Rui Peralta, Luanda
I - Durante duas
décadas a Itália teve por primeiro-ministro um delinquente fiscal que
deliciava-se com as imagens do Paraíso de Alá, feito de rios de leite e mel e
povoado por inúmeras jovens doces e esbeltas. Um delinquente fiscal
reincidente, que defraudou o Estado, como Primeiro-Ministro, título conquistado
e mantido graças aos desmesurados recursos que possuía e á impotência
propositada de uma oposição conivente.
A sentença do poder
judicial, que condena o delinquente Berlusconi, põe a descoberto, de forma
transcendente, duas décadas da mais pura malandragem. Duas décadas em que o
poder executivo foi um antro de canalhas e o poder legislativo um retiro de
imbecis. E nenhum juízo político sério o pode atenuar, nem mesmo o bem passante
- e melhor falante - Partido Democrático, que candidamente (como donzela que
deixou cair o lenço perfumado no chão enlameado) repete a cantilena que separa
as questões judiciais das questões politicas (como se a Politica prescindisse
dos pressupostos da Justiça).
Sejam quais forem
as respostas e os gestos de “indignação” dos actuais protagonistas da opereta
(os gritos de desespero do centro-direita e os sussurros desconcertados do
centro-esquerda) uma coisa é certa: terminou um ciclo de impunidade, onde os
negócios se cruzaram com a vida pública, numa emaranhada e bem compactada teia
de interesses privados. Afirmou-se um princípio da legalidade, comprovando que
a Lei não se detém às portas dos palácios e caiu um “poderoso”, como quando se
quebrou a influência da MAFIA nos corredores políticos (abençoados pela
Democracia-Cristã e com os tapetes estendidos pela “Sinistra democrática”)
As consequências
deste facto são difíceis de calcular. No imediato, pode-se afirmar a
ilegitimidade política do partido a que Berlusconi presidia (e onde era o
principal accionista, sendo por isso o “seu” partido). A actual maioria e o
actual Parlamento são aberrações, perante os acontecimentos. Nem um assomo
fingido de indignidade. Nada! Apenas um súbito despertar da necessidade em “reformar
a Justiça”. Foi a única ideia que ocorreu aos pelintras falsários do poder
executivo e aos apalermados e ensonados representantes do povo, o poder
legislativo.
No abismo da crise
italiana, a Constituição é a única rocha firme. Permitir que forças ilegítimas
e indignas minem a sua integridade é mais um delito. Nunca como hoje, urge
aplicar os princípios e os valores constitucionais e não alterá-la conforme
pretende o coro desafinado da opereta. E a urgência ainda é maior, quando
ouvimos da boca (suja, obviamente) do presidente da Republica a intenção de
sacrificar a Magistratura perante a ira do centro-direita, no exacto momento em
que o seu chefe, na sua desconexa mensagem televisiva a atacava de forma
grosseira (a típica grosseria arrogante dos que se habituaram á impunidade).
Parece que o deus do obtuso presidente da Republica de Itália é o deus da
estabilidade governamental e a ele sacrifica tudo, mesmo a Justiça.
No longo-prazo
vamos assistir a uma troca de assentos entre o centro-direita e o
centro-esquerda (as trocas do tacho) e á deambulação do eleitorado da direita
que vai andar em busca de uma nova morada, passando pelos ares macambúzios do
eleitorado de esquerda, que procura uma razão para votar. Esta será a “nuvem
tóxica” que pairará sobre as cabeças dos eleitores, efeito dos “grandes
entendimentos” de interesses, que anulam os anticorpos morais, que ainda
resistem á “infecção berlusconiana” na torpedeada sociedade italiana.
A solução passa por
uma mudança da partitura, do maestro, do coro, dos cantores solistas e da
orquestra. E se calhar, também, por uma mudança da sala…É que a acústica e o
visual da actual só mesmo para surdos, cegos e mudos!
II - Outro produto
da ordem imposta pelos Aliados após a II Guerra Mundial é o Japão actual. Aliás
pode-se mesmo afirmar que a II Guerra Mundial nunca terminou para o Japão.
Sessenta anos depois do navio de guerra “US Missouri” ancorar na Baia de Tóquio
para receber a rendição do Império Japonês, o Japão permanece uma nação
derrotada, mesmo sendo um dos grandes poderios económicos á escala global. Aos
japoneses é constantemente recordado o mais recente período negro da sua
História, não como forma pedagógica, para não ser esquecido pelas gerações mais
novas, para que os erros que conduziram a esse período nunca se tornem a
verificar, mas de uma forma que implica a submissão do povo japonês, como se o
japonês fosse um ser maléfico, de maus instintos, que tem de ser constantemente
lembrado dos crimes e das atrocidades que o Império cometeu.
