Impasse: a
responsabilidade (I)
Daniel Oliveira –
Expresso, opinião - ontem
Como escrevi
ontem, o governo montou um enredo em que tenta aproveitar a declaração de
inconstitucionalidade de quatro artigos do Orçamento para fugir às suas
responsabilidades Este é o primeiro de quatro textos sobre o impasse político
criado por Passos Coelho. Neles, tratarei
das responsabilidades perante este momento específico, do clima
de dramatização que o governo está a alimentar, das saídas
políticas, a curto prazo, para esta situação e dos novos impasses que podem
resultar, perante os desentendimentos à esquerda, de umas novas eleições.
Com o governo,
acompanhado por alguns comentadores e jornalistas, a querer atirar culpas para
todos os lados, devemos, na análise desta crise, começar por isto
mesmo: de quem é a responsabilidade da incerteza política que vivemos esta
semana? A resposta é rápida: do primeiro-ministro. Toda e sem ter de
a dividir com ninguém. E essa responsabilidade divide-se em três:
1. O governo
fez um Orçamento que sabia ser inconstitucional. O seu suposto
"choque" é sonso. Há meses que praticamente todos os
constitucionalistas avisavam que seria este o resultado. A decisão do Tribunal
não foi uma bizarria incompreensível que o apanhou de surpresa. Era esperada e
foi mais do que justificada até por juristas da área do PSD. Arrisco-me mesmo a
dizer, mas disso tratarei amanhã, que foi desejada pelo governo.
Sobre esta
declaração de inconstitucionalidade, li e ouvi duas teses peregrinas.
A primeira:
que o Tribunal Constitucional deveria ter em conta a situação financeira
em que o governo colocou o País. Na realidade, foi o que o TC fez o ano
passado. E fez mal, criando um grave precedente de suspensão da Constituição e
prejudicando milhares de pessoas. Aceitou que uma norma que considerava
inconstitucional poderia ser aplicada. Como até a boa-vontade tem limites,
perante a insistência teimosa e até desrespeitosa do ponto de vista
institucional, por parte do governo, o TC reiterou a sua posição anterior, sem
no entanto repetir a absurda suspensão constitucional do ano passado que, como
é evidente, tornaria a Constituição numa inexistência prática.
A Democracia
baseia-se no princípio da separação de poderes. Não cabe ao Tribunal
Constitucional fazer a gestão das contas públicas. Cabe-lhe apenas analisar a
constitucionalidade das leis. Das leis que, como já escrevi, são aprovadas
pelas maiorias parlamentares. Tendo em conta uma Constituição que, também ela,
é aprovada e revista pelo parlamento. Se o governo decide fazer um Orçamento
que sabe ser inconstitucional quer dizer que ou não o quer ver aplicado -
criando assim condições para uma dramatização política que lhe permite imputar
a outros a responsabilidade por cortes que já queria fazer e por um segundo
resgate que se tornara cada vez mais provável -, ou espera que a democracia
deixe de funcionar. Um e outro expediente são ilegítimos. O governo fez um
orçamento que pela segunda vez é inconstitucional. Só ele, e não quem confirma
essa inconstitucionalidade, é responsável pelas consequências da decisão que
tomou.
A segunda:
que a lei fundamental torna a realidade inconstitucional. Há mesmo
quem defenda que ela é, neste momento, um obstáculo à saúde das nossas finanças
e que deveria ser ignorada. Que o País está sem dinheiro e não pode travar as
suas decisões por causa de pormenores formais. E há quem vá concluindo, sem
prestar grande atenção ao que foi decidido pelo TC, que assim é impossível
reduzir as despesas do Estado. Passos disse mesmo que o TC defendia o aumento
de impostos.
A ver se nos
entendemos: os dois princípios que estiveram na base da decisão do
Tribunal - a igualdade e a proporcionalidade - são comuns a qualquer
Constituição de um país democrático. Não são programáticos. É verdade que
a Constituição em vigor resulta da vontade dos deputados e eles podem revê-la,
desde que consigam uma maioria de dois terços. Ela não caiu do céu aos
trambolhões nem é resultado de imposição externa. Foi revista inúmeras vezes.
Mas, é bom lembrar, que uma Constituição que não integre estes dois princípios
dificilmente será compatível com a existência de um Estado Democrático.
Ver tanta gente com
responsabilidades a defender, na prática, a suspensão da Constituição só nos
pode perturbar. Mesmo em guerra ou em situações de calamidade natural de enorme
escala a Constituição continua em vigor, podendo ser limitada, nas condições
formais que ela exige. Se, perante uma crise financeira e económica,
estamos dispostos a dispensar a existência da nossa lei fundamental, nem
quero imaginar o que nos pode acontecer perante uma situação mais grave. E elas
existem. Quando tanta gente enche a boca com a "responsabilidade" e o
"sentido de Estado", é assustador perceber o pouco valor que é dado
aos limites formais da democracia.
