quinta-feira, 11 de abril de 2013

Portugal: IMPASSE – Daniel Oliveira




Impasse: a responsabilidade (I)

Daniel Oliveira – Expresso, opinião - ontem

Como escrevi ontem, o governo montou um enredo em que tenta aproveitar a declaração de inconstitucionalidade de quatro artigos do Orçamento para fugir às suas responsabilidades Este é o primeiro de quatro textos sobre o impasse político criado por Passos Coelho. Neles, tratarei das responsabilidades perante este momento específico, do clima de dramatização que o governo está a alimentar, das saídas políticas, a curto prazo, para esta situação e dos novos impasses que podem resultar, perante os desentendimentos à esquerda, de umas novas eleições.  

Com o governo, acompanhado por alguns comentadores e jornalistas, a querer atirar culpas para todos os lados, devemos, na análise desta crise, começar por isto mesmo: de quem é a responsabilidade da incerteza política que vivemos esta semana? A resposta é rápida: do primeiro-ministro. Toda e sem ter de a dividir com ninguém. E essa responsabilidade divide-se em três:

1. O governo fez um Orçamento que sabia ser inconstitucional. O seu suposto "choque" é sonso. Há meses que praticamente todos os constitucionalistas avisavam que seria este o resultado. A decisão do Tribunal não foi uma bizarria incompreensível que o apanhou de surpresa. Era esperada e foi mais do que justificada até por juristas da área do PSD. Arrisco-me mesmo a dizer, mas disso tratarei amanhã, que foi desejada pelo governo.

Sobre esta declaração de inconstitucionalidade, li e ouvi duas teses peregrinas.

A primeira: que o Tribunal Constitucional deveria ter em conta a situação financeira em que o governo colocou o País. Na realidade, foi o que o TC fez o ano passado. E fez mal, criando um grave precedente de suspensão da Constituição e prejudicando milhares de pessoas. Aceitou que uma norma que considerava inconstitucional poderia ser aplicada. Como até a boa-vontade tem limites, perante a insistência teimosa e até desrespeitosa do ponto de vista institucional, por parte do governo, o TC reiterou a sua posição anterior, sem no entanto repetir a absurda suspensão constitucional do ano passado que, como é evidente, tornaria a Constituição numa inexistência prática.

A Democracia baseia-se no princípio da separação de poderes. Não cabe ao Tribunal Constitucional fazer a gestão das contas públicas. Cabe-lhe apenas analisar a constitucionalidade das leis. Das leis que, como já escrevi, são aprovadas pelas maiorias parlamentares. Tendo em conta uma Constituição que, também ela, é aprovada e revista pelo parlamento. Se o governo decide fazer um Orçamento que sabe ser inconstitucional quer dizer que ou não o quer ver aplicado - criando assim condições para uma dramatização política que lhe permite imputar a outros a responsabilidade por cortes que já queria fazer e por um segundo resgate que se tornara cada vez mais provável -, ou espera que a democracia deixe de funcionar. Um e outro expediente são ilegítimos. O governo fez um orçamento que pela segunda vez é inconstitucional. Só ele, e não quem confirma essa inconstitucionalidade, é responsável pelas consequências da decisão que tomou.

A segunda: que a lei fundamental torna a realidade inconstitucional. Há mesmo quem defenda que ela é, neste momento, um obstáculo à saúde das nossas finanças e que deveria ser ignorada. Que o País está sem dinheiro e não pode travar as suas decisões por causa de pormenores formais. E há quem vá concluindo, sem prestar grande atenção ao que foi decidido pelo TC, que assim é impossível reduzir as despesas do Estado. Passos disse mesmo que o TC defendia o aumento de impostos.

A ver se nos entendemos: os dois princípios que estiveram na base da decisão do Tribunal - a igualdade e a proporcionalidade - são comuns a qualquer Constituição de um país democrático. Não são programáticos. É verdade que a Constituição em vigor resulta da vontade dos deputados e eles podem revê-la, desde que consigam uma maioria de dois terços. Ela não caiu do céu aos trambolhões nem é resultado de imposição externa. Foi revista inúmeras vezes. Mas, é bom lembrar, que uma Constituição que não integre estes dois princípios dificilmente será compatível com a existência de um Estado Democrático.

Ver tanta gente com responsabilidades a defender, na prática, a suspensão da Constituição só nos pode perturbar. Mesmo em guerra ou em situações de calamidade natural de enorme escala a Constituição continua em vigor, podendo ser limitada, nas condições formais que ela exige. Se, perante uma crise financeira e económica, estamos dispostos a dispensar a existência da nossa lei fundamental,  nem quero imaginar o que nos pode acontecer perante uma situação mais grave. E elas existem. Quando tanta gente enche a boca com a "responsabilidade" e o "sentido de Estado", é assustador perceber o pouco valor que é dado aos limites formais da democracia.