O Japão é um
gigante de pés de barro, atolado na estagnação económica. Reformas e mais
reformas não conseguiram injectar vida no crescimento económico. E por uma
razão: o Japão, o gigante económico, caminha sob pés de barro porque não tem
Forças Armadas, ou melhor, porque está proibido de ter Forças Armadas. A
chamada Força de Autodefesa foi criada para deter o avanço anfíbio dos
soviéticos sobre as ilhas do norte do país. A constituição imposta pelos norte-americanos,
durante o acto de rendição, impede o Japão de realizar operações militares ou
de exportar armas e equipamentos. O gigante económico é, afinal, um pigmeu
militar.
O Tratado de
Segurança, assinado em 1960, entre os USA e o Japão, estabelece as relações de
Segurança e Defesa entre os USA e o Japão. Por esse tratado os USA
responsabilizam-se pela defesa do Japão. A chave do tratado é o estabelecimento
de bases áreas, de forças terrestres e navais permanentes dos USA em território
japonês. E assim permanece desde essa data. O Japão tornou-se num imenso
porta-aviões norte-americano, que domina estrategicamente todo o Norte da Ásia.
Em troca o mercado norte-americano abriu as portas á indústria japonesa (mais
tarde, á Coreia do Sul, foi dada a mesma oportunidade).
Este cozinhado foi
alterado pelo rápido crescimento económico e militar da China, nas últimas
décadas. A China é uma das nações que mais fala do militarismo japonês (sofreu
a invasão japonesa e sentiu na pele as atrocidades dos militaristas) e que
espalha na região o fantasma do militarismo nipónico. Mas a China fá-lo com um
sentido estratégico, não porque tema o renascimento do militarismo japonês (que
esperemos os japoneses nunca permitam), mas porque sabe o que pode acontecer á
sua estratégia xenófoba, nacionalista e hegemonista, na região se o Japão se
arma. Um Japão com Forças Armadas, um Japão realmente independente é um
obstáculo incontornável para a China.
Repare-se na forma
como os chineses pressionam a integridade territorial japonesa nos últimos
meses, na questão das Ilhas Senkaku, administradas pelo Japão desde o século
XIX, mas reclamadas pela China, No mesmo sentido, expansionista, está a recente
ofensiva propagandística do regime pós-maoista chinês sobre Okinawa, alegando
que esta região pagava, no passado, tributo ao Império do Meio. Se a estas
reivindicações chinesas, juntarmos o rápido crescimento da frota naval de
guerra chinesa e da Força Aérea Chinesa, que projectam a influência chinesa em
todo o Pacifico, conseguiremos a profunda preocupação dos japoneses, que não
têm meios militares para se defenderem. Enquanto os tambores do nacionalismo
chinês soam cada vez mais alto, a sensação de vulnerabilidade cresce no Japão.
Os japoneses sabem que os norte-americanos não arriscarão um confronto com a
China e que fazem tábua rasa sobre a questão das Ilhas Senkaku ou das Ilhas Ryu
Kyu (Okinawa).
Pelo seu lado a
China vê no Japão um obstáculo que impede a livre movimentação da sua frota no
Pacifico, o que já acontecia com a ex-URSS. O fluxo logístico marítimo chinês
tem de passar pelos pontos das Ilhas Senkaku e Ryu Kyu, no Japão, ou pelo
estreito de Luzon, nas Filipinas (por isso os USA negoceiam com Manila a
reabertura da base aéreo-naval de Subic Bay, desactivada em 1992).
A China tenta
claramente resolver estas questões de forma musculada e recorrendo a largas
campanhas de intoxicação propagandística, relembrando constantemente o fantasma
do militarismo nipónico na II Guerra Mundial e mostrando a toda a Asia quem é o
novo macho alfa da região. É com um sorriso amarelo que poderemos ver no
oficioso CCTV News, a forma sobranceira e arrogante com que os japoneses são
tratados e na forma como os analistas e jornalistas chineses falam dos Estados
vizinhos (nem mesmo os seus parceiros BRICS da India escapam a uma certa
condescendência, excepto os Russos que, por razões óbvias, são sempre referidos
formalmente).
Os japoneses estão
perfeitamente conscientes da sua posição, mas não têm decisão soberana.
Submetido aos USA pela força nuclear, o Japão não tem capacidade para responder
aos actuais acontecimentos. A apreensão japonesa aumenta quando deparam com a
recente nomeação da embaixadora norte-americana Caroline Kennedy, uma apoiante
de Obama e financiadora das suas campanhas, que não é a pessoa mais adequada
para o cargo - tendo em conta o peso e a responsabilidade dos USA – nestes
tempos conturbados.
