Rui Peralta, Luanda
I - Segundo a
Associação dos Direitos Humanos da Turquia (IHD) durante o ano de 2012 foram
registados mais de 20 mil casos de violação de direitos humanos. Cerca de 10
mil pessoas foram detidas, sendo a sua maioria activistas curdos, advogados,
professores, estudantes e sindicalistas. Sessenta e sete jornalistas estão
encarcerados, o que representa um recorde mundial. Oito deputados (dos quais
seis são curdos), trinta e seis presidentes de autarquia e mais de duzentos e
trinta vereadores (todos curdos), estão encarcerados. Existem mais de 12 mil
presos políticos, sendo 600 deles, menores.
Esta é a realidade
da Turquia de hoje, a Turquia de Erdogan, aquela que querem inserir na União
Europeia, esquecendo as estatísticas da repressão. Os protestos da Praça de
Taksim já levaram 5 vidas, quase 8 mil feridos e cerca de 3 mil detidos. Mas a
propagandística industria mediática faz tabua rasa destes números, preferindo
fazer vénias á pretensa boa saúde da economia turca, ao AKP e a Erdogan, que
levaram a “bom caminho” as medidas necessárias para o bom funcionamento da
economia e das finanças do país. E tudo por serem “bons alunos” do FMI, que
fazem “os trabalhos de casa” de forma aplicada, criando um “oásis” composto por
uma ampla maioria de pobres, em contraste com os pouquíssimos ricos, separados
por um fosso cada vez mais alargado. A taxa de desemprego oficial é de 18%, mas
se adicionarmos o trabalho precário e o trabalho infantil, a taxa duplica. A
taxa de desemprego na zona curda é superior a 50%, sendo nas zonas curdas o
tecido industrial prácticamente inexistente.
O “deslumbrante”
crescimento económico turco repousa essencialmente no sector da construção e do
imobiliário e em algum investimento estrangeiro, proveniente das monarquias
petrolíferas do Golfo. O sector da construção, além de ser um sector chave no
crescimento económico turco, é também uma ferramenta de expansão da influência
turca para o exterior. As empresas turcas de construção civil e obras públicas
operam em cerca de 100 países. São elas que levantam os edifícios cor de marfim
em Asgabat, a capital do Turquemenistão e constroem aeroportos em diversas
capitais balcânicas. Em território turco, Istambul é um enorme estaleiro, onde
se concentra a maior parte das construtoras turcas. Esta febre “desenvolvimentista”
de pouco serve, a não ser para estragar o que já estava feito enchendo os
bolsos aos construtores e especuladores imobiliários.
O analista político
turco Cengiz Aktar, da Universidade de Bahçeshir, considera que o governo turco
não estabeleceu parâmetros para as novas obras e escamoteou as obras de
renovação e preservação do passado histórico da cidade. Desta forma
priorizaram-se os lucros a curto prazo, assinalou, referindo: “Não existe um
plano para a cidade. Não há planificação urbana. Cada espaço que exista é bom
para construir, aos olhos do governo e dos seus parceiros construtores e
especuladores. É o apetite pelo dinheiro rápido.”
Mustafá Demir,
alcaide da municipalidade de Fatih, aponta no mesmo sentido que Aktar e
comenta: “Os políticos explicam que estão fazendo de Istambul um lugar melhor. Entendem
a modernidade urbana de um modo muito particular, imitando o que se fez nos USA
á cem anos atrás…É um conceito totalmente antiquado e inadequado.”
Aproveito para tecer
um breve comentário. As palavras de Aktar e Demir provocam, a quem vive em
Luanda, uma sensação de “déjà vu.” São estranhas as realidades, quando denotam
tal similaridade de comportamentos (as elites comportam-se sempre da mesma
maneira, têm atitudes aculturadas). A diferença é que, em Istambul, o atentado
á urbanidade é proveniente de um conceito erróneo que provoca a junção da fome
com a vontade de comer. Aqui, em Luanda, é só, mesmo, movimento de bolso. O
resultado é o mesmo. Fim de considerando.
