Miguel Jorge – PE Desenvolvimento
Falar de Cuba é, quase sempre, sinônimo de provocar polêmica: ou se é totalmente contra ou se é totalmente a favor, por razões conhecidas e que não vale a pena recordar neste artigo. Tem sido assim nos últimos 50 anos, pelo menos, e essa situação ainda deve continuar por um tempo razoável.
No entanto, algumas hipocrisias sobre Cuba devem ser colocadas à luz do dia. Por exemplo, entre 2007 e 2010, fui seis vezes à ilha, como ministro, e, em três delas, encontrei um governador americano tentando vender os produtos de seu Estado. Na inauguração da Feira Internacional de Havana, na qual o Brasil tem participação importante, sempre com cerca de 40 de nossas pequenas e médias empresas como expositoras, fui convidado para subir ao palco. Logo depois de mim, foi chamado um governador americano, que ficou a meu lado e ao lado de Ramon Castro, irmão mais velho de Fidel e Raul.
Até 2009, os Estados Unidos vendiam para Cuba toda a soja consumida no país - isso mudou depois que, em negociações com o governo cubano, substituímos os fornecedores americanos por brasileiros. O incrível é que, para comprar a soja, os cubanos, além de pagar adiantado, precisavam aguardar que um navio americano desembarcasse o produto no porto de Kingston, na Jamaica, para ser, então, embarcado em outro navio para Cuba (qualquer navio que atraque em Cuba fica impedido de atracar em todos os portos dos Estados Unidos durante seis meses, pelo menos). Com tantas manobras, os cubanos pagavam entre 20% e 30% a mais pela soja - e os EUA mantinham, sem sustos, a hipocrisia do bloqueio econômico à ilha.
Espera-se que a relação comercial e os acordos com Cuba fortaleçam, cada vez mais, a posição brasileira na ilha
No segundo governo do presidente Lula, a estratégia de comércio exterior foi absolutamente prática. Todo e qualquer mercado, em qualquer lugar do mundo, tinha importância - se pudéssemos vender um frango a mais, nós nos esforçaríamos para isso -, sendo fundamental abrir o máximo possível de mercados para os produtos brasileiros.
Daí, a grande quantidade de missões comerciais, a maioria delas com cerca de 100 empresários brasileiros, inclusive transportados pelo Sucatão, o velho, mas bravo e eficiente 707, que Lula autorizou ser usado pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (Mdic).
Não por acaso, a América Latina era um dos objetivos de nosso comércio exterior, pois é mais fácil vender para os vizinhos que a milhares de quilômetros de distância. Exatamente por isso, houve um impressionante aumento do comércio com alguns desses países, entre eles a Venezuela (nosso superávit comercial com o país chegou a quase US$ 5 bilhões, quando, oito anos antes, o comércio bilateral mal atingia US$ 1 bilhão). Com a Colômbia, nos últimos quatro anos do governo Lula, o fluxo comercial passou de US$ 2,7 bilhões para US$ 3,2 bilhões, e crescimento semelhante ocorreu com outros países - sem contar o grande aumento entre os países do Mercosul, com destaque para o comércio com a Argentina.
Claro que, em proporções muito menores, Cuba também estava no radar, com o ministro do Desenvolvimento acompanhando empresários brasileiros que tinham interesse e possibilidade de investir na ilha.
O exemplo de que o país tratava com seriedade os investidores estrangeiros vinha da Brascuba, empresa brasileira, subsidiária da Souza Cruz (controlada pela multinacional American and British Tobacco), que está na ilha há 16 anos. A Brascuba, que tem o governo cubano como sócio - no sistema que prevalece por lá -, fabrica cigarros e cigarrilhas (entre eles, a famosa e tradicional marca Cohiba), controla cerca de 20% do mercado e ainda exporta. Pode enviar dividendos para o Brasil (o que tem feito costumeiramente) e não enfrenta mais dificuldades que uma empresa instalada por aqui.
Por isso mesmo, a partir de 2008, as negociações comerciais avançaram com muita rapidez, especialmente devido ao interesse de Cuba em aumentar as relações comerciais com o Brasil. O empréstimo do BNDES para reconstrução da principal rodovia da ilha foi redirecionado para o ambicioso projeto de construção do porto de Mariel, a 50 km de Havana, com previsão de aplicação de US$ 500 milhões - a mudança da rodovia para o porto fazia todo o sentido, em vista da importância do projeto.
Esse porto ficou conhecido depois que cerca de 10 mil cubanos invadiram a embaixada do Peru para saírem de Cuba, em 5 de abril de 1980 - entre esse mês e 31 de outubro, segundo a própria Dirección de Immigración y Extrangeria cubana, cerca de 125 mil cubanos deixaram a ilha, a maioria para a Flórida.
O novo porto de Mariel, em uma região privilegiada para um projeto desse porte, será o maior do Caribe, e inclui a construção de rodovias e de um grande parque industrial, que terá zonas especiais de exportação. Evidentemente, esse porto, que poderá movimentar mais de um milhão de contêineres/ano, somente fará sentido com o fim do bloqueio americano e com mudanças estruturais no sistema econômico da ilha - foi nisso que se apostou, da parte do ministro do Desenvolvimento brasileiro, com apoio do presidente Lula. Uma das maiores empreiteiras brasileiras, que já decidira participar da reconstrução da estrada, trabalha há três anos nas obras do porto, e segundo informações, já emprega cerca de 3 mil pessoas.
No segundo mandato do governo Lula, foram assinados acordos entre o Mdic e o ministro Rodrigo Malmierca, do Comércio Exterior e Investimento Estrangeiro de Cuba: 1) na área farmacêutica, para construção de fábricas de soros, de cremes e unguentos, de equipamentos hospitalares e de hemodiálise; 2) de reabilitação de uma planta de cimento; 3) de exploração de petróleo em um bloco no Golfo do México e construção de uma planta de lubrificantes, ambos pela Petrobras; 4) de uma fábrica de vidros planos por uma empresa de São Paulo, com previsão de exportação de 80% da produção; 5) de uma fábrica de móveis metálicos; 6) de reaparelhamento de vários hotéis com produtos brasileiros (móveis, pisos e revestimentos cerâmicos, etc).
Espera-se que esses projetos, mais o financiamento para a importação de alimentos brasileiros - a presidente Dilma Rousseff acaba de liberar um crédito rotativo de US$ 400 milhões para a compra de alimentos no Brasil e outro, de US$ 200 milhões, para um programa de incentivo agrícola -, além de várias outras boas possibilidades de negócios em diversos setores, fortaleçam, cada vez mais, a posição brasileira na ilha.
Assim, enquanto os EUA se debatem em uma severa crise econômica, e, paradoxalmente, precisam de novos mercados, mas mantêm restrições comerciais à Cuba, o Brasil já é o segundo maior parceiro comercial latino-americano dos cubanos, depois da Venezuela. E caminha para ampliar sua presença na região, de olho na ainda tímida, mas progressiva, abertura econômica do país caribenho.
*Miguel Jorge é jornalista, foi ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior no governo Lula (2007-2010).
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