2. O governo não tinha um plano B para uma decisão mais do que previsível. E não tinha um plano B porque esta é a sua forma de lidar com esta crise. Como está na moda dizer-se, na sua "narrativa" não cabe a ideia de que para um mesmo problema podem existir várias soluções. O discurso da inevitabilidade, escrevi-o várias vezes, é incompatível com a democracia. Porque ela vive do confronto entre alternativas, claro, mas por uma outra razão mais comezinha: a separação de poderes, a existência de vários focos de decisão e a vontade popular podem, a qualquer momento, contrariar um rumo decidido. Só em ditaduras estes percalços não acontecem (e mesmo aí...). Como a existência de várias soluções não cabe no discurso do governo, ele, agora ou mais tarde, acabaria por nos colocar num impasse político. A inexistência de uma solução para um problema que o próprio governo criou só pode ser imputada ao próprio governo. Neste caso, a coisa é mais grave: o governo usou a provável inconstitucionalidade do seu orçamento para criar o enredo em que a inevitabilidade do que defende e a sua própria desresponsabilização pudesse ser mais facilmente vendida aos portugueses, numa manobra de uma extraordinária irresponsabilidade.

3. O governo chega a Abril com uma situação financeira tal que não tem espaço de manobra para procurar outras soluções. É bom, para quem se tem dedicado à dramatização (de que tratarei amanhã) para encontrar outros culpados por um provável segundo resgate, recordar mais uma vez que o desvio orçamental causado pela decisão do TC corresponde a um terço do desvio causado pela aplicação das medidas decididas por Vítor Gaspar no ano passado. Ou seja, o monumental buraco orçamental resulta, antes de mais, da estratégia até agora seguida. É ele, e não a decisão do TC, que corresponde a 0,7% do PIB, que nos leva a este resgate. A decisão do TC, que é responsabilidade do governo, apenas tornou a situação ainda mais grave. Não a criou.

Não deixa de ser extraordinário que se esteja a querer responsabilizar a decisão do TC pelo impasse político e financeiro atual, como se o problema não fosse anterior. Se o governo considera que este desvio cria um impasse que até poderia levar à sua demissão, porque não considerou que um desvio três vezes superior não lhe causava um embaraço maior? Porque este pode ser atribuído a outros. Pelo contrário, este é o único desvio que o governo poderia, nas conversas com a troika, apresentar como inevitável. E isso deveria ser visto como algo que lhe daria alguma margem de manobra. Mas o governo quer o espaço de manobra para outra coisa: para impor um programa que já tinha decidido e que sabe não contar com o apoio da maioria dos portugueses.

Conclusão: só o governo pode ser responsabilizado por um Orçamento inconstitucional, numa situação em que o buraco orçamental resultante das suas opções era já colossal e sem ter um plano B para a confirmação desta inconstitucionalidade. 

Amanhã: A farsa

Impasse: a farsa (II)

Daniel Oliveira – Expresso, opinião

Por razões de conveniência política, o governo decidiu dramatizar o chumbo do Tribunal Constitucional. Como se fosse ele a causar uma situação de ruptura financeira em que já vivíamos. Repito o que escrevi ontem: o desvio às previsões orçamentais do governo foi, antes de mais, causado pelos efeitos da sua própria estratégia. Ele correspondeu 1,9% do PIB. O chumbo decidido pelo Tribunal Constitucional corresponde a 0,7%, relativamente pouco quando comparado com as derrapagens a que temos assistido.  

Sim, é verdade que o governo está perante um impasse. Mas ele não resulta dos valores agora em causa, mas da fragilidade política em que o governo agora se encontra. A saída humilhante do seu coordenador político, que, pelos seus contornos éticos, deixou o governo tremendamente exposto às suas próprias debilidades. E os sucessivos falhanços de Vítor Gaspar, seja nos efeitos da sua estratégia, seja pela ausência de alternativas a uma declaração de inconstitucionalidade mais do que previsível, retiraram ao governo a pouca credibilidade que lhe restava. Nestas circunstâncias, a apresentação de novos impostos resultariam numa contestação imediata de enormes dimensões. Porque a maioria dos portugueses já percebeu que a receita não resulta e porque já não acredita no cozinheiro.