As opções japonesas
são claras: ou esperam que os USA resolvam a questão e permanecem enjaulados
aos tratados derivados da II Guerra Mundial, ou rompem com esses tratados,
mandam o Imperador às urtigas (ou para os seus amos na Casa Branca),
implementam a Republica e assumem o seu destino nas suas mãos. Só com uma
Republica Democrática e independente, os japoneses poderão ultrapassar o longo
ciclo de estagnação que sujeita a sua economia e transpor o seu manancial
económico para a reconstrução das suas forças armadas (incluindo a capacidade
nuclear) assumindo-se como garante da Paz na região, limpando os fantasmas do
passado.
A chave desta região passa pois pelo
Japão. É apenas uma questão deste assumir a sua soberania. Sem complexos.
III - Saindo das
Periferias do Centro e entrando na Periferia Profunda, observemos o Mali. Não
para referir as eleições e todas as expectativas geradas pelo processo
eleitoral, ou para analisar os resultados da escolha popular, mas para nos
centrarmos na ocupação do território por parte da França.
A versão oficial,
os argumentos apresentados e divulgados pela máquina de propaganda, diz-nos que
a guerra do Mali tem por objectivo “desfazer-se das forças islâmicas radicais”.
Como cidadãos globais atentos concluiremos que esses “islâmicos radicais” são
os mesmos que combateram ao lado dos “Guardiões do Ocidente” (onde se incluem
os franceses) na Líbia e são apoiados por estes na Síria, sempre financiados
pelos “amigos” estados do Golfo. Claro que este facto nunca é referido ou
explicado pela máquina de propaganda global, que tem por objectivo simplificar
ao máximo os factores que originaram a ocupação do país, para melhor intoxicar
e iludir a opinião pública internacional.
Se vermos, ouvirmos
e lermos a propaganda informativa (ou a informação propagandística)
concluiremos (erroneamente) que nunca houve uma intervenção militar tão bem
sucedida como a da França no Mali. Nem o Tintim belga teve tanto sucesso em
África como o Gaulês do elixir mágico. Se nos basearmos nas fontes oficiais
estaremos perante uma intervenção militar que não causou uma só vítima civil,
que não eliminou inocentes e neutralizou centenas de “terroristas”, tal como
nos contos de Asterix, Obelix, Ideafix e a aldeia gaulesa contra o Império
Romano, em que nunca ninguém morria e o bardo sempre tentava cantar no final
feliz, acabando amordaçado.
A única vítima da
propaganda é a verdade. E este é um facto que não se consegue omitir, por muito
apurada que seja a técnica do vendedor de banha da cobra. 99% das notícias que
se publicam no Mali sobre o Mali são dos meios de informação franceses, em
particular da Agence France-Press (AFP) e da Radio France International (RFI).
Se vermos, ouvirmos e lermos estas notícias concluiremos que apenas morreram
soldados franceses, soldados malianos e terroristas e alguns pouco civis,
mortos pelos terroristas e pelos seus atentados. O que é estranho, atendendo ao
facto da França ter respondido ao “pedido de socorro” do Mali com
bombardeamentos intensivos.
Mas será que a
entrada da França no Mali foi mesmo uma reacção rápida ao pedido de ajuda do
presidente interino maliano? Não é verdade que já estavam posicionadas no Mali
tropas francesas? Ou será que o Primeiro de Infantaria Naval, um regimento de
paraquedistas, helicópteros das Operações Especiais, três Mirage 2000D, 2
Mirage F-1, três C-135, um Hércules C130 e um Transall C160 estavam apenas a
montar um circo para as crianças malianas, oferta dos “enfants de la pátrie”?
A AFP pintou um
quadro napoleónico: os malianos receberam os soldados franceses, na sua entrada
triunfal, com bandeiras francesas e gritando “Merci France”. Que pesado o fardo
do colono…
IV - Para situarmos
correctamente a intervenção francesa é necessário recorrermos á História (coisa
que os manipuladores de opinião não gostam de fazer, porque “complica”). Quando
os colonialistas franceses entraram no Mali, o território formava parte de uma
vasta área económica, atravessada por enormes caravanas que para ali chegarem
atravessavam o deserto. Os nómadas negociavam com os camponeses vendendo-lhes
as mercadorias provenientes de outras regiões, originando uma zona económica
próspera, na época. Para termos uma ideia da riqueza que prosperava na região
centremo-nos neste exemplo: se convertermos, ao preço actual do ouro e levarmos
em conta a inflação através dos séculos, os bens do rei Mansa Moussa - que
dirigiu no século XIV um reino situado no interior do Mali - concluiríamos que
a fortuna deste rei era de 400 mil milhões de USD.
