terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

GLOBALIZAÇÃO DESREGULADA




Mário Soares – Diário de Notícias, opinião

1. A globalização económica desregulada não trouxe ao Mundo, como se esperava, uma nova ordem mundial, nem paz, nem qualquer progresso social. Ainda se está para ver como vão evoluir os novos Estados ditos emergentes, que se tornaram colossos económicos - ou talvez melhor, financeiros - sem que os Direitos Humanos, das respetivas populações, fossem respeitados e houvesse nos Estados qualquer aprofundamento democrático. Talvez com a única exceção do Brasil.

A corrida às armas voltou a ser uma preocupação dos Estados, tanto dos grandes, a Rússia, a China, os Estados Unidos, que as fabricam e vendem, aos países mais pequenos, incluindo as armas nucleares, que continuam a proliferar. Um perigo e uma vergonha!

O tempo corre, os progressos científicos são uma indiscutível realidade, em praticamente todos os domínios da Ciência, mas não surge uma nova ordem mundial, capaz de fortalecer a ONU, como se esperava, nos anos finais do século passado, e ponha termo aos conflitos armados que se vão manifestando, com mais ou menos força, em todos os Continentes. Os Objetivos do Milénio, assinados por quase todos os lideres políticos mundiais, do tempo, foram esquecidos e ficaram no papel, se não foram, pura e simplesmente, para o caixote do lixo da história...

Os grupos dos Estados mais poderosos - o G2, o G7, o G20, etc. - foram criados, entre os Estados mais ricos, para enfraquecerem a ONU. Mas a verdade é que deles nada resultou, para além do barulho da comunicação social que propagaram, sem objetividade, os diferentes Gs.

Qualquer estudo sobre as primeiras décadas do novo século mostrará o recuo civilizacional que tem afetado o Planeta, dadas as crises financeira e económica, mas também social, política e até moral, que nos têm vindo a envolver.

As perspetivas que nos chegam neste ano aziago de 2012, estão longe de serem boas. Pelo contrário. No entanto, os Estados Unidos parecem estar a melhorar, ligeiramente, no que se refere ao crescimento económico e à baixa do desemprego. Se em Novembro próximo, Barack Obama, ganhar as eleições, aos fanáticos republicanos, então sim, espero que se abram, ao Ocidente, novas perspetivas.

Pelo contrário, quanto à União Europeia, a impressão que nos dá é que vai de mal a pior, talvez a caminho de uma catástrofe anunciada... A última Cimeira foi tão só um novo passo dado em vão. Veremos a próxima, que se aproxima. Nunca houve tantas Cimeiras para tão poucos resultados...

É certo que temos eleições presidenciais na França, que podem vir a constituir uma viragem política importante, se François Hollande ganhar, como espero, a Nicolas Sarkozy. E em 2013 haverá eleições na Alemanha, que deverão ser fatais para a Chanceler Merkel. O SPD voltará, creio, ao poder. Nessa hipótese, bastante provável, consumar-se-ia, necessariamente, uma mudança à Esquerda que levaria a União Europeia a ser de novo uma referência política, social e económica, em termos mundiais.

2. O Ocidente conta muito menos. A Rússia e a China, conjugadas, impediram que o Conselho de Segurança da ONU, aplicasse - como devia - sanções à Síria, para terminar com a carnificina intolerável imposta pelo ditador Bashar al-Assad. Seguiu, aliás, na linha do seu falecido pai, que conheci, pessoalmente, numa missão da Internacional Socialista em que participei.

A Síria está, assim, a desintegrar-se como sucedeu ao Iraque, com a passagem para o campo insurrecto de muitas centenas de soldados, antes fiéis ao regime. A Liga Árabe que, felizmente, adotou uma linha de paz, ficou um pouco paralisada com o veto da Rússia e da China. Dadas as divergências religiosas que enfraquecem o regime baasita, não me parece fácil que o governo sírio, se possa aguentar muito mais tempo. Mas o que se segirá, não é fácil de prever, dados os exemplos da Líbia, do Egito e mesmo do Iraque...

3. A primavera islâmica. 2011, parecia indicar uma grande viragem democrática no universo islâmico. No entanto, só a Tunísia, até agora, foi um sucesso pacífico. Porque tanto a Líbia, que perdeu o seu ditador Kadafi, como o Egito, o Estado charneira da Região, que está a julgar Moubarak, apesar das mortandades a que deram lugar, não é fácil saber como vão evoluir.

De qualquer modo, a semente democrática ficou e tudo vai ser diferente daqui para o futuro. Muito do que se vai passar terá a ver com o preço do petróleo e as guerrilhas religiosas no universo islâmico. A Argélia e Marrocos, que parecem ter percebido a necessidade de se aliarem, e a Mauritânia, no Magrebe, bem como uma certa confusão que vai no Próximo Oriente, da Jordânia à Arábia Saudita, do Líbano aos Emiratos e à Palestina, têm uma evolução imprevisível.