Perante uma situação de impasse, onde não tem margem orçamental para acomodar mais um buraco (que não é o mais grave) e não tem condições para propor mais cortes salariais ou impostos (na prática, é a mesma coisa), o governo tinha três saídas: aproveitar este acontecimento para conseguir um acordo menos mau com a troika nas condições de pagamento da dívida e prazos para as metas a atingir, fazer cortes no Estado de enorme dimensão que só uns meses depois se sentirão na vida das pessoas ou demitir-se, tratando de responsabilizar outros por essa opção. As três precisariam da criação de um ambiente de enorme dramatização política, que contaria, como sempre conta, com a participação ativa de alguma comunicação social.

Se fosse para conseguir um acordo menos violento com a troika, o governo faria bem em dramatizar. Abria-se, é verdade, um importante precedente: todos perceberiam, de uma vez por todas, que dizer "não" e deixar de ser o bom aluno tem vantagens. Confesso que foi o que, no sábado, pensei que seria feito. Enganei-me. Subestimei a falta de patriotismo que é, desde a crise política que alimentou nas vésperas do pedido de "resgate", a imagem de marca deste governo.

A ofensiva mediática de fazedores de opinião e do exército de ex-dirigentes do PSD que ocupa o espaço do comentário televisivo já começou. O objetivo é apresentar a redução da despesa, seja ela qual for, como a solução virtuosa para este impasse. Confundindo o desperdício que tem de ser combatido, o investimento que é necessário e os encargos com Estado Social, que contribuem para o rendimento disponível dos portugueses (sem as quais, assistimos aos mesmos efeitos para economia do aumento de impostos), como se tudo fosse a mesma coisa. Essa ofensiva inclui a tentativa de obrigar o PS a colar-se aos cortes no Estado Social, havendo mesmo jornalistas que já usam, em notícias, a expressão "radicalismo" para caracterizar a tímida posição que António José Seguro hoje sustenta.

Se toda esta história tivesse como objetivo, perante a impossibilidade das duas alternativas anteriores, preparar uma demissão, não me parece que a vitimização resultasse. Como se viu no caso do PEC IV, um governo impopular dificilmente muda a percepção que as pessoas têm do seu trabalho por golpes de teatro deste género. A ideia de que o governo se queria demitir, ou que Portas e Gaspar realmente se preparavam para essa opção, fez parte da farsa que o governo montou no último fim de semana.

Antes da decisão do Tribunal Constitucional, Passos Coelho tinha nas mãos uma monumental cratera nas contas públicas, com todas as previsões para 2013 a falharem, ainda o ano mal tinha começado. A responsabilização do ambiente internacional e europeu por estes resultados era fraca. Não porque fosse completamente falsa, mas porque foi a que se esperava que fosse e contar com ela fazia parte das obrigações do governo. E porque não bate certo com a narrativa que Passos Coelho nos vendeu desta crise - ela era da exclusiva responsabilidade do endividamento socrático, culpa nossa e só nossa. O governo sabia que, de uma forma ou de outra, com este ou com outro nome, vinha aí um segundo resgate que prolongasse as medidas de austeridade. E só ele seria responsabilizado por isso.

Mais: o espaço de manobra político para avançar com monumentais cortes na saúde, educação e segurança social era nulo. E esse é o verdadeiro programa do governo. Aquele que Passos há mais tempo pretende ver aplicado e a razão porque olha para esta crise como uma oportunidade para o País se "regenerar". 

Perante a mais do que previsível decisão do Tribunal Constitucional, Passos montou o palco para a sua farsa. Primeiro, deu a entender que teríamos uma enorme crise política, passando a ideia de que viria aí uma demissão que nunca esteve realmente na sua cabeça. Depois, criou o papão do segundo resgate, que é um risco real muito anterior à decisão do TC. Por fim, o ministro das finanças lançou o pânico, proibindo gastos correntes e responsabilizando o Tribunal Constitucional por uma medida sem justificação possível, tendo em conta os valores que estão em causa. Instalado o medo, tem a desculpa para os cortes que sempre quis fazer, por convicção ideológica e interesse de terceiros, no Estado Social. Podendo apresentar esse seu programa como uma inevitabilidade causada por outros.

Os factos são bastante claros, a vontade do governo avançar com estes cortes é antiga e pública. A situação das contas públicas, com um enorme aumento da dívida e agravamento de todos os indicadores económicos e financeiros, desde que Passos chegou ao governo, também. Se a oposição colaborasse com esta farsa e, por causa dela, cedesse à chantagem, seria um ato de enorme estupidez política que a levaria a ser cúmplice da destruição do País.

Amanhã: as três saídas para a crise política 


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