A mudança de
paradigma dos bancos centrais na América Latina foi chamada de populista e
demagógica por políticos, funcionários e colunistas do chamado primeiro mundo.
Curiosamente, hoje, quando no mundo desenvolvido se sugere ou se pratica
abertamente uma mudança de modelo, ninguém se lembra do epíteto. A análise é de
Marcelo Justo, de Londres.
Marcelo Justo - Carta Maior
Londres – Os países
desenvolvidos são velhos defensores do “faça o que digo, não faça o que eu
faço”. Um artigo de fé da ortodoxia neoliberal, eixo do Consenso de Washington,
era o lugar que ocupava o Banco Central em meio a um sistema financeiro e econômico
desregulado. Neste marco, a independência ou autonomia do banco central era
sagrada.
A política monetária de um país devia estar em mãos de técnicos especializados
e livres da influência dos governos de turno, sempre sujeitos à demagogia e à
lógica do curto prazo. E o eixo central – muitas vezes exclusivo – da Carta
Orgânica do Banco Central era o combate à inflação.
A crise econômica que estourou em 2007-2008 está mudando as coisas. Com uma
dívida descomunal nos Estados Unidos, Japão e em muitos países da União
Europeia, com injeções de dinheiro eletrônico para sanear o sistema financeiro,
os Bancos Centrais do mundo desenvolvido estão adotando um intervencionismo
adaptado às necessidades dos governos. Esta mudança se reflete nos meios onde
se discute cada vez mais abertamente a necessidade de esquecer o velho
parâmetro e substituí-lo por um diferente adaptado à nova realidade.
Em um artigo publicado recentemente no Financial Times, sugestivamente
intitulado “A era dos bancos centrais independentes está chegando ao fim”, o
economista chefe do HSBC, Stephen King, aponta nesta direção ao dizer que “não
se pode seguir falando de independência dos bancos porque eles criam ganhadores
e perdedores”.
King não é uma exceção. O ex-assessor da Reserva Federal de Nova York, Zoltan
Pozsar, e o economista que cunhou o termo “banca nas sombras”, Paul Mc Culley,
sugeriram em um artigo sobre a emissão de dinheiro eletrônico ou aceleração
quantitativa, que os bancos centrais devem trabalhar seguindo as ordens dos
ministérios de finanças para coordenar medidas fiscais e monetárias que ajudem
a lidar com a crise atual.
O Prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz, arrematou este debate dizendo que,
na verdade, tratava-se de um equívoco, uma ilusão ou um engano deliberado. “Não
há realmente instituições independentes. Todas têm que prestar contas. A
questão é para quem”, disse Stiglitz em uma conferência na Índia neste mês de
janeiro.
Gritos de batalha
Desde a contração de crédito de 2007, a Reserva Federal nos Estados Unidos e o
Banco da Inglaterra estimularam a economia e alavancaram os bancos com diversas
medidas, entre elas a aceleração quantitativa, uma emissão eletrônica de
dinheiro que procura expandir o crédito para estimular o setor produtivo e o
consumo doméstico. O catedrático de sistemas financeiros da Universidade de
Negócios de Manchester, Ismail Erturk, considera que estas medidas deixam
claras as limitações do modelo autonômico bancário.
É certo que havia uma relativa autonomia no manejo institucional dos bancos.
Mas não nas nomeações em nível ideológico. Para ser presidente de um banco era
preciso ser monetarista. Se o candidato fosse keynesiano estava fora. Não
surpreende então que se definisse a inflação como controle de preços ao
consumidor e se ignorasse o impacto que tinham outras apreciações dos preços
como as bolhas especulativas imobiliárias ou financeiras. O resultado foi
desastroso”, disse Erturk à Carta Maior.
A hecatombe veio com a queda do Lehman Brothers em setembro de 2008 que forçou
os governos a intervir para impedir uma corrida bancária e uma depressão
mundial. O superendividamento atual do mundo desenvolvido vem desse momento.
Mas nem com aquela intervenção fiscal massiva se conseguiu curar a enfermidade.
O Banco Central Europeu (BCE) emprestou mais de um trilhão de euros aos bancos
ameaçados por dívidas impagáveis contraídas na época do dinheiro fácil com o
soterrado objetivo de salvar seus credores, as instituições financeiras dos
países do norte, desde a Alemanha até o Reino Unido.
A emissão de dinheiro eletrônico – a máquina impressora de cédulas deste
século, tão criticada no século passado quando usada na América Latina – está
na ordem do dia. Nos Estados Unidos, a emissão supera os dois trilhões de
dólares. No Reino Unido, os 600 bilhões.
O último caso deste novo intervencionismo é o Japão. Com um forte respaldo
democrático das eleições de dezembro, o novo primeiro ministro japonês, Shinzo
Abe, modificou a tradicional independência do Banco do Japão para comprometê-lo
com seu gigantesco programa de estímulo fiscal e aumentar as metas
inflacionárias que passaram de um estreito 1% para um ligeiramente mais folgado
2%.
Para um dos mais duros defensores da ortodoxia, o presidente do Banco Central
da Alemanha, Jens Weidmann, a conduta do governo japonês foi a gota que fez o
copo d’água transbordar. “Nos casos do Japão e da Hungria estamos vendo uma
clara ingerência na política do banco central que ameaçava a autonomia que deve
reger seu funcionamento. Isso está levando a uma crescente politização de sua
conduta”, disse Weidmann.
E a América Latina?
Os países em desenvolvimento têm historicamente uma conduta mais sinuosa,
flutuando entre a ortodoxia neoliberal e as próprias urgências de sua economia.
Sinal de uma ruptura no consenso que predominava antes do estouro financeiro de
2008, os bancos centrais e reguladores financeiros dos chamados “países
emergentes” assinaram em 2011 no México a declaração de Maya para a inclusão
financeira dos setores excluídos da sociedade. O Brasil se encontrava entre os
países que anunciaram iniciativas concretas para expandir o acesso ao crédito a
amplas parcelas da população.
No ano passado, Argentina e Bolívia modificaram a carta orgânica que
regulamenta o funcionamento de seus bancos centrais mantendo o princípio de
preservação do valor da moeda – evitando episódios inflacionários que erodissem
seu valor -, mas acrescentando a seu mandato a necessidade de desenvolver
políticas que contribuam ao desenvolvimento econômico e social do país. Em
2008, a nova Constituição equatoriana eliminou a autonomia do Banco Central do
Equador.
“A redefinição dos objetivos que está se ensaiando vai pelo bom caminho, mas é
preciso lembrar que há limites sobre o que o um Banco Central pode realmente
fazer. Além disso, na América Latina, um objetivo essencial dos bancos centrais
é a questão cambial frente às flutuações que sofrem suas moedas”, assinalou
Erturk.
A mudança de paradigma dos Bancos Centrais na América Latina foi chamada de
populista e demagógica por políticos, funcionários e colunistas do primeiro
mundo. Curiosamente, hoje. Quando no mundo desenvolvido se sugere ou se pratica
abertamente uma mudança de modelo, ninguém se lembra do epíteto.
Tradução: Katarina Peixoto
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