II - O desemprego,
o trabalho precário e os salários baixos estão na raiz do descontentamento das
camadas populares. O clima de incerteza generalizada, quanto ao seu futuro é
agravado pela cavalgante divida pública, que ronda os 300 mil milhões de euros,
cerca de 42% do PIB. Como se nada se passasse o governo turco leva a cabo
projecto faraónicos, como a terceira ponte do Bósforo, o novo canal no estreito
do Bósforo, o novo aeroporto internacional, a construção de novas cidades, (novamente
a sensação de déjà vu, caros leitores luandenses?), centros comerciais nas
praças históricas, etc. Todas estas obras e projectos beneficiam a cúpula
financiadora das actividades do AKP.
Enquanto os
negócios são tratados, longe dos olhares atentos, os protestos massivos são reprimidos
de forma feroz pelas unidades anti distúrbios da policia turca.
Estes protestos,
pela sua pluralidade de componentes e de temáticas, não têm o objectivo
exclusivo de afastar Erdogan, mas sim de por em causa o conceito de
desenvolvimento e as políticas subjacentes a este conceito. Os protestos
englobam, para além do desemprego, a política ambiental, a questão dos direitos
individuais, o papel exacerbado do Estado na vida privada dos cidadãos e a crítica
ao envolvimento turco na Síria.
A questão dos
direitos cívicos e individuais assume particular importância, pois um dos
objectivos de Erdogan tem sido o ataque aos direitos individuais, feitos em
nome de uma suprema moral social e dos valores pretensamente islâmicos. A
limitação da esfera privada dos cidadãos turcos, passa actualmente por questões
como a do aborto, o ensino religioso obrigatório, a restrição ao consumo e
venda de bebidas alcoólicas, censura na comunicação social, restrição á
liberdade de expressão, chegando ao ridículo de realizar campanhas para exortar
as mulheres turcas a terem o mínimo de três filhos, ou a campanha destinada aos
homens, para que bebam “ayran”, (iogurte batido) em vez de “raki”, uma bebida
alcoólica nacional.
Quanto á
contestação á política externa, os protestos assentam na relação com a Síria e
o envolvimento do governo do AKP nos assuntos internos sírios. O povo turco e
as comunidades nacionais temem que este envolvimento se torne directo e conduza
a uma guerra. Durante anos, o governo do AKP gabava-se de não ter problema com
os estados dos países vizinhos. Hoje, exceptuando a Geórgia, a Turquia tem
problemas com todos os seus vizinhos.
O ano passado o
governo turco acedeu á instalação do escudo antimíssil norte-americano,
apontado ao Irão, com o objectivo de resguardar Israel, pais com o qual as
relações económicas são excelentes, tendo nos últimos dois anos aumentado
substancialmente a aquisição de material bélico israelita, para combater as
guerrilhas curdas. Recentemente o governo turco, sendo a Turquia membro da NATO
desde 1952, solicitou a instalação de misseis Patriot na fronteira com a Síria,
temendo uma “agressão síria”. Todas estas manobras bélicas do governo de
Erdogan causam desconfiança no seio da população e tornam a questão do
envolvimento turco no conflito sírio, uma das temáticas de maior alcance dos
protestos populares.
III - Mesquita de
Córdoba, dia 17 de Junho, cerca das 16 horas, um casal e seus dois filhos (de três
e quatro anos), visitavam despreocupadamente a mesquita, aproveitando um
pequeno período de férias, na Andaluzia. O cenário apresentava-se agradável e
tudo fazia crer ao casal que seria uma prazenteira visita, quando, de repente, uma
dezena de polícias, á civil, cercaram o casal e as crianças. Agarram o homem e
algemam-no, levando-o para uma viatura estacionada na rua Torrijos. A esposa e
os filhos foram colocados noutra viatura. Todos foram levados para um
comissariado da cidade, saindo as crianças e a mulher pouco depois. Quanto ao
homem, só sairia em liberdade cinco dias após estes acontecimentos. O cidadão
turco-belga vitima desta aberração policial (e jurídica) chama-se Bahar
Kimyongür.
