Urariano Mota,
Recife – Direto da Redação
Recife (PE) -
A imagem da menina do último carnaval, eu pensei tê-la esquecido. Dizem que uma
imagem vale mil palavras. Bobagem, diz não. Entre tantas que cometi no carnaval
que passou, do porta-estandarte de Banhistas do Pina, orgulhoso da sua
tradição, ao desfile do Bloco da Saudade, com suas mulheres bonitas, mais
um imenso galo ao fundo sobre a ponte, a mais bela é a que se mostra em cima
desta coluna. Ela ficou na memória, acredito, porque ela não era uma imagem. É
uma pessoa. É uma linda menina, passado e futuro do carnaval. A princesinha da
imagem era a filha da cozinheira de um boxe do Mercado da Boa Vista. Ela, a
menina, tão feliz estava, que nem comeu todo o seu almoço no prato. Talvez a
mãe, generosa como todas, tenha posto mais comida do que a menina queria. Mas
não, penso mais é que a princesinha estava tão feliz, que perdeu a vontade de
comer, assim como ocorre a todos nós em raras ocasiões. Quando o peito está
contente, para que melhor alimento?
A princesinha,
informa a foto, portava uma coroinha de lata, um vestidinho verde, umas
trancinhas que caíam em graça pelos lados da coroinha. O que a foto não diz é
que as trancinhas elegantes davam na gente uma vontade de cheirar os cabelos da
princesinha. Vontades assim dão na gente, de vez em quando, mas o adulto,
escolado, sabe que a beleza, se tocada, pode reagir mal. Assim como um cão
amarrado em corrente, que na infância enfiou os dentes na mão do colunista, bem
lembro. Não que a princesinha fosse morder. Pelo contrário, ela ainda mais sorriria
encabulada, penso. Mas morderiam este escrevinhador outros homens na multidão
do mercado, porque deviam achar descabido um beijo em trança rebelde de uma
criança negra. Coisa de pedófilo se aproveitando do carnaval, assim podia
pensar a maldade do vulgo em forma de julgamento. Por isso eu a toquei com os
olhos, que estavam encantados e úmidos de álcool e emoção, nessa mistura que
vem no rosto e nem a disciplina mais férrea consegue esconder.
Então pedi a minha mulher, “tire por favor a foto da princesinha”.
E o celular registrou.
Eu não lembro agora
o seu nome. É claro, eu lhe perguntei tudo, o nome, idade, bairro,
quem eram os pais, essas perguntas idiotas de repórteres que primam pela
objetividade. Ou seja, aqueles clássicos 5 burros Ws: Who, What, Why, Where,
When, que traduzidos se mostram mais límpidos ainda na sua burrice: Quem, O
quê, Por quê, Onde e Quando. Meu Deus dos ateus, só não perguntei à
princesinha, para minha salvação, se ela gostava de carnaval. Se gostava!...
ela era um sorriso amplo, guardado, de menininha cuja beleza não é um
esplendor, mas que faz a alegria e ternura da sua mãe. Isso, sim. Mas isso,
sim, também, transmite felicidade e amor a quase toda a gente.
Eu queria falar
tudo o que manda o coração para essa menina. Eu bem queria ser um homem feliz
por dizer tudo o que ela inspira em um espaço tão breve, que será visto de
passagem, entre um flash e outro da última notícia, entre a passagem de um
bloco, de um maracatu, de um clube ou outro nas ruas. Por isso digo apenas, antes
que esqueça, que o sorriso da princesinha era triste e feliz em um só
movimento. O triste vinha do seu modo de ser, ou da pequena experiência que ela
já possuía da crueldade do mundo. E feliz, ainda assim, porque tão poucas vezes
ela foi ou será princesa, uma princesinha, ainda que de mentirinha,
sorrindo para alguém que a descobriu no meio da multidão. E feliz também
ela era porque crianças não gostam de ser tristes, crianças retiram do maior
golpe um instante para sorrir. Como agora, nesta imagem do carnaval que passou
e permanece.
Então eu a vou
chamar de Mariinha, quem sabe, princesinha Maricota, quando mais próprio seria
chamá-la de Eutanasinha. Sim, uma pequenina eutanásia, porque no seu sorriso há
um quê de matar sem dor a gente, ou de matar suave, que é uma forma de matar no
coração que fala baixinho agora, enquanto o som dos clarins não toca mais alto:
olha, a humanidade está na infância e ninguém vê. É toda uma gente muito
bárbara, princesinha, tão bárbara, que pensou tê-la esquecido no carnaval do
ano que passou.
Dizem sempre e
repetem até o cansaço que uma imagem vale mil palavras. Bobagem, princesinha.
Difícil é encontrar a foto que expresse as mil palavras que o afeto dos mais
bárbaros quer dizer. Assim, façamos um acordo de paz provisória entre o que
pretendia tudo falar e a tua imagem no mercado: feliz carnaval,
Eutanasinha. O cheiro que não te dei vai nesta coluna.
*É pernambucano,
jornalista e autor de "Soledad no Recife", recriação dos últimos dias
de Soledad Barret, mulher do cabo Anselmo, executada pela equipe do Delegado
Fleury com o auxílio de Anselmo.
*Leia sobre o Carnaval (do Brasil) em TIMOR LOROSAE NAÇÃO, e mais sobre Timor-Leste (país sem Carnaval):
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