António Marinho Pinto – Jornal de Notícias, opinião
O julgamento e a condenação do juiz Baltazar Garzón pelo colectivo de juízes da secção criminal do Tribunal Supremo de Espanha (TSE) constituem um profundo revés para todos aqueles que (se) alimentam (d)a promiscuidade entre a justiça, a política e a comunicação social. Não há memória, nos anais de vida judiciária, de um juiz que tão insensatamente tenha misturado a actuação funcional com a política e o vedetismo mediático. Baltasar Garzón comportava-se, em muitos aspectos da sua função, como uma espécie de braço do PSOE na justiça espanhola, tendo mesmo chegado a integrar um governo liderado por este partido. A sua sede de protagonismo mediático transformou-o numa vedeta de certos órgãos de informação a quem constantemente fornecia manchetes sensacionalistas, com decisões, não raro, ilegais.
Em qualquer país civilizado, um juiz é, por definição, um homem profundamente respeitador da legalidade, sobretudo, da lei fundamental que é a constituição. Um juiz muito raramente pode ser notícia, pois quando isso acontece, quase sempre é por maus motivos. Quando um juiz se torna, ele próprio, notícia, pelo menos um dos dois não está bem - ou a notícia ou o juiz. Porém, Baltazar Garzón, há décadas que está permanentemente na comunicação social. Ele é o herói de todos os fundamentalistas que, lá como cá, enxameiam os órgãos de informação, incluindo alguns que se dizem de referência. Muitas das suas decisões torpedearam a lei, mas isso é um pormenor sem importância para as turbas justiceiras para quem os suspeitos de um crime não podem ter direitos. Em nome de uma radical eficácia investigatória, Garzón ignorou os limites da lei e violou os direitos fundamentais dos arguidos. A tortura policial de presos da ETA com que, sistematicamente, pactuou ao longo dos anos, ficará para a história como uma das páginas mais negras da justiça na democracia espanhola. Num país profundamente traumatizado pelos actos de violência urbana de uma organização independentista minoritária, o mais popular era não olhar a meios (legais) para atingir os fins. E Baltazar Garzón sempre pareceu estar mais preocupado com a sua popularidade do que com a legalidade. Que importância poderia, então, ter a tortura de «terroristas» num país onde sectores crescentes da população clamavam por vingança contra a ETA?
O seu vedetismo incontinente levou-o a cavalgar o oportunismo político mais primário, quando quis investigar os crimes do franquismo cometidos durante (e logo após) a guerra civil, ou seja, mais de 60 anos depois de cometidos e cerca de 30 anos depois de amnistiados por uma lei que consubstanciara, em si mesma, um verdadeiro pacto constituinte do actual regime democrático espanhol.
Mas foi com o caso que agora culminou na sua condenação que Baltazar Garzón revelou o seu desprezo pela legalidade. Obstinado em incriminar por corrupção um grupo de pessoas ligadas aos principais dirigentes do Partido Popular (que ele próprio mandara prender) e não conseguindo reunir provas suficientes, o «super-juiz» não hesitou em ordenar a gravação das conversas desses presos com os seus advogados.
Porém, numa decisão que ficará para a história da justiça espanhola e europeia, o TSE entendeu que, hoje, tais violações são próprias de regimes totalitários aonde tudo é válido para obter a informação que interessa ao estado. Considerou também que a decisão de Garzón não resultou de um mero erro de interpretação da lei, mas sim de um acto arbitrário que agredia a configuração constitucional do processo penal como um processo justo.
Uma decisão semelhante seria totalmente impossível em Portugal onde a generalidade dos juízes estão mais preocupados em protegerem-se uns aos outros do que em defender o estado de direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Mas são decisões como a do TSE que fazem a diferença entre uma justiça moderna e civilizada como é a de Espanha e uma justiça corporativa e medieval como é a portuguesa. Infelizmente, muito boa gente, incluindo políticos, ainda não percebeu que não há juízes de esquerda e de direita, mas, simplesmente, juízes e mercenários. E estes, sejam quais forem as suas tendências políticas, são sempre os piores inimigos da credibilidade da Justiça.
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