Deutsche Welle
Em entrevista à DW
Brasil, um dos principais críticos do conservadorismo católico elogia
Francisco, afirmando que ele começou uma reforma do papado e pode dar início a
uma dinastia de papas de países do Terceiro Mundo.
O papa Francisco
vai inaugurar uma nova era para a Igreja Católica durante a Jornada Mundial da
Juventude, no Rio de Janeiro. Essa é a convicção do teólogo Leonardo Boff, que
em 1992 deixou todos os cargos na igreja, após ser censurado pelo Vaticano.
Em entrevista à DW
Brasil na sua casa em Petrópolis (RJ), o teólogo elogiou Francisco, afirmando
que ele é o papa da ruptura. "Essa é a palavra que Bento 16 e João Paulo
2º mais temiam. Eles acreditavam que a igreja tinha que ter continuidade",
avaliou Boff.
O teólogo, um dos
expoentes da Teologia da Libertação, disse acreditar que Francisco vai falar
sobre os recentes protestos no Brasil. "Ele fez uma declaração corajosa em
Roma, dizendo que os políticos têm que escutar os jovens na rua; que a causa
dos jovens é legítima, justa e que estaria em conformidade com o
evangelho."
DW Brasil: No
Rio de Janeiro, mais de um milhão de fiéis católicos vão se reunir e celebrar a
fé durante a Jornada Mundial da Juventude. No século 21, o cristianismo ainda
precisa da figura de um papa?
Leonardo Boff:
Fundamentalmente não precisaria de um papa. A igreja poderia se organizar numa
vasta rede de comunidades. Mas, à medida em que a igreja foi se transformando
numa instituição e assumindo uma função política no Império Romano, ela assumiu
também os símbolos do poder: o próprio nome "papa", que era exclusivo
dos imperadores, e aquela capinha cheia de ouro, que só os imperadores podiam
usar, mas que os papas todos usavam. Então, esse curso de uma igreja que tem
uma função política dentro do Império Romano em decadência obrigava a igreja a
ter um centro de referência. Francisco, quando ofereceram a ele aquela capinha,
disse "O carnaval acabou, não quero isso".
Então, esse papa
chegou para mudar?
Eu acho que esse é
o papa da ruptura. Essa é a palavra que Bento 16 e João Paulo 2º mais temiam.
Eles acreditavam que a igreja tinha que ter continuidade, portanto o Concílio
Vaticano Segundo não poderia significar ruptura com o Primeiro. Mas não, agora
há uma ruptura, a figura do papa não é mais a clássica, é outra. Francisco não
começou com a reforma da cúria, começou com a reforma do papado.
O que você quer
dizer com "reforma do papado"?
Na Europa vivem só
24% dos católicos. Na América Latina são 62%, e o restante está na África e na
Ásia. Então hoje, o cristianismo é uma religião do Terceiro Mundo, que um dia
teve origem no Primeiro Mundo. Acho que o papa Francisco vai criar uma dinastia
de papas do Terceiro Mundo. Além disso, as nossas igrejas já não são mais
igrejas de espelho, imitando as europeias; são igrejas fonte, criaram suas
tradições, têm os seus mártires, seus mestres, suas formas de celebrar, têm
suas teologias e profetas e figuras importantes, como dom Hélder Câmara e Óscar
Romero. Essas igrejas estão dando vitalidade ao cristianismo.
Por que o senhor
está tão otimista? Os problemas da Igreja Católica continuam: a exclusão dos
divorciados, a discriminação dos homossexuais, a proibição de
mulheres-sacerdotes...
O papa deu um
exemplo claro. Ele soube que um pároco em Roma negou o batismo ao filho de uma
mulher solteira. E o papa disse: "Esse padre está errado, porque não
existe mãe solteira. Existe mãe e filho. E ela tem o direito de ver o filho
batizado, porque a igreja tem que ter as portas abertas, pouco importa a
condição moral da pessoa". E ele foi mais fundo ao dizer que não se pode
inventar um oitavo sacramento, proibindo os fiéis que não se enquadrem na
disciplina eclesiástica de participar da vida da igreja e dos sacramentos. Até
agora, os temas de moral sexual, de moral familiar, de celibato e de
homossexualidade eram proibidos de serem discutidos. Se um teólogo ou um padre
discutisse esse assunto, era logo censurado. Agora, ele vai permitir a
discussão.
