Baptista-Bastos –
Diário de Notícias, opinião
O dr. Cavaco disse,
à publicação espanhola Expansión, que "Os políticos devem ouvir a voz do
povo." A frase é devastadoramente banal, mas ganha relevo porque o dr.
Cavaco, tão omisso, pontual e rasurado no que afirma, em Portugal, revela,
enfim, que tem escutado o clamor popular - sem lhe atribuir, no entanto,
importância de maior. A prática, por vezes "ascética", por ele
consagrada à res publica, nem sempre corresponde a equilíbrio, sensatez e
recato. As suas tendências ideológicas assumem contornos de cumplicidade. E não
é preciso castigar muito as meninges para se perceber que, manifestando, por
supressão ou abertamente, o apoio às políticas do Governo, se tornou conivente
com o descalabro.
Está por fazer a
análise das responsabilidades dele, no estado actual da nossa miséria, desde a
década em que foi primeiro-ministro. Sei quem está a tratar disso. E o que
dizem, nos fóruns das televisões, e alguns articulistas sem temor, conduzem-nos
a uma espécie de execração popular da enormidade do que ele fez. Outras
revelações se lhe seguirão.
Ele não é "o
Presidente de todos os portugueses." Se o fosse, há muito teria exercido a
tal magistratura de influência, agindo no campo geral da política e das relações
de poder. Passos Coelho está de rédea solta. E se as coisas não vão ainda mais
longe do que esta infâmia é porque "a voz do povo" o tem impedido.
Esta tipologia de face dupla tornou-se numa filosofia do quotidiano. Quando o
primeiro-ministro, com sórdido despudor, afirma que também está contra os
impostos, o processo de descaracterização da decência atinge expressões
múltiplas.
Os princípios
fundadores do 25 de Abril estão desfeitos. A própria noção de laços sociais foi
sobrepujada pela força das classes dominantes. A dissimulação, a meia-verdade,
a mentira sistemática, a hipocrisia como método (de que os dois casos apontados
são exemplos) caracterizam esta "nova" ordem. Produtos típicos de uma
época que inculca a ideia de que o poder é um "puro facto" ou um
"direito absoluto", tanto o dr. Cavaco como o dr. Passos são, apenas,
notas de rodapé de uma História cuja caminhada é sobressaltada por interregnos
como este.
Mas os estragos que
produzem são muitíssimo mais graves e insidiosos do que os explícitos pelas
políticas económicas. Atingem o mais fundo do nosso ser, porque incitam à
dualidade de carácter, à dependência do momento que passa, à ambiguidade do
inevitável e ao desprezo pela própria condição humana. O dr. Cavaco e o dr.
Passos representam o que de mais criticável existe. A figura do Estado deixou
de ser respeitável para se tornar na caricatura medonha de uma sociedade
desejadamente asseada. Um amigo que muito prezo, desde sempre enredado nas
longas batalhas que definem os homens livres, dizia-me, há dias: "Portugal
fede."
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