No comissariado em
Córdoba, tomou conhecimento que a sua grotesca detenção, digna de um exercício
de formação de polícias, foi realizada com base numa informação da Interpol,
que procedeu a uma queixa do governo turco, acusando-o de ter participado no
dia 28 do mês de Novembro do ano 2000, numa acção de protesto efectuada no
Parlamento Europeu. A queixa foi reactivada a 28 de Maio deste ano, 20 dias
antes desta grotesca detenção ter ocorrido. No mínimo, insólito…
A acção de protesto
efectuada no ano 2000 consistiu na interrupção de uma reunião que o ministro
turco das relações exteriores, na época o senhor Ismail Cem, realizou com uma
comissão para os direitos humanos do Parlamento Europeu. A reunião tinha como
objectivo, apurar os progressos realizados pelo governo turco em matéria de
direitos humanos e saber o que o governo da época pretendia fazer em relação a
uma greve da fome efectuada nas cadeias turcas, levada a cabo por milhares de
presos políticos, em protesto pelas torturas sofridas nos interrogatórios e
pelos maus tratos a que eram sujeitos nas cadeias.
Em Setembro de
1999, o exército turco numa operação conjunta com a polícia e os serviços de
segurança turcos - o Milli Istihbarat Teskilati (MIT), uns serviços bizantinos
e tenebrosos, tirados das histórias dos sultões no tempo do Imperio Otomano –
em Ulucanlar, operação que causou números detidos políticos e foi responsável
por numerosos massacres ocorridos nas mais inóspitas aldeias curdas. A operação
foi repetida em Burdur, em Julho de 2000 e foi concluída com a operação “Diluvio”,
em Dezembro do mesmo ano. Este conjunto de operações provocou milhares de
prisioneiros políticos (entre militantes curdos, sindicalistas turcos e
estudantes) e numerosos massacres nas zonas rurais.
Nesses tempos o
AKP, partido do actual primeiro-ministro Erdogan, ainda não tinha sido formado
e a acção de protesto em que Bahar Kimyongür participou, no Parlamento Europeu,
recaia sobre o governo de coligação que precedeu a chegada ao poder do AKP. Os
serviços de segurança do Parlamento europeu, após conclusão da acção,
acompanharam os manifestantes até á saída do Parlamento, de forma amável e
dialogante. Ninguém foi detido, nem existiu qualquer identificação por parte
das autoridades europeias. No dia seguinte, os participantes nesta acção de
protesto (todos turcos residentes na União Europeia, ou com dupla
nacionalidade, como no caso de Bahar) ficaram a saber através dos meios de
comunicação social pró-governamentais turcos, que o governo turco pediu a
extradição dos manifestantes. Na época, as autoridades europeias não ligaram ao
assunto e ninguém foi condenado ou extraditado (Bahar, como é também cidadão
belga, estava protegido face á extradição).
Eis que treze anos
depois, o longo braço otomano chegou á vida de Bahar, apanhando-o desprevenido,
em férias na Andaluzia. Esqueceram-se os bizantinos novos sultões otomanos que,
na União Europeia, Bahar é belga, logo cidadão europeu, pormenor que escapou
também aos polícias espanhóis. Aliás os pormenores deste caso escaparam a muita
gente. Será que os polícias espanhóis que efectuaram a aparatosa detenção de
Bahar ainda eram recrutas, ou recém-saídos da academia? E o juiz que assinou o
mandato? Será que esteve muito tempo sem exercer e foi esquecendo, ou fez as
cadeiras ao fim-de-semana? E a Interpol que não cruzou os dados e viu que
estava na presença de uma falsa acusação de “terrorismo” com mais de treze anos
de infundadas acusações? Ou será que as ordens provenientes da assembleia de
accionistas em Washington, diz que agora é assim e os funcionários correm em
azáfama para cumprir as instruções dos amos, como faziam os sipaios nas
colónias?