No Brasil, nas
últimas semanas, milhares de jovens foram às ruas protestar contra os políticos
corruptos e os altos investimentos nos estádios de futebol. Qual é o recado que
o papa vai dar aos jovens?
Ele fez uma
declaração corajosa em Roma, dizendo que os políticos têm que escutar os jovens
na rua; que a causa dos jovens é legítima, justa e que estaria em conformidade
com o evangelho. Eu acho que ele vai fazer uma convocação crítica aos
políticos, para que eles não sejam mais corruptos e passem a servir mais ao
povo. E vai fazer um desafio aos jovens de continuar a transformação da
sociedade, mas sem violência. E aí exclui todos esses vândalos que nos últimos
dias mostraram uma violência absolutamente injustificável e estúpida.
O senhor disse que
os programas sociais no Brasil "incluíram uma Argentina inteira na
sociedade brasileira". Por que então as pessoas protestam contra o governo
brasileiro?
Curiosamente, elas
não são contra o PT, a Dilma ou o Lula. Elas mostram uma insatisfação geral com
o Brasil que temos, que é um país com profundas desigualdades. São 5.000
famílias brasileiras que controlam 43% de toda a riqueza nacional. Além disso,
o próprio PT atingiu o seu teto. Ou ele muda e refaz a sua relação orgânica com
os movimentos sociais, ou ele se transforma num partido como os demais, que
buscam o poder e acabam se corrompendo.
A classe média
brasileira parece não estar gostando tanto dos programas de inclusão
social do governo brasileiro. Ela foi deixada de lado?
Com Lula, os ricos
ficaram mais ricos, e os pobres saíram da pobreza. Todo mundo ganhou. Eu creio
que o governo do PT não fez só uma distribuição de renda, favorecendo os
pobres, mas também fez uma redistribuição. Tirando de quem tem e passando para
quem não tem. Só que ele não aplicou isso às grandes fortunas. Ele tirou da
classe média, que ficou mais pobre.
O senhor acredita
que os políticos vão atender ao recado do papa na Jornada Mundial da Juventude?
Eu acho que ele vai
ser muito importante para a América Latina, porque o modo de ser dele vai
reforçar as novas democracias, que nasceram na resistência aos militares e
estão fazendo boas políticas sociais para os pobres, com inclusão. Então, ele
tem uma função política importante. A Cristina Kirchner, que vivia em polêmica
com ele, entendeu a lição e fez as pazes. Mas por quê? Porque o papa move
multidões. Talvez ninguém no mundo hoje possa reunir um milhão de pessoas.
Político nenhum, nem mesmo o Obama.
Mas a Igreja
Católica perdeu poder e influência?
Institucionalmente,
a igreja no Brasil está numa profunda crise. Pelo número de católicos,
deveríamos ter 100 mil padres. Temos 17 mil. Criou-se um vazio, pelo qual
entraram as igrejas pentecostais. E com razão. Como o povo é religioso, quem
vem falar de Deus, ele [o povo] adere, porque indo para Deus, podemos somar
sempre. Para batismo, casamento e enterro, é a Igreja Católica. Para saber o
outro lado do mundo, ele vai para o espiritismo. Para as questões de sorte e
amor, ele vai num centro de macumba. O povo não tem uma visão doutrinária, tem
uma visão prática. É um supermercado religioso, com muitos produtos, e o povo
vai se servindo.
Com Francisco, a
Teologia da Libertação vai voltar?
Com este papa, ela
vai ganhar visibilidade. Antes se dizia que a Teologia da Libertação era uma
teologia marxista. Agora se diz que ela é uma teologia católica. Isso muda a
atmosfera da igreja.
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