terça-feira, 23 de julho de 2013

TURKISH BLEND




Rui Peralta, Luanda

I - Segundo a Associação dos Direitos Humanos da Turquia (IHD) durante o ano de 2012 foram registados mais de 20 mil casos de violação de direitos humanos. Cerca de 10 mil pessoas foram detidas, sendo a sua maioria activistas curdos, advogados, professores, estudantes e sindicalistas. Sessenta e sete jornalistas estão encarcerados, o que representa um recorde mundial. Oito deputados (dos quais seis são curdos), trinta e seis presidentes de autarquia e mais de duzentos e trinta vereadores (todos curdos), estão encarcerados. Existem mais de 12 mil presos políticos, sendo 600 deles, menores.

Esta é a realidade da Turquia de hoje, a Turquia de Erdogan, aquela que querem inserir na União Europeia, esquecendo as estatísticas da repressão. Os protestos da Praça de Taksim já levaram 5 vidas, quase 8 mil feridos e cerca de 3 mil detidos. Mas a propagandística industria mediática faz tabua rasa destes números, preferindo fazer vénias á pretensa boa saúde da economia turca, ao AKP e a Erdogan, que levaram a “bom caminho” as medidas necessárias para o bom funcionamento da economia e das finanças do país. E tudo por serem “bons alunos” do FMI, que fazem “os trabalhos de casa” de forma aplicada, criando um “oásis” composto por uma ampla maioria de pobres, em contraste com os pouquíssimos ricos, separados por um fosso cada vez mais alargado. A taxa de desemprego oficial é de 18%, mas se adicionarmos o trabalho precário e o trabalho infantil, a taxa duplica. A taxa de desemprego na zona curda é superior a 50%, sendo nas zonas curdas o tecido industrial prácticamente inexistente.

O “deslumbrante” crescimento económico turco repousa essencialmente no sector da construção e do imobiliário e em algum investimento estrangeiro, proveniente das monarquias petrolíferas do Golfo. O sector da construção, além de ser um sector chave no crescimento económico turco, é também uma ferramenta de expansão da influência turca para o exterior. As empresas turcas de construção civil e obras públicas operam em cerca de 100 países. São elas que levantam os edifícios cor de marfim em Asgabat, a capital do Turquemenistão e constroem aeroportos em diversas capitais balcânicas. Em território turco, Istambul é um enorme estaleiro, onde se concentra a maior parte das construtoras turcas. Esta febre “desenvolvimentista” de pouco serve, a não ser para estragar o que já estava feito enchendo os bolsos aos construtores e especuladores imobiliários.

O analista político turco Cengiz Aktar, da Universidade de Bahçeshir, considera que o governo turco não estabeleceu parâmetros para as novas obras e escamoteou as obras de renovação e preservação do passado histórico da cidade. Desta forma priorizaram-se os lucros a curto prazo, assinalou, referindo: “Não existe um plano para a cidade. Não há planificação urbana. Cada espaço que exista é bom para construir, aos olhos do governo e dos seus parceiros construtores e especuladores. É o apetite pelo dinheiro rápido.”

Mustafá Demir, alcaide da municipalidade de Fatih, aponta no mesmo sentido que Aktar e comenta: “Os políticos explicam que estão fazendo de Istambul um lugar melhor. Entendem a modernidade urbana de um modo muito particular, imitando o que se fez nos USA á cem anos atrás…É um conceito totalmente antiquado e inadequado.”

Aproveito para tecer um breve comentário. As palavras de Aktar e Demir provocam, a quem vive em Luanda, uma sensação de “déjà vu.” São estranhas as realidades, quando denotam tal similaridade de comportamentos (as elites comportam-se sempre da mesma maneira, têm atitudes aculturadas). A diferença é que, em Istambul, o atentado á urbanidade é proveniente de um conceito erróneo que provoca a junção da fome com a vontade de comer. Aqui, em Luanda, é só, mesmo, movimento de bolso. O resultado é o mesmo. Fim de considerando.  

II - O desemprego, o trabalho precário e os salários baixos estão na raiz do descontentamento das camadas populares. O clima de incerteza generalizada, quanto ao seu futuro é agravado pela cavalgante divida pública, que ronda os 300 mil milhões de euros, cerca de 42% do PIB. Como se nada se passasse o governo turco leva a cabo projecto faraónicos, como a terceira ponte do Bósforo, o novo canal no estreito do Bósforo, o novo aeroporto internacional, a construção de novas cidades, (novamente a sensação de déjà vu, caros leitores luandenses?), centros comerciais nas praças históricas, etc. Todas estas obras e projectos beneficiam a cúpula financiadora das actividades do AKP.

Enquanto os negócios são tratados, longe dos olhares atentos, os protestos massivos são reprimidos de forma feroz pelas unidades anti distúrbios da policia turca. 
                                                                         
Estes protestos, pela sua pluralidade de componentes e de temáticas, não têm o objectivo exclusivo de afastar Erdogan, mas sim de por em causa o conceito de desenvolvimento e as políticas subjacentes a este conceito. Os protestos englobam, para além do desemprego, a política ambiental, a questão dos direitos individuais, o papel exacerbado do Estado na vida privada dos cidadãos e a crítica ao envolvimento turco na Síria.

