Macron liderou e Costa apoiou: lei da IA foi alterada para permitir mais vigilância sobre os cidadãos
O novo regulamento europeu autoriza o uso de ferramentas de IA na vigilância com base nas opções políticas ou religiosas das pessoas. No debate entre governos, Portugal foi a favor dessa utilização a coberto da justificação com razões “de segurança nacional”.
Uma investigação do consórcio de jornalistas Investigate Europe analisou em detalhe os relatos das reuniões entre embaixadores dos governos da União Europeia em Bruxelas para a redação final do Regulamento Europeu da Inteligência Artificial, o primeiro conjunto de leis sobre esta área em todo o mundo. Foi nessas reuniões no segundo semestre de 2023 que se produziram alterações substanciais à versão do documento proposta pela Comissão e aprovada pelo Parlamento Europeu, que tinha como objetivo dar resposta às preocupações com as ameaças à privacidade e os preconceitos embebidos nos algoritmos e tecnologias de inteligência artificial (IA).
Macron e Costa alinhados no reforço da vigilância policial com IA
Na versão aprovada no Conselho da UE e que entrará em vigor já a 2 de fevereiro, os governos passam a poder usar ferramentas de IA que permitem seguir cidadãos em espaços públicos em tempo real, usar tecnologia de reconhecimento facial sobre suspeitos com base nas suas opções políticas ou religiosas ou monitorizar refugiados nas zonas fronteiriças.
O reforço do poder das forças de segurança para vigiar cidadãos foi uma das alterações feitas nestas reuniões à porta fechada, num esforço liderado pela França e seguido por outros governos, incluindo o português, na altura liderado por António Costa. Contactados pelo consórcio de jornalistas, nem a Representação Permanente de Portugal na UE (REPER) nem o ex-ministro da Administração Interna José Luís Carneiro quiseram esclarecer de onde surgiu a decisão política para assumir aquela posição nas negociações.
Exceção aberta para vigilância de empresas privadas “vai contra todas as Constituições”
Embora o uso de AI nos espaços públicos seja proibido neste regulamento, com a versão original a prever apenas o uso por parte dos militares, o governo de Macron conseguiu alargar essa exceção para todas as forças de segurança, desde que invocadas razões de “segurança nacional”, o que abre a porta à vigilância de manifestações com estas ferramentas. E conseguiu ainda derrubar as restrições previstas inicialmente, como a necessidade de aprovação por parte de uma agência nacional ou a declaração do dispositivo num registo público, bastando para isso invocar as mesmas razões.
A nova versão alarga ainda estas exceções a entidades privadas e até a estados terceiros. “A França poderá por exemplo pedir ao governo da China que use os seus satélites para fazer imagens e depois vender esses dados ao governo francês”, afirmou sob anonimato um jurista do Partido Popular Europeu, que defende que este artigo do regulamento “vai contra todas as Constituições, contra os direitos fundamentais e contra a lei europeia”. E também vai contra decisões tomadas pela justiça europeia, como no caso em que empresas de telecomunicações francesas foram condenadas por guardarem dados de clientes alegando razões de segurança nacional. Com o aval do Tribunal Constitucional, a França estreou-se a nível europeu na vigilância com ferramentas de AI durante os Jogos Olímpicos de Paris, considerada pela Amnistia Internacional como “uma ameaça grave às liberdades cívicas e aos princípios democráticos”.
Ao interesse francês em diluir as proibições do uso destas tecnologias não é alheio o facto de neste país estarem sediadas algumas das principais empresas europeias do setor. Numa das reuniões, o representante francês afirmou que caso não fosse permitida uma utilização mais ampla destas tecnologias, “havia o risco de as empresas deslocalizarem as suas atividades para regiões onde os direitos fundamentais não desempenham um papel importante”.
Reconhecimento facial permitido para investigar 16 tipos de crimes. Hungria, Itália e França queriam muitos mais
Outras ferramentas que passam a estar proibidas nos locais de trabalho, escolas ou universidades, como as tecnologias de reconhecimento emocional, que permitem por exemplo avaliar as intenções de compra dentro de uma loja ou a satisfação dos trabalhadores dentro de uma empresa, serão permitidas a todas as forças de segurança graças ao lóbi feito pela França. O mesmo se passa com os sistemas de identificação biométricos que são usados para determinar a raça, as opiniões políticas, a religião, a orientação sexual ou a filiação sindical: a lei vai proibi-los, mas abre a exceção para as polícias, que poderão recolher esses dados ou mesmo adquiri-los a empresas privadas.
O software de reconhecimento
facial em tempo real pelas forças de segurança passa a ser autorizado na
investigação de 16 tipos de crimes específicos considerados graves, incluindo
terrorismo, homicídios, violações, raptos, pornografia infantil e exploração
sexual de menores, assalto á mão armada, tráfico de drogas, armas, material
nuclear, órgãos e seres humanos, sabotagem e desvios de aviões ou navios. O
crime com definição mais vaga desta lista é o “crime ambiental”. Mas a França e
outros países, como a Itália, Chipre, Estónia, Letónia, Bulgária e Hungria,
tentaram também alargar a lista a muitos outros crimes, desta vez sem sucesso.
O uso desta ferramenta no espaço público, avisava em
Nova lei “é um instrumento pró-indústria” para “facilitar a vigilância”
“Com uma série de lacunas e omissões burocráticas, a Lei da IA fica aquém da legislação ambiciosa e protetora dos direitos humanos que muitos esperavam”, disse ao Investigate Europe a co-fundadora da Iniciativa Equinox para a Justiça Racial. Para Sarah Chander, esta legislação “é um instrumento pró-indústria concebido para acelerar o mercado europeu de IA e promover a digitalização dos serviços públicos”.
“Em última análise, estamos a viver num clima em que os nossos governos estão a insistir em mais e mais recursos, leis e tecnologias para facilitar a vigilância, o controlo e a punição das pessoas comuns”, prosseguiu a ativista, concluindo que ficamos “mais longe de um futuro em que os recursos poderiam ser gastos em provisão e proteção social em vez de tecnologia de vigilância.”
Regulamento abre a porta ao policiamento preditivo
Outro alçapão legal incluído na versão final do Regulamento europeu vem autorizar o recurso ao policiamento preditivo, em que é usado um algoritmo para prever quem irá supostamente cometer um crime no futuro. Os únicos países europeus a admitirem o seu uso são os Países Baixos e a Espanha, que ocupava a presidência da UE no segundo semestre de 2023, quando estas negociações se concluíam.
Nas reuniões entre embaixadores, o representante espanhol defendeu o policiamento preditivo como uma “importante ferramenta para o trabalho da polícia”. No mês seguinte, os representantes da Irlanda, Chéquia e Finlândia defenderam também a retirada da proibição completa destas ferramentas. A versão final acabou por permitir que sejam usadas, desde que exista supervisão humana da sua utilização.
* Título PG
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