2. O governo
não tinha um plano B para uma decisão mais do que previsível. E não tinha um
plano B porque esta é a sua forma de lidar com esta crise. Como está na moda
dizer-se, na sua "narrativa" não cabe a ideia de que para um mesmo
problema podem existir várias soluções. O discurso da inevitabilidade,
escrevi-o várias vezes, é incompatível com a democracia. Porque ela vive do
confronto entre alternativas, claro, mas por uma outra razão mais comezinha: a
separação de poderes, a existência de vários focos de decisão e a vontade
popular podem, a qualquer momento, contrariar um rumo decidido. Só em ditaduras
estes percalços não acontecem (e mesmo aí...). Como a existência de várias
soluções não cabe no discurso do governo, ele, agora ou mais tarde, acabaria
por nos colocar num impasse político. A inexistência de uma solução para
um problema que o próprio governo criou só pode ser imputada ao próprio
governo. Neste caso, a coisa é mais grave: o governo usou a provável
inconstitucionalidade do seu orçamento para criar o enredo em que a
inevitabilidade do que defende e a sua própria desresponsabilização pudesse ser
mais facilmente vendida aos portugueses, numa manobra de uma extraordinária
irresponsabilidade.
3. O governo
chega a Abril com uma situação financeira tal que não tem espaço de manobra
para procurar outras soluções. É bom, para quem se tem dedicado à
dramatização (de que tratarei amanhã) para encontrar outros culpados por um
provável segundo resgate, recordar mais uma vez que o desvio orçamental causado
pela decisão do TC corresponde a um terço do desvio causado pela aplicação das
medidas decididas por Vítor Gaspar no ano passado. Ou seja, o monumental buraco
orçamental resulta, antes de mais, da estratégia até agora seguida. É ele, e
não a decisão do TC, que corresponde a 0,7% do PIB, que nos leva a este
resgate. A decisão do TC, que é responsabilidade do governo, apenas tornou a
situação ainda mais grave. Não a criou.
Não deixa de ser
extraordinário que se esteja a querer responsabilizar a decisão do TC pelo
impasse político e financeiro atual, como se o problema não fosse
anterior. Se o governo considera que este desvio cria um impasse que até
poderia levar à sua demissão, porque não considerou que um desvio três vezes
superior não lhe causava um embaraço maior? Porque este pode ser atribuído
a outros. Pelo contrário, este é o único desvio que o governo poderia, nas
conversas com a troika, apresentar como inevitável. E isso deveria ser
visto como algo que lhe daria alguma margem de manobra. Mas o governo quer o
espaço de manobra para outra coisa: para impor um programa que já tinha
decidido e que sabe não contar com o apoio da maioria dos portugueses.
Conclusão: só
o governo pode ser responsabilizado por um Orçamento inconstitucional, numa
situação em que o buraco orçamental resultante das suas opções era já colossal
e sem ter um plano B para a confirmação desta inconstitucionalidade.
Amanhã: A farsa
Impasse: a farsa
(II)
Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Por razões de
conveniência política, o governo decidiu dramatizar o chumbo do Tribunal
Constitucional. Como se fosse ele a causar uma situação de ruptura financeira
em que já vivíamos. Repito o que escrevi ontem: o desvio às previsões
orçamentais do governo foi, antes de mais, causado pelos efeitos da sua própria
estratégia. Ele correspondeu 1,9% do PIB. O chumbo decidido pelo Tribunal
Constitucional corresponde a 0,7%, relativamente pouco quando comparado com as
derrapagens a que temos assistido.
Sim, é verdade que
o governo está perante um impasse. Mas ele não resulta dos valores agora em
causa, mas da fragilidade política em que o governo agora se encontra. A
saída humilhante do seu coordenador político, que, pelos seus contornos éticos,
deixou o governo tremendamente exposto às suas próprias debilidades. E os sucessivos
falhanços de Vítor Gaspar, seja nos efeitos da sua estratégia, seja pela
ausência de alternativas a uma declaração de inconstitucionalidade mais do que
previsível, retiraram ao governo a pouca credibilidade que lhe restava. Nestas
circunstâncias, a apresentação de novos impostos resultariam numa
contestação imediata de enormes dimensões. Porque a maioria dos portugueses já
percebeu que a receita não resulta e porque já não acredita no cozinheiro.
Perante uma
situação de impasse, onde não tem margem orçamental para acomodar mais um
buraco (que não é o mais grave) e não tem condições para propor mais cortes
salariais ou impostos (na prática, é a mesma coisa), o governo tinha três
saídas: aproveitar este acontecimento para conseguir um acordo menos mau
com a troika nas condições de pagamento da dívida e prazos para as
metas a atingir, fazer cortes no Estado de enorme dimensão que só uns
meses depois se sentirão na vida das pessoas ou demitir-se, tratando
de responsabilizar outros por essa opção. As três precisariam da criação de um
ambiente de enorme dramatização política, que contaria, como sempre conta, com
a participação ativa de alguma comunicação social.