A questão dos direitos cívicos e individuais assume particular importância, pois um dos objectivos de Erdogan tem sido o ataque aos direitos individuais, feitos em nome de uma suprema moral social e dos valores pretensamente islâmicos. A limitação da esfera privada dos cidadãos turcos, passa actualmente por questões como a do aborto, o ensino religioso obrigatório, a restrição ao consumo e venda de bebidas alcoólicas, censura na comunicação social, restrição á liberdade de expressão, chegando ao ridículo de realizar campanhas para exortar as mulheres turcas a terem o mínimo de três filhos, ou a campanha destinada aos homens, para que bebam “ayran”, (iogurte batido) em vez de “raki”, uma bebida alcoólica nacional.

Quanto á contestação á política externa, os protestos assentam na relação com a Síria e o envolvimento do governo do AKP nos assuntos internos sírios. O povo turco e as comunidades nacionais temem que este envolvimento se torne directo e conduza a uma guerra. Durante anos, o governo do AKP gabava-se de não ter problema com os estados dos países vizinhos. Hoje, exceptuando a Geórgia, a Turquia tem problemas com todos os seus vizinhos.

O ano passado o governo turco acedeu á instalação do escudo antimíssil norte-americano, apontado ao Irão, com o objectivo de resguardar Israel, pais com o qual as relações económicas são excelentes, tendo nos últimos dois anos aumentado substancialmente a aquisição de material bélico israelita, para combater as guerrilhas curdas. Recentemente o governo turco, sendo a Turquia membro da NATO desde 1952, solicitou a instalação de misseis Patriot na fronteira com a Síria, temendo uma “agressão síria”. Todas estas manobras bélicas do governo de Erdogan causam desconfiança no seio da população e tornam a questão do envolvimento turco no conflito sírio, uma das temáticas de maior alcance dos protestos populares.

III - Mesquita de Córdoba, dia 17 de Junho, cerca das 16 horas, um casal e seus dois filhos (de três e quatro anos), visitavam despreocupadamente a mesquita, aproveitando um pequeno período de férias, na Andaluzia. O cenário apresentava-se agradável e tudo fazia crer ao casal que seria uma prazenteira visita, quando, de repente, uma dezena de polícias, á civil, cercaram o casal e as crianças. Agarram o homem e algemam-no, levando-o para uma viatura estacionada na rua Torrijos. A esposa e os filhos foram colocados noutra viatura. Todos foram levados para um comissariado da cidade, saindo as crianças e a mulher pouco depois. Quanto ao homem, só sairia em liberdade cinco dias após estes acontecimentos. O cidadão turco-belga vitima desta aberração policial (e jurídica) chama-se Bahar Kimyongür.

No comissariado em Córdoba, tomou conhecimento que a sua grotesca detenção, digna de um exercício de formação de polícias, foi realizada com base numa informação da Interpol, que procedeu a uma queixa do governo turco, acusando-o de ter participado no dia 28 do mês de Novembro do ano 2000, numa acção de protesto efectuada no Parlamento Europeu. A queixa foi reactivada a 28 de Maio deste ano, 20 dias antes desta grotesca detenção ter ocorrido. No mínimo, insólito…

A acção de protesto efectuada no ano 2000 consistiu na interrupção de uma reunião que o ministro turco das relações exteriores, na época o senhor Ismail Cem, realizou com uma comissão para os direitos humanos do Parlamento Europeu. A reunião tinha como objectivo, apurar os progressos realizados pelo governo turco em matéria de direitos humanos e saber o que o governo da época pretendia fazer em relação a uma greve da fome efectuada nas cadeias turcas, levada a cabo por milhares de presos políticos, em protesto pelas torturas sofridas nos interrogatórios e pelos maus tratos a que eram sujeitos nas cadeias.    

Em Setembro de 1999, o exército turco numa operação conjunta com a polícia e os serviços de segurança turcos - o Milli Istihbarat Teskilati (MIT), uns serviços bizantinos e tenebrosos, tirados das histórias dos sultões no tempo do Imperio Otomano – em Ulucanlar, operação que causou números detidos políticos e foi responsável por numerosos massacres ocorridos nas mais inóspitas aldeias curdas. A operação foi repetida em Burdur, em Julho de 2000 e foi concluída com a operação “Diluvio”, em Dezembro do mesmo ano. Este conjunto de operações provocou milhares de prisioneiros políticos (entre militantes curdos, sindicalistas turcos e estudantes) e numerosos massacres nas zonas rurais.

