Ana Sá Lopes –
Jornal i
Soares defende que
Portugal pode vir a ser o primeiro país a acabar com a austeridade, como acabou
com a ditadura
Depois de amanhã,
quinta-feira, haverá uma reunião de esquerda contra a austeridade. Mário Soares
conseguiu o feito de reunir na mesma sessão as direcções do PS, do PCP e do
Bloco de Esquerda - sempre desagradadas em participar em "frentes comuns"
deste género, pela difícil relação que os partidos de esquerda mantêm entre si.
A presidir à sessão, que decorre no dia 30 à noite, na Aula Magna, estará o
reitor da Universidade de Lisboa, Sampaio da Nóvoa - que alguns vêem já como
potencial candidato de esquerda a Presidente da República. Mário Soares
gostaria que os partidos de esquerda e as centrais sindicais se entendessem com
vista a um futuro governo. Mas isso, afirma, "já não é com ele".
Dr. Mário Soares,
decidiu organizar uma reunião da esquerda para combater a austeridade. Pensa
que isso pode dar força a um futuro governo de esquerda?
Eu gostaria, mas
não posso dizer se sim ou não. É importante tão-só que se juntem pessoas
indicadas ou não pelos partidos e das centrais sindicais que se reclamem da
esquerda e se afirmem contra a austeridade, e considerem que é fundamental e
urgente que o actual governo se demita.
Há quanto tempo
estava a preparar esta reunião?
Há muitíssimo
pouco. Falei com toda a gente dos chamados promotores e todos me disseram que
sim. Não tive nenhuma recusa.
Teve encontros
individuais com o secretário-geral do PCP e o líder do Bloco de Esquerda?
Reagiram todos da mesma maneira?
Não falei
pessoalmente com o secretário-geral do PCP, mas tão-só com dois dirigentes
importantes que, julgo, o ouviram. Ficaram a pensar. Mas como todos querem a
queda do actual governo, aceitaram a ideia, que estará aberta, livremente, na
Aula Magna da Universidade de Lisboa a quem quiser ouvir, no dia 30 de Maio, a
partir das 21 horas, o que pensam os oradores e os promotores, sendo todos a
favor da queda do governo e contra a política de austeridade que está a
arruinar o nosso país.
Mas há aqui um
milagre. Se excluirmos as manifestações do 1.º de Maio, é a primeira vez que as
direcções do PCP e Bloco de Esquerda aparecem juntas.
Todos sentem que é
necessário acabar com a austeridade já e derrubar o governo, que tem vindo a
arruinar a nossa pátria, criando mais de um milhão de desempregados, o
empobrecimento geral e a destruição do Estado social.
Como é que o sr.
dr. conseguiu que Pacheco Pereira, que foi seu apoiante no MASP (Movimento de
Apoio Soares à Presidência), desse o seu apoio a esta reunião? Ele é militante
do PSD e nós julgávamos que Pacheco Pereira já não era de esquerda.
Pacheco Pereira tem
tido posições altamente críticas e muito corajosas sobre a forma como o governo
tem estado a desgraçar o nosso país e o povo português, havendo já mesmo fome.
É um autêntico social-democrata, como foi, aliás, Sá Carneiro e é ainda hoje a
maioria do Partido Social Democrata, que está, como se sabe, contra a política
desastrada do actual governo.
Quase de esquerda?
Sim, não é
seguramente da direita ultra-conservadora e neoliberal como o actual governo.
Além disso, Pacheco Pereira é um patriota. Tem dito claramente que a política
deste governo conduzirá o nosso país para o charco. É um governo
ultra-conservador e neoliberal, contra a ideologia social-democrata. Não
respeita o espírito de Sá Carneiro, que sempre foi um social-democrata. É um
governo de direita pura e dura, como quase todos os governos que hoje estão no
poder na Europa. Ora, quem fez a União Europeia foram os socialistas e
sociais-democratas e os democratas-cristãos. Agora, com a excepção da França e
da Itália, não há nenhum governo destas famílias políticas na Europa! São todos
neoliberais, republicanos no sentido americano do termo e ultraconservadores.
Sá Carneiro nunca
se reveria neste governo?
Claro que não, como
é óbvio. Ele quis que o seu partido entrasse para a Internacional Socialista.
