridade do grande patriota Jonas Savimbi, os americanos temiam que os seus interesses pudessem ser postos em causa. Presumiram que Jonas Savimbi fosse capaz de fazer novas exigências no sentido de tornar mais justos os termos das negociações na área dos negócios”. O “grande patriota Jonas Savimbi” destruiu Angola, matou milhares de angolanos, fez milhões de deslocados e refugiados. E este aldrabão, a quem pagamos principescamente, ousa apresentar uma versão falsa!

A senhora Margareth Anstee, representante especial do secretário-geral das Nações Unidas em Angola, escreve no seu livro "Órfão da Guerra Fria”: “Para Savimbi, já que não podia ganhar nas urnas então ganhava com balas. Por isso, o primeiro passo para a guerra foi a decisão de Jonas Savimbi de não respeitar o resultado das eleições”. 

E prossegue: “Basta ver que as tensões recomeçaram quando os generais da UNITA saíram das FAA, situação agravada com todas as acusações de fraudes. A UNITA tinha ocupado 70 ou 80 por cento do país, inclusive cidades onde nunca estivera presente antes. Finalmente o Povo Angolano, o Governo e as Forças Armadas, acabaram por vencer. Foi uma solução militar, pois não tiveram outra solução a não ser o desaparecimento de Savimbi do cenário. Antes das eleições, Savimbi chamava-me mãe mas depois das eleições, tratou-me de prostituta internacional e ameaçou assassinar-me”.

A primeira fase da Guerra pela Soberania Nacional e a Integridade Territorial, entre 11 de Novembro de 1975 e Março de 1988, foi contra uma coligação internacional cujos actores principais eram os EUA, Reino Unido França e República Federal da Alemanha, ao lado do regime racista de Pretória. Essa coligação foi formada em 1974, após as conversações entre o presidente Spínola e o presidente Mobutu, na Ilha do Sal.

Em Junho de 1975, Angola foi invadida por forças dessa coligação internacional, a Norte. Em Cabinda, Novembro, poucos dias antes da Independência Nacional, aconteceu a Grande Batalha do Ntó. As tropas sul-africanas, reforçadas com mercenários do Esquadrão Chipenda, FNLA e “Flechas” da UNITA, invadiram o Sul de Angola. Chegaram ao Planalto Central e ao Leste. Na rota para Luanda foram travadas na Grande Batalha do Ebo, já após a Independência Nacional.

Angola enfrentou a mais agressiva e reaccionária aliança militar que alguma vez se formou no planeta, com a ajuda dos seus aliados. A República de Cuba enviou tropas para Angola, ao abrigo dessas relações. A África do Sul e seus aliados eram as potências agressoras. Os invasores. A UNITA serviu apenas de capa a essas agressões contra um Estado Soberano membro da ONU desde 1 de Dezembro de 1976. 

Os líderes dessa coligação diziam que o conflito era entre a UNITA e o Governo de Angola. Eles não se entendem! Puseram os seus Media a classificar as agressões e invasões como uma “guerra civil”. Tantos anos passaram e ainda há angolanos que seguem essa cartilha! Na Ucrânia combatem numerosos militares dos países da OTAN (ou NATO). Potências ocidentais despacham milhares de milhões de dólares ou euros em armamento para os nazis de Kiev. Em dinheiro já foram triliões! Até Portugal mandou 126 milhões de euros. É uma guerra à civil.

As tropas cubanas em Angola não eram invasoras, eram aliadas e participaram na defesa do país, a pedido do Governo Angolano. Qualquer um sem quociente de inteligência negativo sabe que as FAPLA sozinhas não tinham força para enfrentar a poderosa aliança que se formou para impedir a Independência Nacional. Para atentar contra a soberania nacional e a integridade territorial. Apesar de João Lourenço ser das FAPLA, ainda não era extra terreste nem deus como agora. Há limites para a ignorância ou a traição disfarçada de ignorância. 

O Acordo de Bicesse foi violado gravemente pela UNITA apenas quatro dia depois da assinatura de Jonas Savimbi, quando ao serviço da inteligência militar de Pretória escondeu 20.000 homens e as melhores armas em bases secretas no Cuando Cubango. Os historiadores angolanos ignoram estes factos. Mas, ironia das ironias, historiadores e analistas sul-africanos, servidores do regime de apartheid, escreveram vários livros sobre a “Guerra em Angola”. Pelo menos leiam o que eles escreveram. Para não se comportarem como bestas insanáveis.

* Jornalista

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