domingo, 16 de setembro de 2012

CARTA ABERTA A ANÍBAL CAVACO SILVA

 


Um olhar sobre a situação em Portugal – Texto de António Pedro Dores*
 
Exmo. Senhor Presidente da República portuguesa,
 
Organizar a democracia – é responsabilidade de um povo!
 
Há que agradecer aos companheiros que tomaram a iniciativa de convocar as manifestações de 15 de Setembro de 2012. Sem eles, sem a sua insistência persistente, sem a sua confiança no povo, o povo não poderia apresentar-se de forma tão cabal como aconteceu neste dia histórico.
 
Há que reconhecer os frutos da estratégia política a que esses companheiros têm vindo a dar corpo. Liberdade para o povo se exprimir quando entender; igualdade das diferentes tendências políticas, organizadas ou não, para participarem sem censuras (o que não quer dizer sem discussão); fraternidade (anti-sexismo, anti-racismo, anti-vanguardismo, solidariedade, anti-securitarismo) no modo de organizar a política.
 
Está, evidentemente, outra vez e sempre, tudo por fazer. A revolução (no sentido da experiência do povo referida a 25 de Abril de 1974) recomeçou. Desta vez em democracia. Mas os dirigentes políticos e as instituições ainda não se pronunciaram sobre se optam pelo povo, em respeito pela democracia, ou se optam pelo saque, como fizeram muitas vezes no passado e como imagino que estes também vão fazer agora e para o futuro, enquanto puderem. Até serem corridos, como Miguel de Vasconcelos ou como os fascistas.
 
Não vale a pena aos responsáveis políticos e sindicais procurarem os responsáveis pela agitação. Manifestamente são eles próprios, assim saibam olhar-se ao espelho. Mas imagino que só tenham espelhos comprados à Branca de Neve. O que obrigará um esforço arriscado – mas urgente – ao povo português.
 
Houve as manifestações dos professores em 2008, a de 15 de Março de 2011 e as suas réplicas. Foram tímidas demonstrações da existência de um povo, comparada com esta. Entregámo-nos primeiro aos sindicalistas (os professores desempregados sabem o resultado) e depois à Assembleia da República (por isso tocou a todos a resposta dada: sem piedade).
 
A diferença é que esta manifestação foi do povo inteiro e consciente. Cantou o Hino para se anunciar, gritou o seu nome: “Portugal”, “Portugal”, ao modo do futebol. E fez a sua análise socio-político-económica: “GATUNOS!”
 
Quem duvida que há um soberano, uma entidade social efectivamente real que comanda – com as suas forças próprias – a vida deste país? Não foi uma aparição de Fátima. Como vão tentar fazer querer os comentadores encartados – que é essa a sua função servil.
 
A partir deste momento a voz dos hipócritas –e ele há tantos – perde a pouca razão que tinha. E o povo, nas suas diversas expressões, está a partir de agora autorizado a interpretar a rebelião como um direito, de resto previsto na Constituição.
 
Há quem pense que a democracia, principalmente no estado de degradação em que se encontra – já cheira mal – não será capaz de desenvolver alternativas. Aqui há que ponderar o que estamos a querer referir por democracia.
 
Se democracia são as instituições democráticas, os partidos, os sindicatos, as organizações patronais, a administração, o sistema judiciário, os órgãos de soberania do Estado, se democracia é isso, não serve o povo português. O Presidente da República e o Conselho de Estado que mandou reunir têm obrigação política de o reconhecer – porque é evidente – e declarar as instituições estarem a funcionar ao arrepio das suas competências e funções políticas, em prejuízo evidente do soberano; portanto contra a constituição e contra o Direito. As instituições estão fora da lei. Como muitos já têm chamado a atenção.
 
Para a democracia se realizar, no quadro do actual regime, o Presidente da República tem estrita obrigação de respeitar o seu compromisso de honra e fazer a declaração respectiva, tirando daí as consequências como pensar ser melhor para o povo. Caso contrário, o próprio Presidente arrisca-se a passar a ser considerado fora da lei e coveiro desta democracia.
 
Transição pacífica e organizada entre esta democracia e a próxima que se espera poder ser possível organizar em breve, depende do Senhor Presidente da República e da sua capacidade de fazer valer o seu bom juízo junto das restantes instituições, sobretudo as mais poderosas. Para isso pode contar com o povo, evidentemente. Para outra atitude, dava jeito pedir a demissão. Que outra personalidade capaz de conduzir o processo constituinte avance. Pois essa é evidentemente indispensável seguir-se, assim que possível.
 
A atitude do Presidente é, evidentemente, muito difícil. Sobretudo para ele. Só ele saberá como quer vir a ser apresentado nas aulas de história no próximo futuro.
 
Aos portugueses cabe-lhes mudar o (seu) mundo sem tomar o poder, cf John Holloway Change the World Without Taking Power. Organizar a democracia, essa é a grande lição destes últimos 40 anos, é um trabalho que não pode ser delegado, sob pena de grandiosos prejuízos. Formaram-se escolas de bandidos, mais ou menos secretas, mais ou menos partidárias, para organizar o saque e a respectiva divisão. Os portugueses satisfizeram-se com as migalhas, porque são humildes. Perderam de vista a corrupção social. Como se sabe desde Wilkinson e Pickett Espíto de Igualdade , a diferença de rendimentos tem efeitos perversos transversais a todos os aspectos da vida social. Isto é, não basta cada um ficar com o quinhão que lhe seja suficiente para viver. É preciso que todos e cada um nos asseguremos de existir uma distribuição de rendimentos tão equitativa quanto possível, para todos e cada um vivermos melhor. Para termos uma sociedade mais justa, independentemente do regime político e económico.
 
Precisamos de um regime democrático capaz de reconhecer o direito do povo a ser soberano (um sistema de justiça justo) e de instituições ao seu serviço (pela igualdade social na base da possibilidade de práticas fraternais, sem as quais, na prática será difícil ter-se liberdade e igualdade).
 
Esse regime democrático não é este que temos hoje. Há que separar as águas: quem está pelo povo e quem está contra o povo? Senhor Presidente da República?
 
Não votei em si. Desconfio com toda a minha razão de si e dos seus. Preciso de si, nesta ocasião, porque se é verdade que todos somos capazes de nos ressocializar, se o senhor quiser fazer isso hoje, agora, estará a evitar muitos esforços desgastantes e em vão bem como muito sangue.
 
ANTÓNIO PEDRO DORES -  antonio.dores@iscte.pt
 
*Liberal (cv), em Colunistas
 

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