Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Seguindo a ordem
inversa dos acontecimentos, tratarei hoje do discurso de Paulo Portas ao
País e guardarei para amanhã a análise do novo pacote de austeridade
apresentado por Passos Coelho.
Paulo Portas tem
numa unha mais inteligência política que Pedro Passos Coelho no corpo inteiro.
E um dos principais sinais de inteligência que um político pode demonstrar é
não subestimar os cidadãos. Porque não é parvo, Portas, ao contrário do
verdíssimo Passos, não nos toma a nós por parvos. Não tentou, por isso,
vender este pacote como se fosse uma reforma do Estado que, obviamente, não é.
Nem, com exceção de uma ou de outra medida, como uma imposição de soluções mais
justas para o conjunto da sociedade.
Portas assumiu, sem
grandes rodeios, que ele resulta da simples necessidade de apresentar
qualquer coisa que permita uma sétima avaliação da troika positiva.
Na esperança de ganhar tempo para uma mudança na Europa, que, no seu otimismo,
permita uma alteração de metas e de políticas. Uma mudança que ninguém
vislumbra mas que ele acredita que o descontentamento em vários países (mas não
no nosso) conseguirá.
Esta é a primeira
vantagem de Portas sobre Gaspar e Passos. Não assume o discurso da troika.
Pelo contrário, critica-o. Não assume a narrativa alemã desta crise. Pelo
contrário, avisa para os seus perigos. Não se assume, numa posição de
vergonhosa subserviência e até falta de patriotismo que caracterizam os
discursos de Gaspar e Passos, como representante da troika juntos dos
portugueses. Pelo contrário, tenta, aos olhos do País, surgir como
representante dos portugueses junto da troika.
Uma das coisas que
se percebe no seu discurso é que, ao contrário de Gaspar e Passos (e a ordem de
poder é esta), Portas sabe que esta receita não nos retirará da crise. Tende,
pelo contrário, a aprofundá-la. Apesar de ser inconsequente, Portas até
introduziu no seu discurso a ideia de que se bateu por medidas "menos
recessivas" e não por medidas de crescimento. E deu-se ao luxo de dizer
que quer ver "esses senhores" (da troika) o mais depressa
possível fora de Portugal. Introduzindo no governo um vocabulário que
trata os representantes do FMI, BCE e Comissão Europeia, não como nossos
aliados, mas como um problema. Bem distante das palavras de Passos, que disse
que não podemos querer que a Europa continue a estar disponível para resolver
os problemas que nós criamos.
Do ponto de vista
formal, a intervenção de Portas seria, se tivesse alguma consequência
prática, digna de um estadista. De um estadista de direita, claro. Mas de
alguém que não se presta, com as devidas distâncias que as metáforas permitem,
a comportar-se como uma versão nacional de Pétain.
Para, perante mais
um violentíssimo pacote de austeridade que lançará o País ainda mais depressa
para o abismo (disso tratarei amanhã), poder sustentar este discurso, Portas
construiu para si próprio um conveniente papel nesta trama. Como nos
interrogatórios policiais, ele, na companhia de alguns ministros do PSD, seria
o polícia bom. Aquele que nos explica que o seu companheiro de coligação é
irascível e violento e que, se mostrarmos abertura para ceder, lá estará ele
para aliviar o nosso sofrimento.
E foi exaustivo na
enumeração dos seus préstimos. Sem ele, a idade de reforma seria aos 67
anos (coisa que, apesar de ser da responsabilidade de um ministro do CDS,
terá sabido pelos jornais). Sem ele, haveria muito mais despedimentos. No
meio, quis, numa cambalhota lógica, explicar que estes poderiam ser bons para a
criação de emprego, argumentar que aconteceriam num momento melhor do nosso
mercado de trabalho e fingir que acredita que o "mútuo acordo" não se
fará por via da chantagem da perda progressiva de salário. Mas a sua
participação nesta desgraça é benigna.
Sobre o que
evidentemente não poderia ser pior, atirou para o PS e para a UGT a
responsabilidade de conseguir o que ele não conseguiu. A estratégia do
"polícia bom" no seu esplendor: tu cedes, eu ajudo e ele poupa-te.
Até que chegou
à contribuição extraordinária de sustentabilidade, um imposto
escondido, permanente e cumulativo com outros entretanto criados. Portas até
recordou o nome com que alguns a batizaram: "a TSU dos reformados e
pensionistas". É esta nova taxa que o impede de completar, sem cair
no ridículo, a ideia de que sem ele até seria pior. Em vez de cortes na
despesa, teríamos mais impostos, diria ele sem esta medida. E, ainda por cima,
é um imposto sobre os reformados, onde grande parte da base eleitoral do
CDS se encontra.
Porque não se fazem
milagres, Portas foi, chegado aqui, menos eficaz na retórica. Chutou para
a frente. Dizendo, basicamente, que é matéria não fechada que pode ser
substituída por outras fontes de rendimento. Ou seja, que a guerra ainda não
acabou. Como tem sido evidente para todos, Portas perdeu todas as batalhas
no interior do governo. Nada consegue contra o todo-poderoso Vítor Gaspar.
Resta-lhe, por isso, dizer aos portugueses que tudo tentou e vai continuar a
tentar. E esperar assim ter as vantagens de estar no governo e na
oposição.
Portas terminou a
sua comunicação com uma tirada mais ou menos intimista, confessando-se entalado
entre as suas "obrigações" e a sua "consciência".
Convenientemente, ficamos a saber que, apesar de ceder em tudo, com mais ou
menos números trágicos e amuos inconsequentes, Portas acha que tem uma
consciência. A pergunta que resta é esta: e isso muda a vida de quem?
Talvez a dele, na procura da quadratura do círculo: como participar nesta
tragédia sem pagar o preço eleitoral pelas suas responsabilidades. É que a
rábula, de tão repetida, começa a não funcionar.
Em todas as
tragédias humanas, há sempre, entre os seus responsáveis, os que têm maior ou
menor consciência do mal que provocam. Mas, ao contrário do que Portas quer que
se pense, são os que sabem do erro que comentem os piores dos culpados. Os
outros são apenas inconscientes.
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