Foi o Partido Socialista que se opôs, porque tinha chegado primeiro.
António José Seguro
viu com bons olhos a sua ideia da grande reunião de esquerda?
Claro que sim. Foi
a primeira pessoa a quem falei, na qualidade de líder do Partido Socialista, do
qual sou militante número um, mas onde não tenho qualquer responsabilidade.
Expliquei-lhe e ele disse-me que iria mandar alguém. Como já fez.
Foi calmo?
Foi tudo calmo. Não
recebi nenhuma recusa, nem das centrais sindicais, nem do PCP, nem do Bloco de
Esquerda, nem até de alguns sociais-democratas.
Recentemente, uma
sondagem do Instituto Europeu da Universidade de Direito mostrava que mais de
80 por cento dos portugueses querem a denúncia ou a renegociação do Memorando
da troika.
É evidente. E
querem que o governo se demita. Mas para isso é preciso coragem e ser capaz de
bater com o punho na mesa da troika. Este governo é subserviente em relação à
troika e à sra. Merkel. Mas a sra. Merkel, agora, está a mudar, porque a
Alemanha corre o risco de entrar em recessão. Os neoliberais ainda vão ser
surpreendidos...
E agora culpa Durão
Barroso?
É verdade. E tem
alguma razão nisso. Durão Barroso tem variado muito, segundo os ventos. E,
hoje, poucos dos seus pares o tomarão a sério...
O sr. dr., há uns
dias, afirmava que era possível uma coligação entre o PS e o Bloco, mas já não
seria tão fácil fazê-la com o PCP. Uma emergência nacional pode levar ao poder
uma grande coligação de esquerda?
Todos estão contra
a austeridade, todos querem que o governo caia. É do que se trata agora.
Depois, cabe aos partidos e aos parceiros sociais dizerem o que querem. Tarefa
difícil! Mas não é disso que se trata, mas sim, e agora, lutar contra a austeridade
e obrigar o governo a demitir-se.
Mas há um problema
complicado. Há um ano, o sr. dr. defendeu que o PS devia romper com o Memorando
da troika. Mas a verdade é que o PS não rompeu com o Memorando da troika. E
isto pode conduzir-nos a um beco sem saída: este governo cai, já quase toda a
gente o dá como moribundo, mas depois é substituído pelo PS, que vai ter de se
submeter ao mesmo Memorando da troika?
Pois, mas isso não
é comigo. Não tenho responsabilidades partidárias, hoje, nem as quero ter. Isso
é com os partidos, com as centrais sindicais e com o povo, que é quem mais
ordena.
Mas o que eu não
percebo é como a austeridade vai poder acabar neste país sem uma revolução na
Europa?
Veja que, em
Portugal, aconteceu o 25 de Abril antes das outras ditaduras europeias do
Ocidente: a Grécia e a Espanha. Nós fomos os primeiros. Graças ao MFA! Mas,
note-se, no exílio não sabíamos se o golpe contra Caetano era de esquerda ou de
direita. Ramos da Costa, Tito de Morais, Oneto, a minha mulher e eu, quando nos
metemos no Sud Express, de regresso, não sabíamos o que nos podia acontecer. Os
nossos camaradas de Lisboa diziam-nos, pelo telefone, para não virmos. Mas
viemos. Fomos os primeiros exilados a chegar, e recebidos em apoteose. Agora
podemos ser os primeiros, de novo, a acabar com a austeridade e, para isso, é
preciso que o governo se demita ou caia. Quanto antes. Quanto a uma revolução
(pacífica!) na Europa, para acabar com a crise, acontecerá a seu tempo. É
inevitável. E espero que Portugal, por exemplo, contribua para isso.
O sr. dr. tem
esperança de que aconteça uma coisa desse género na Europa?
É inevitável. Em
Portugal, toda a gente queria acabar com a guerra. E acabou-se. Como agora toda
a gente quer que o neoliberalismo e os mercados a mandar nos Estados
desapareçam. Porque a crise do euro não é só financeira e económica, é também
social, política, ética e ambiental. O neoliberalismo, a ideologia que provocou
a crise, contra as pessoas e em favor do dinheiro, está moribunda e não vai
poder perdurar muito.