Seja como for e
embora a coisa não termine por aqui (Bahar teve de pagar uma fiança de 10 mil
euros e tem ainda uma serie de procedimentos a cumprir, até se ver livre desta
alhada, apesar das autoridades terem admitido que agiram precipitadamente)
Bahar já tem mais uma história para contar aos netos e com o testemunho dos
seus filhos, futuros pais dos seus netos.
IV - Mas nem todos
os cidadãos turcos residentes na U.E. têm a mesma sorte de Bahar. Nezif Eski,
da Anatólia, residente em Paris, sofre de algia vascular facial, o que o deixa
afastado de qualquer tipo de actividade que exija muito esforço físico, ou
concentração mental. Nezif organizava manifestações autorizadas, montava stands
de informação sobre a Anatólia e escrevia para diversos blogs. A sua doença
obriga-o a uma vida tranquila, sem muita agitação. Apesar disso e mesmo sem a
justiça francesa o acusar de actos violentos, Nezif foi subitamente condenado a
uma pena de quatro anos, em Dezembro de 2012, acusado de pertencer ao movimento
revolucionário da Anatólia.
Este mês foi pai,
pela segunda vez, mas os juízes negaram-lhe a possibilidade de aguardar as
conclusões do processo de apelação em liberdade. Ainda não viu o seu filho
recém-nascido e desde Dezembro que não abraça ou beija a sua filha de três
anos, vendo-a apenas através da vitrina separadora, que o impede de contactar
fisicamente com as visitas. Parece que no aparelho de Estado francês, os
burocratas não leem o Tintim, nem o Asterix e não conhecem os princípios
básicos da Revolução Francesa, trocando Liberdade, Igualdade e Fraternidade,
por Atrocidade, Crueldade e Desumanidade.
Devem ser os
hábitos adquiridos pela recolonização da Africa Francófona…ou serão as saudades
dos tempos em que podiam torturar os guerrilheiros argelinos?
V - O discurso de
Erdogan, já não consiste em frases estruturadas, mas sim em palavras
onomatopaicas. Foi um hábito adquirido desde que começaram os protestos. São os
códigos das bestas, apreendidos por quem está por detrás dos canhões de água e
lança o gás lacrimogéneo. Erdogan aperfeiçoou o conceito de polícia anti
distúrbio e transformou-se num primeiro-ministro anti distúrbio.
É também o primeiro
estadista, anti-arquitectura, cargo que assumiu oficialmente este mês, quando o
Parlamento passou a lei que anulou as competências do Colégio Oficial de
Arquitectos. E para confirmar que a coisa foi mesmo anulada, a secretária-geral
do Colégio Oficial de Arquitectos, a arquitecta Mücella Yapici, foi detida e
acusada de actividades antigovernamentais, sendo posta em liberdade pelo
tribunal.
Mas para além dos
canhões de água e do gás lacrimogéneo, Erdogan conta com o apoio de grupos de
civis armados, que agridem jornalistas e manifestantes, enquanto vociferam
slogans de apoio ao primeiro-ministro. E quanto aos advogados, até eles já
entraram na vasta lista de suspeitos, criada por Erdogan. Quando este decidir,
fujam advogados, que nem os vossos dotes oratórios os salvarão! Vejam o que
aconteceu aos arquitectos…
Afinal Sultão é
Sultão e Erdogan é quem manda no Sultanato. Pelo menos enquanto o habitante da
Casa Branca consentir.
Fontes
Larragoiti, Alex http://gara.naiz.info/paperezkoa/20130705/411641/es/Erdogan-a-Dios-rogando-mazo-dando?inprimatu=1
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