Eric Nepomuceno – Carta Maior
De acordo com dona Angela Merkel, austeridade significa o Estado cortar tudo, e que se dane a gentalha. Ao sabor de sua convicção, a União Europeia tem aplicado a receita por tudo que é canto. A radical receita dos neoliberais, entronizada por dona Angela e seus pares, se impôs. E, com ela, se impôs o fim do futuro de gerações de europeus. Estão todos – em Portugal, na Grécia, na Irlanda, na Espanha – entre a angústia e o desamparo. O artigo é de Eric Nepomuceno.
Nos tempos de meu avô José Augusto Nepomuceno a palavra austeridade tinha um sentido nítido. Ser austero era, dizia-se, de bom tom. Era, ou queria dizer, não ostentar, se conter, enfim, manter uma certa compostura diante das amarguras da vida – e das não amarguras também.
Meu avô foi-se embora no dia 10 de março de 1968. Um tempão. E, de lá para cá, a palavra austeridade ganhou outra força.
De acordo com dona Angela Merkel – a pronúncia recomendada é ‘Anguela’, dura como a sua alma – austeridade significa o Estado cortar tudo, e que se dane a gentalha. Ao sabor de sua convicção, a União Europeia tem aplicado a receita por tudo que é canto.
Os resultados, a gente começa a conhecer: os bancos são e serão salvos, as pessoas que se arrumem.
Penso nisso tudo quando leio sobre o que está acontecendo na Grécia, em Portugal, na Irlanda, na Espanha, e que daqui a um suspiro vai acontecer na Itália.
É mais ou menos o que durante décadas aconteceu aqui, na América Latina: um bando de sabichões disfarçados de sábios dizem o que deve ser feito, e ponto final. As consequências de suas sapiências são pagas pela ralé, pela gentalha, por isso que nas estatísticas merece o nome de população, e nos discursos, o nome de povo.
Leio e releito e trato de entender qual é o verdadeiro nó que enforca um país que conheço bem, a Espanha. Morei lá de 1976 a 1979, tempo de transição difícil entre a sangrenta ditadura franquista e a democracia, lá tenho amigos fraternos, lá vou com a frequência possível. Resumindo: além da memória, tenho em Madri as coisas básicas que fazem com que a gente se sinta em casa numa cidade. A saber: um garçom de confiança, um livreiro, um barbeiro e a lembrança de um grande amor.
Leio e releio, repito, os dados, números, cálculos, projeções sobre a economia espanhola e sua crise sem fim nem fundo. E fico pensando em como se chegou a essa catástrofe. E pensando em como esse panorama de pesadelo se estenderá a outros países. E em como encontrar uma saída.
Penso, por exemplo, na maneira em que uma dívida privada – dos bancos, das imobiliárias, resultado de uma especulação sem freios nem limites – se transformou numa dívida do Estado.
Em como um país pujante virou de repente um país pedinte. Penso em como será ser jovem num país que, com a maior taxa de desemprego da Europa – 25% da força de trabalho –, oculta uma outra e dura realidade: entre os que têm menos de 25 anos, o desemprego chega a 52%.
Penso em como deve ser um caldo duro de tragar ter 25 anos e nenhuma, absolutamente nenhuma, perspectiva de vida. De esperança.
Deve haver alguma razão para que ninguém mencione, fora da Espanha, as consequências cotidianas da tal austeridade preconizada e imposta por dona Angela e seus muitos asseclas.
Por exemplo: graças aos chamados ajustes de orçamento, o lixo em Madri passou a ser recolhido a cada dois dias. Para nós, brasileiros, pode parecer normal. Mas há décadas os madrilenhos estavam acostumados a ter uma cidade limpa. Os cortes orçamentários, os tais ajustes exigidos pela austeridade, chegaram ao lixo.
A saúde pública espanhola, que era modelo de qualidade e generosidade em todo o mundo, virou um deus-nos-acuda. Um amigo meu, um aposentado de 76 anos, acaba de ser notificado judicialmente: o tratamento contra o câncer que ele padece já não poderá ser feito em sua cidade. Ele terá de viajar, pois os centros clínicos municipais de sua província foram desativados e concentrados em três ou quatro a muitos quilômetros de distância. Como sua pensão foi ajustada – ou seja, drasticamente cortada – ele não sabe até quando terá dinheiro suficiente para essas viagens.
O número de acidentes nas autopistas aumentou, por causa da péssima conservação: as concessionárias, ou seja, as empresas privadas que vivem de pedágios, ganham cada vez menos, já que as pessoas, por causa dos tais ajustes, da tal crise, passaram a escolher estradas vicinais, onde ninguém paga nada para circular.
Os bancos serão salvos, é claro. Mas o filho de um amigo meu, que tem 43 anos e é advogado, está procurando trabalho no Canadá. Uma prima dele, que tem 33 anos, acaba de se mudar para a Suíça, onde encontrou emprego de garçonete – ela tem um doutorado em física.
Dia desses, li num jornal espanhol o seguinte título: ‘De la angustia al desamparo’. Nada mais justo, ao se falar da Espanha, de uma Europa que dismilingüe.
A radical receita dos neoliberais, entronizada por dona Angela e seus pares, se impôs. E, com ela, se impôs o fim do futuro de gerações de europeus.
Estão todos – em Portugal, na Grécia, na Irlanda, na Espanha – entre a angústia e o desamparo. O futuro foi-se embora.
Os bancos estão sendo salvos. Resta saber para quem.
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