A região disfrutava
de uma vida intelectual riquíssima e Tombuctu foi um dos principais centros
intelectuais mundiais. O Império do Mali começava a sul do Sahara, penetrava
pelo actual Sudão e estendia-se até á costa do Senegal, onde abraçava o
Atlântico, tendo o árabe como língua veicular. Toda esta imensa riqueza
cultural e material foi destruída pelo colonialismo. As fronteiras foram
redesenhadas e os equilíbrios socias, culturais e ambientais alterados. Os
franceses introduziram a região numa área administrativa, a que denominaram
Sudão Francês e quando em 1960 o Mali tornou-se independente, foi através de
uma federação com o Senegal, que apenas durou dois meses, ficando o Mali
entregue á sua sorte, sem fronteiras marítimas, depois do Senegal ter
abandonado a federação.
O primeiro
presidente do país Modibo Keita presidiu desde 1960 (ano da independência) até
ter sido deposto por um golpe de estado em 1968, período após o qual o país
sentiu fortemente a pressão neocolonial, O Norte, uma região desértica, foi
votada ao abandono e os seus habitantes descriminados. As tensões entre os
nómadas tuaregues e as restantes comunidades do país foram aumentando. O comércio
próspero que caracterizou a região em épocas passadas extinguiu-se e já nada
resta das vastas caravanas nómadas.
Grande parte dos
tuaregues nómadas e dos berberes do Mali converteram-se em soldados, integrados
por Kadhafi no exército líbio. Após a ingerência estrangeira que originou a
queda de Kadhafi, tuaregues e berberes regressaram ao Norte do Mali, onde o
descontentamento provocado pela pobreza e pela ausência de políticas de
desenvolvimento social, gerou a ideia independentista de Azawad, uma questão
que nas últimas décadas tem provocado revoltas e acordos diversos. Em Janeiro
de 2012 os rebeldes tuaregues ocuparam a cidade de Aguelhok e mataram uma
centena de soldados do exército maliano. Este massacre originou um forte
descontentamento no seio das forças armadas do país, que mal equipadas, não
podiam fazer frente aos rebeldes de Azawad, bem equipados e melhor treinados.
Em Março o presidente maliano Amadou Toumani Touré (conhecido pelas suas
iniciais: ATT) foi deposto por um golpe de estado levado a cabo por oficiais
subalternos, liderados por Amadou Sanago.
Durante o ano de
2012 o Movimento Nacional de Libertação de Azawad (MNLA) apoderou-se do norte
do país, mas acabou por ser expulso por três grupos apoiados pelos estados do
golfo (particularmente a Arabia Saudita e o Qatar): O Ansar Dine, a Al-Qaeda do
Magreb Islâmico (AQMI) e o MUJAO. E eis que o presidente interino, Dioncounda
Traoré pediu a intervenção francesa, o que afundou o esmerado plano da ONU e da
União Africana (UA).
Deste exemplo do
Mali, África deve tirar conclusões acertadas. Os estados africanos são
demasiado débeis, os mecanismos institucionais necessitam de ser reforçados e
esta é uma acção urgente em grande parte do continente. Débil é também a UA,
emaranhada em cumplicidades e infiltrada pelos interesses neocolonialistas.
Muitos Estados africanos da UA são estados suseranos que recebem ordem dos seus
amos europeus e norte-americanos. Os actuais conceitos desenvolvimentistas que
dominam a superestrutura ideológica do continente, espelhadas em slogans
publicitários e em grandes e encobertas acções de marketing das multinacionais,
como o afro-capitalismo e o “black capitalism”, ou as mais elaboradas, como as
criadas em torno da ilusão do “Renascimento Africano” são opiáceos que
intoxicam as massas africanas e facultam a penetração neocolonial e a
recolonização, que marcam as políticas de rapina do Ocidente e esventram as
entranhas do continente africano.
A Líbia, o Mali, o
Egipto e a Tunísia, no continente, assim como a Síria, na Ásia Ocidental, o
Japão no extremo-oriente e a Itália, na Europa, são lições (entre muitas
outras) que devem ser analisadas de forma séria e responsável pelos Estados
africanos. Por uma questão de respeito pelos antepassados é altura de
construir, no presente, uma Africa-Futuro, com afro-realismo.
E já agora… Houve
eleições no Mali. Quem ganhou? Barak François Sarkozy Hollande d`Obama…
Fontes
Hassan, Mohamed e
Pestieau, David L`Irak face à l`occupation
EPO, 2004
Hassan, Mohamed
e Lalieu, Grégoire e Collon, Michel La stratégie du chaos , Investig´Action/Couleur
Livres, 2012.
Moro, Rosa Intervención francesa en Malí, ¿sin
víctimas? Pueblos - Revista de Información y Debate, nº 57, 2013
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