Nesses tempos o AKP, partido do actual primeiro-ministro Erdogan, ainda não tinha sido formado e a acção de protesto em que Bahar Kimyongür participou, no Parlamento Europeu, recaia sobre o governo de coligação que precedeu a chegada ao poder do AKP. Os serviços de segurança do Parlamento europeu, após conclusão da acção, acompanharam os manifestantes até á saída do Parlamento, de forma amável e dialogante. Ninguém foi detido, nem existiu qualquer identificação por parte das autoridades europeias. No dia seguinte, os participantes nesta acção de protesto (todos turcos residentes na União Europeia, ou com dupla nacionalidade, como no caso de Bahar) ficaram a saber através dos meios de comunicação social pró-governamentais turcos, que o governo turco pediu a extradição dos manifestantes. Na época, as autoridades europeias não ligaram ao assunto e ninguém foi condenado ou extraditado (Bahar, como é também cidadão belga, estava protegido face á extradição).

Eis que treze anos depois, o longo braço otomano chegou á vida de Bahar, apanhando-o desprevenido, em férias na Andaluzia. Esqueceram-se os bizantinos novos sultões otomanos que, na União Europeia, Bahar é belga, logo cidadão europeu, pormenor que escapou também aos polícias espanhóis. Aliás os pormenores deste caso escaparam a muita gente. Será que os polícias espanhóis que efectuaram a aparatosa detenção de Bahar ainda eram recrutas, ou recém-saídos da academia? E o juiz que assinou o mandato? Será que esteve muito tempo sem exercer e foi esquecendo, ou fez as cadeiras ao fim-de-semana? E a Interpol que não cruzou os dados e viu que estava na presença de uma falsa acusação de “terrorismo” com mais de treze anos de infundadas acusações? Ou será que as ordens provenientes da assembleia de accionistas em Washington, diz que agora é assim e os funcionários correm em azáfama para cumprir as instruções dos amos, como faziam os sipaios nas colónias?

Seja como for e embora a coisa não termine por aqui (Bahar teve de pagar uma fiança de 10 mil euros e tem ainda uma serie de procedimentos a cumprir, até se ver livre desta alhada, apesar das autoridades terem admitido que agiram precipitadamente) Bahar já tem mais uma história para contar aos netos e com o testemunho dos seus filhos, futuros pais dos seus netos.

IV - Mas nem todos os cidadãos turcos residentes na U.E. têm a mesma sorte de Bahar. Nezif Eski, da Anatólia, residente em Paris, sofre de algia vascular facial, o que o deixa afastado de qualquer tipo de actividade que exija muito esforço físico, ou concentração mental. Nezif organizava manifestações autorizadas, montava stands de informação sobre a Anatólia e escrevia para diversos blogs. A sua doença obriga-o a uma vida tranquila, sem muita agitação. Apesar disso e mesmo sem a justiça francesa o acusar de actos violentos, Nezif foi subitamente condenado a uma pena de quatro anos, em Dezembro de 2012, acusado de pertencer ao movimento revolucionário da Anatólia.

Este mês foi pai, pela segunda vez, mas os juízes negaram-lhe a possibilidade de aguardar as conclusões do processo de apelação em liberdade. Ainda não viu o seu filho recém-nascido e desde Dezembro que não abraça ou beija a sua filha de três anos, vendo-a apenas através da vitrina separadora, que o impede de contactar fisicamente com as visitas. Parece que no aparelho de Estado francês, os burocratas não leem o Tintim, nem o Asterix e não conhecem os princípios básicos da Revolução Francesa, trocando Liberdade, Igualdade e Fraternidade, por Atrocidade, Crueldade e Desumanidade.

Devem ser os hábitos adquiridos pela recolonização da Africa Francófona…ou serão as saudades dos tempos em que podiam torturar os guerrilheiros argelinos?             

V - O discurso de Erdogan, já não consiste em frases estruturadas, mas sim em palavras onomatopaicas. Foi um hábito adquirido desde que começaram os protestos. São os códigos das bestas, apreendidos por quem está por detrás dos canhões de água e lança o gás lacrimogéneo. Erdogan aperfeiçoou o conceito de polícia anti distúrbio e transformou-se num primeiro-ministro anti distúrbio.

É também o primeiro estadista, anti-arquitectura, cargo que assumiu oficialmente este mês, quando o Parlamento passou a lei que anulou as competências do Colégio Oficial de Arquitectos. E para confirmar que a coisa foi mesmo anulada, a secretária-geral do Colégio Oficial de Arquitectos, a arquitecta Mücella Yapici, foi detida e acusada de actividades antigovernamentais, sendo posta em liberdade pelo tribunal.

Mas para além dos canhões de água e do gás lacrimogéneo, Erdogan conta com o apoio de grupos de civis armados, que agridem jornalistas e manifestantes, enquanto vociferam slogans de apoio ao primeiro-ministro. E quanto aos advogados, até eles já entraram na vasta lista de suspeitos, criada por Erdogan. Quando este decidir, fujam advogados, que nem os vossos dotes oratórios os salvarão! Vejam o que aconteceu aos arquitectos…

Afinal Sultão é Sultão e Erdogan é quem manda no Sultanato. Pelo menos enquanto o habitante da Casa Branca consentir.   

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