Mas estão a passar
três anos da crise do euro e não se vê solução à vista. O dr. é um optimista,
acredita que isto ainda tem salvação?
Sou, digamos, um
optimista que procura ser realista. Acredito que a crise que, como disse antes,
não é só financeira e económica, tem salvação. A América, que foi quem nos
contagiou, estava pior do que nós e hoje está a sair dela, apesar dos
republicanos. Estou confiante em que Obama - um presidente que só tem paralelo
com Roosevelt; como se sabe, sou um grande admirador de ambos - tem
perfeitamente consciência de que os únicos amigos fiéis da América são os
Estados europeus. Não pode deixar que a crise do euro e da União Europeia caiam
no abismo e, porventura, dêem origem a um novo conflito mundial.
Mas acha que Obama
pode influenciar uma mudança na Europa?
Acho que Barack
Obama não pode deixar morrer a União Europeia. E temos agora outra grande
figura moral. Sou agnóstico, mas acho que este Papa é uma dádiva. Não sei de
quem (risos), mas é uma dádiva. Todos os dias fala contra a austeridade, contra
a globalização sem regras e contra o fim do Estado social. Pede auxílio em
favor dos pobres, fala com a mesma simpatia a crentes e não crentes e estende a
mão aos judeus e aos muçulmanos. Isto vai ter consequências. Há aqui um
conjunto de ideias que eu acredito que vão ter resultados muito positivos. É
amigo do grande presidente italiano Giorgio Napolitano e felicitou--o pela
escolha do novo primeiro-ministro Enrico Letta.
Porquê o prof.
Sampaio da Nóvoa a presidir à sessão? Já há quem tenha defendido que o prof.
Nóvoa deveria ser o candidato presidencial da esquerda?
O prof. Sampaio da
Nóvoa é uma grande personalidade académica, cultural e humana. Fiquei encantado
por ter aceitado o meu convite para presidir à sessão pública e aberta que terá
lugar no dia 30 às 21 horas, na Aula Magna da universidade de que é reitor.
Agora, se vai ser ou não candidato presidencial, não sei. Mas é evidente que
tem gabarito para o ser, se assim o quiser.
Também convidou o
seu amigo Manuel Alegre. Esta vai ser a primeira grande sessão em que vão estar
juntos depois da reconciliação, a discutirem os dois a esquerda ao mesmo tempo.
É verdade.
Participámos em muitas manifestações e acções no passado. Estamos bem
sincronizados politicamente para o voltar a fazer.
Pensam praticamente
o mesmo sobre isto?
Politicamente, sim.
E agora voltámos a ser amigos, desde que eu estive a morrer e ele, preocupado,
todos os dias falava aos meus filhos e à minha mulher. Quando melhorei, fiquei
reconhecido e telefonei-lhe. O futuro é o que conta. Almoçámos já, um dia,
telefonamos, falamos e somos amigos. Como no passado. A amizade é tão
importante - ou mais - do que a política. O que lá vai, lá vai. O que nos
interessa é o futuro.
Mas já está
recuperado.
Estou no bom
caminho, mas não posso esquecer que tenho 88 anos. O prof. António Damásio,
grande amigo, que esteve sempre em contacto com os médicos do hospital e a
minha família, passou agora por Lisboa e ficou convencido de que estou em
franca recuperação. Mas tenho ainda de ter cuidado.
Nunca foi possível
um governo que juntasse em coligação a esquerda em Portugal. Acha que hoje isso
já será possível? Esta sessão pode contribuir?
É verdade. Trata-se
de um encontro em que se fala da liberdade, contra a austeridade, e se reclama
a queda do governo. É importante, mas esgota-se nisto. Em 30 de Maio. O que se
passar a seguir, já não é comigo. Gostaria, obviamente, que os partidos de
esquerda, as centrais sindicais e o povo, que é quem mais ordena, se pudessem
entender.
Acha que o que se
passou a seguir ao 25 de Abril nunca mais se ultrapassou?
Ultrapassou-se,
pelo menos uma vez: quando Álvaro Cunhal, depois de ter apoiado Zenha, como
candidato, me apoiou na segunda volta, indicando que tapassem a minha cara, mas
pusessem a cruzinha no lugar que me pertencia. Tinha uma grande flexibilidade
táctica e uma enorme rigidez estratégica. Por isso o elogiei publicamente
quando fez 80 anos.