Essa imprevisibilidade tem a ver com o Irão, República Islâmica xiita, que é hoje um Estado muito complexo e diferente dos outros, até pelo seu tamanho e riqueza, mas também por estar próximo, segundo dizem os meios americanos, de fabricar a bomba atómica, vive em conflito latente com Israel, Estado que tem há muito tempo armas atómicas, dadas pela América. É, pois, muito difícil perceber com uma situação tão difícil, vai evoluir.

Quanto a Israel, penso que está a fazer uma política agressiva, baseada nos apoios do lobby judaico americano, que pode, no futuro, vir a tornar-se menos colaborante do que tem sido. A União Europeia, embora internacionalmente paralisada, também tem dado sinais no mesmo sentido, isto é: de que Israel não pode fazer tudo quanto lhe apeteça, sem concertar antes a sua política com os seus aliados... De políticos irresponsáveis estamos todos fartos.

A verdade é que certos Estados da Região: a Síria, o Irão, a Palestina, Israel e o Egito se poderão tornar explosivos de um momento para o outro, tendo como temos uma ONU indecisa e com pouco poder de intervenção.

4. A Igreja Católica em crise. Também a Igreja, apesar das aparências, parece estar com problemas. O Papa Bento XVI, há dias, presidiu a uma cerimónia de proclamação de 22 novos Cardeais, de maioria europeia. Portugal ganhou mais um Cardeal. A Europa, aos olhos do Papa, que vai fazer 85 anos e tem problemas de saúde, no que toca à sua mobilidade, é considerada uma "terra de missão". Porque deseja cortar cerce com o que chama "o declive do catolicismo europeu".

É certo que, nos últimos tempos, nos diferentes Estados europeus, mas não só, foram descobertos vários escândalos de abusos sexuais e relativamente aos negócios da Igreja. Mas, independentemente desses casos, o Papa tem outras preocupações: as sociedades materialistas do nosso tempo, a falta de valores éticos e um sistema económico em que só conta o dinheiro (tráfico de armas e de drogas, a ignorância dos Direitos Humanos e das questões ambientais). Por isso o Papa disse que "a Europa é uma vinha devastada por javalis".

Na verdade a Igreja não pode deixar de se sentir mal com o capitalismo de casino, do tempo que vivemos. A doutrina social da Igreja, que esteve na base de uma das famílias políticas - a democracia cristã - que construíram a União Europeia (a outra, foi o socialismo democrático ou a social democracia) passou a ser completamente ignorada nos seus valores, quando os Partidos se tornaram populistas, conservadores e neoliberais (isto é, PPs), os quais, hoje, dominam a grande maioria dos Estados europeus.

L'Osservatore Romano, periódico oficial da Santa Sé, descreve, num artigo recente, o Supremo Pontifície como "um pacífico pastor, rodeado de lobos". Nesta breve frase se sente o mal-estar do Vaticano, nesta Europa materialista e insegura em que vivemos, quando há, obviamente, uma crise de fé. Por isso, talvez, Frei Bento Dominges, no seu habitual artigo de Domingo, no Público, escreveu "a hora do Concílio é hoje". E acrescenta: "Tornar a sério a interfecundidade do diálogo com ateus, agnósticos, com outras configurações religiosas do Oriente e do Ocidente, com outras Igrejas cristãs, é um imperativo para um novo Concílio". Oxalá assim seja, diz um agnóstico, como eu...

5. Crise profunda do capitalismo. Não sou eu que o diz. É Michel Rocard, socialista e ex-primeiro-ministro de França, na época de François Mitterrand. Com 82 anos, acaba de publicar um livro intitulado "Mes points sur les i". Não o li ainda, porque não chegou às livrarias portuguesas. Mas permito-me refletir sobre uma entrevista que deu a Le Monde de 27 de Fevereiro último. Diz ele: "o capitalismo entrou numa crise profunda, sem nenhum regresso à normalidade. Nada será como antes". E acrescenta "a Direita acredita que podemos trabalhar mais e voltar a ter crescimento. É falso. A sociedade de amanhã será radicalmente nova. Será menos mercantil e menos cúpida".

Não quer isto dizer que o capitalismo vai desaparecer, como tal, visto que ainda não se encontrou maneira de o substituir. Mas vai mudar radicalmente, "declarando guerra às finanças, tais como estão", como disse François Hollande, que aliás é o autor do prefácio do livro de Rocard. E cita o exemplo de Franklin Roosevelt que pôs a finança toda contra ele, por ter imposto a separação absoluta entre os bancos de depósito e os de investimento. E a verdade é que durante sessenta anos o Mundo viveu ao abrigo de crises financeiras. A própria Inglaterra, "a pérfida Albion", que é a casa-mãe do pensamento monetarista, começa a querer proteger-se dos excessos que contribuíram para criar a crise que hoje nos aflige. Cameron, o primeiro-ministro do Reino Unido, parece querer voltar à União Europeia, mas fazendo dela uma EFTA em ponto grande...

Numa palavra, não é o capitalismo, em si mesmo, que está em causa. É a sua desregulação monetarista, que tem de mudar, obedecendo a valores éticos, dominando os mercados especulativos e impondo as conquistas sociais, que trouxeram à Europa sessenta anos de bem-estar.

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