sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

O GOVERNO FEITOR




José Manuel Pureza – Diário de Notícias, opinião

A hecatombe, já indesmentível, da Grécia está a provocar uma crescente tensão no Governo. De Atenas vem a prova de que a receita da austeridade falha em toda a linha e que o seu resultado é o crescimento do peso da dívida no produto e não a sua diminuição. E se há traço marcante do último mês é o de que, nas praças financeiras e nas chancelarias europeias, se acentuou uma perceção de Portugal como parceiro de destino da Grécia, estando ambos separados, pelas piores razões, de Espanha e de Itália. Só isso justifica que, sobre os dois países, se multipliquem expressões de teor assumidamente colonial dos companheiros alemães de Passos e de Seguro.

Encurralado no beco em que se quis meter, o Governo dá evidentes sinais de nervosismo. E só isso explica a sucessão de gafes comunicacionais do primeiro-ministro. Do custe o que custar às pieguices, Passos dá o flanco à crítica com um primarismo surpreendente. Não que ele não tenha dito exatamente o que lhe vai na alma (e isso é que é grave). Mas não fora o nervosismo criado pela pressão do desastre à vista e o cuidado semântico teria sido certamente outro.

É também essa pressão que explica o disparate da não concessão de tolerância de ponto aos funcionários públicos no Carnaval. Um disparate, sim. Porque a decisão terá sempre efeitos totalmente contrários aos motivos invocados para a tomar. Se os municípios e os privados alinharem no disparate, as perdas de investimento feito e de animação económica local serão de grande monta, num tempo em que investimento e animação económica são precisos como o pão para a boca. Se, ao contrário, os municípios e os privados se borrifarem para o disparate de Passos, então teremos um primeiro-ministro ridicularizado pelo País. Ou seja, trata-se de uma decisão que mistura erro económico crasso com crispação desnecessária. O País fica sempre a perder.

Como explicar então a obstinação imprevidente do Governo? A resposta certa é fundamentalismo servil. Este Governo relaciona-se com o País como feitor das autoridades coloniais. E, como bom feitor, a sua preocupação é mostrar a quem manda que pode confiar plenamente no feitor. É sempre assim: o feitor vai sempre mais além do que as autoridades da metrópole querem. Para mostrar serviço. O feitor sabe que a sua função principal é disciplinar os autóctones, para amaciar o caminho a quem manda. Quando Passos diz que "ninguém iria compreender" que o Governo desse tolerância de ponto no Carnaval, o que realmente está a dizer é que talvez a troika achasse mal e isso despertaria iras incontidas contra o Governo-feitor. A preocupação do Governo é, por isso, não abrir uma única brecha no seu discurso sobre as virtualidades curativas dos sacrifícios para o País. E manter as pessoas num redil disciplinado, amarrando-as a um discurso de autoflagelação que não lhes dê margem para pensar sequer em alternativas.

Definitivamente, a razoabilidade deixou de interessar ao Governo. É apenas um fundamentalismo moral de autopunição dos portugueses que determina as suas decisões. Se ainda houvesse um vislumbre de ligação à realidade, o Governo saberia retirar as necessárias ilações do facto de as receitas públicas na Grécia terem caído 7% num ano, quando as previsões apontavam para crescimento de 9%. Houvesse no Governo um mínimo de disponibilidade para ler os factos com rigor e a obsessão com o abismo da austeridade seria vista como ela é de facto: o alimento do desastre. Mas isto são pieguices aos olhos de um feitor que nos quer alinhadinhos a cantar hinos de louvor a quem nos condena ao eterno sacrifício.

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