Mas o PCP nunca
ultrapassou?
É verdade. O
secretário-geral do PCP, em cada um dos seus discursos, faz uma diatribe contra
o PS. Não ganha nada com isso, só perde. Lembre-se dos comunistas alemães que,
no tempo de Hitler, atacavam os social-democratas. Ambos, comunistas e
social-democratas, morreram nos campos de concentração.
Com o Bloco de
Esquerda é diferente?
Não me cabe fazer
comparações. Mas é óbvio que são partidos diferentes e ambos se reclamam da
esquerda.
Mas, esta reunião,
vê-a mais como um combate ao governo ou como uma preparação do que pode ser uma
alternativa à austeridade?
É um encontro,
aberto ao público, para salientar que a austeridade nos leva necessariamente ao
abismo, a muito mais desemprego e à ruína do Estado social. Uma tragédia para
Portugal. Que, por isso, temos de demitir o governo e mostrar ao Presidente da
República, em nome da Constituição que jurou, que não pode continuar a
legitimá-lo.
O sr. dr. acredita
numa maioria absoluta do PS?
Em consciência, não
sou capaz de lhe responder. Mas o líder do PS, António José Seguro, tem-me dito
que é uma possibilidade. Por isso, era bom que dialogasse com a esquerda, quer
sejam militantes dos partidos ou não. Também com os militantes e antigos
militantes do PSD que estão críticos do governo e que representam, de longe, a
maioria. Não esqueçamos que quase dois terços dos militantes do PSD são contra
o governo, e os candidatos a presidentes dos diferentes municípios também. E
ainda com os militares e a Igreja. Sem isso, não podem ganhar.
Tem criticado
muitas vezes o Presidente da República por não estar à altura da situação. O
Presidente devia dissolver o parlamento?
Acho que devia
demitir o governo porque, como se tem visto, a legitimação do governo está a
destruir em absoluto a sua imagem junto da esmagadora maioria dos portugueses.
O que é um perigo que nunca aconteceu.
Mas, recentemente,
o Presidente fez uma declaração a dizer que o governo tem toda a legitimidade?
É verdade que disse
e foi terrível para ele. Um governo que não fala com o povo que o elegeu - nem
pode sair à rua sem ser vaiado - não tem legitimidade. Ou então é porque já não
estamos em democracia.
Como acha que se
encontra neste momento a situação de Paulo Portas no governo?
Paulo Portas tem
sido chantageado pelo governo por causa do processo dos submarinos e dos carros
de combate Pandur. Quando, pela primeira vez, Portas admitiu que estava a
ponderar se ficava ou não, o caso dos submarinos voltou à primeira linha. E
isso obriga-o a continuar no governo. O medo é que manda na vinha...
Dr. Soares, o
governo não chegou a tocar nas subvenções dos ex-Presidentes da República. O
senhor é o mais bem pago dos ex-Presidentes?
Não sou. Recebo o
mesmo que os outros ex-Presidentes. A imprensa confundiu certamente o que ganho
como ex-Presidente e os meus rendimentos pessoais, herdados dos meus pais. E
que são, aliás, partilhados com a minha mulher, porque somos casados com
comunhão de bens.
Que pensa deste
novo patriarca? O sr. dr. é um admirador deste novo Papa? Acredita mesmo que
vai mudar a Igreja?
Acredito que a
Igreja vai mudar e muito, para melhor. O novo Papa é uma grande personalidade,
amigo dos pobres e falando com todos, sejam crentes ou não, judeus ou
muçulmanos. É contra o capitalismo selvagem e a política de austeridade, como
tem dito e repetido. Que se pode exigir mais? Quanto ao novo patriarca
português - que conheço bem e estimo -, penso que é uma pessoa aberta, de
grande cultura, e humanamente muito conhecido como tal. Acho que estará muito
próximo do actual Papa e vai dar um novo impulso à Igreja portuguesa, que desde
o 25 de Abril se tornou muito aberta - incontestavelmente, muito mais do que a
Igreja espanhola.
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