Se fosse para
conseguir um acordo menos violento com a troika, o governo faria bem
em dramatizar. Abria-se, é verdade, um importante precedente: todos
perceberiam, de uma vez por todas, que dizer "não" e deixar de
ser o bom aluno tem vantagens. Confesso que foi o que, no sábado, pensei que
seria feito. Enganei-me. Subestimei a falta de patriotismo que é, desde a crise
política que alimentou nas vésperas do pedido de "resgate", a imagem
de marca deste governo.
A ofensiva
mediática de fazedores de opinião e do exército de ex-dirigentes do PSD que
ocupa o espaço do comentário televisivo já começou. O objetivo é apresentar
a redução da despesa, seja ela qual for, como a solução virtuosa para este
impasse. Confundindo o desperdício que tem de ser combatido, o investimento que
é necessário e os encargos com Estado Social, que contribuem para o rendimento
disponível dos portugueses (sem as quais, assistimos aos mesmos efeitos para
economia do aumento de impostos), como se tudo fosse a mesma coisa. Essa
ofensiva inclui a tentativa de obrigar o PS a colar-se aos cortes no
Estado Social, havendo mesmo jornalistas que já usam, em notícias, a expressão
"radicalismo" para caracterizar a tímida posição que António José
Seguro hoje sustenta.
Se toda esta
história tivesse como objetivo, perante a impossibilidade das duas alternativas
anteriores, preparar uma demissão, não me parece que a vitimização resultasse.
Como se viu no caso do PEC IV, um governo impopular dificilmente muda a
percepção que as pessoas têm do seu trabalho por golpes de teatro deste
género. A ideia de que o governo se queria demitir, ou que Portas e Gaspar realmente
se preparavam para essa opção, fez parte da farsa que o governo montou no
último fim de semana.
Antes da decisão do
Tribunal Constitucional, Passos Coelho tinha nas mãos uma monumental cratera
nas contas públicas, com todas as previsões para 2013 a falharem, ainda o ano
mal tinha começado. A responsabilização do ambiente internacional e
europeu por estes resultados era fraca. Não porque fosse completamente falsa,
mas porque foi a que se esperava que fosse e contar com ela fazia parte das
obrigações do governo. E porque não bate certo com a narrativa que Passos
Coelho nos vendeu desta crise - ela era da exclusiva responsabilidade do
endividamento socrático, culpa nossa e só nossa. O governo sabia que, de
uma forma ou de outra, com este ou com outro nome, vinha aí um segundo
resgate que prolongasse as medidas de austeridade. E só ele seria
responsabilizado por isso.
Mais: o espaço
de manobra político para avançar com monumentais cortes na saúde, educação e
segurança social era nulo. E esse é o verdadeiro programa do governo.
Aquele que Passos há mais tempo pretende ver aplicado e a razão porque olha
para esta crise como uma oportunidade para o País se
"regenerar".
Perante a mais do
que previsível decisão do Tribunal Constitucional, Passos montou o palco
para a sua farsa. Primeiro, deu a entender que teríamos uma enorme crise
política, passando a ideia de que viria aí uma demissão que nunca esteve
realmente na sua cabeça. Depois, criou o papão do segundo resgate, que é
um risco real muito anterior à decisão do TC. Por fim, o ministro das finanças
lançou o pânico, proibindo gastos correntes e responsabilizando o Tribunal
Constitucional por uma medida sem justificação possível, tendo em conta os
valores que estão em causa. Instalado o medo, tem a desculpa para os
cortes que sempre quis fazer, por convicção ideológica e interesse de
terceiros, no Estado Social. Podendo apresentar esse seu programa como uma
inevitabilidade causada por outros.
Os factos são
bastante claros, a vontade do governo avançar com estes cortes é antiga e
pública. A situação das contas públicas, com um enorme aumento da dívida e
agravamento de todos os indicadores económicos e financeiros, desde que Passos
chegou ao governo, também. Se a oposição colaborasse com esta farsa e, por causa
dela, cedesse à chantagem, seria um ato de enorme estupidez política que a
levaria a ser cúmplice da destruição do País.
Amanhã: as três
saídas para a crise política
ATUALIZAÇÃO:
Enquanto o usa o Estado para fazer uma birra, o Ministério das Finanças autorizou um salário até 10 mil euros
para o Presidente da Agência de Gestão da Tesouraria e do Crédito Público
(IGCP) até 10 mil euros e até 7 mil euros e 8 mil euros para os seus dois
vogais . No mesmo dia que se sabe qe os inspetores da Autoridade para para as Condições de Trabalho
estão a ser obrigados a pegar em esfregonas e a fazer a limpeza diária das
instalações, porque os serviços de limpeza contratados foram dispensados .
Acho que fica tudo dito.
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