quarta-feira, 21 de agosto de 2013

A OPERETA DOS BURLÕES, O IMPERADOR SÚBDITO E ASTERIX NO MALI

 

Rui Peralta, Luanda
 
I - Durante duas décadas a Itália teve por primeiro-ministro um delinquente fiscal que deliciava-se com as imagens do Paraíso de Alá, feito de rios de leite e mel e povoado por inúmeras jovens doces e esbeltas. Um delinquente fiscal reincidente, que defraudou o Estado, como Primeiro-Ministro, título conquistado e mantido graças aos desmesurados recursos que possuía e á impotência propositada de uma oposição conivente.
 
A sentença do poder judicial, que condena o delinquente Berlusconi, põe a descoberto, de forma transcendente, duas décadas da mais pura malandragem. Duas décadas em que o poder executivo foi um antro de canalhas e o poder legislativo um retiro de imbecis. E nenhum juízo político sério o pode atenuar, nem mesmo o bem passante - e melhor falante - Partido Democrático, que candidamente (como donzela que deixou cair o lenço perfumado no chão enlameado) repete a cantilena que separa as questões judiciais das questões politicas (como se a Politica prescindisse dos pressupostos da Justiça).           
 
Sejam quais forem as respostas e os gestos de “indignação” dos actuais protagonistas da opereta (os gritos de desespero do centro-direita e os sussurros desconcertados do centro-esquerda) uma coisa é certa: terminou um ciclo de impunidade, onde os negócios se cruzaram com a vida pública, numa emaranhada e bem compactada teia de interesses privados. Afirmou-se um princípio da legalidade, comprovando que a Lei não se detém às portas dos palácios e caiu um “poderoso”, como quando se quebrou a influência da MAFIA nos corredores políticos (abençoados pela Democracia-Cristã e com os tapetes estendidos pela “Sinistra democrática”)
 
As consequências deste facto são difíceis de calcular. No imediato, pode-se afirmar a ilegitimidade política do partido a que Berlusconi presidia (e onde era o principal accionista, sendo por isso o “seu” partido). A actual maioria e o actual Parlamento são aberrações, perante os acontecimentos. Nem um assomo fingido de indignidade. Nada! Apenas um súbito despertar da necessidade em “reformar a Justiça”. Foi a única ideia que ocorreu aos pelintras falsários do poder executivo e aos apalermados e ensonados representantes do povo, o poder legislativo.
 
No abismo da crise italiana, a Constituição é a única rocha firme. Permitir que forças ilegítimas e indignas minem a sua integridade é mais um delito. Nunca como hoje, urge aplicar os princípios e os valores constitucionais e não alterá-la conforme pretende o coro desafinado da opereta. E a urgência ainda é maior, quando ouvimos da boca (suja, obviamente) do presidente da Republica a intenção de sacrificar a Magistratura perante a ira do centro-direita, no exacto momento em que o seu chefe, na sua desconexa mensagem televisiva a atacava de forma grosseira (a típica grosseria arrogante dos que se habituaram á impunidade). Parece que o deus do obtuso presidente da Republica de Itália é o deus da estabilidade governamental e a ele sacrifica tudo, mesmo a Justiça.
 
No longo-prazo vamos assistir a uma troca de assentos entre o centro-direita e o centro-esquerda (as trocas do tacho) e á deambulação do eleitorado da direita que vai andar em busca de uma nova morada, passando pelos ares macambúzios do eleitorado de esquerda, que procura uma razão para votar. Esta será a “nuvem tóxica” que pairará sobre as cabeças dos eleitores, efeito dos “grandes entendimentos” de interesses, que anulam os anticorpos morais, que ainda resistem á “infecção berlusconiana” na torpedeada sociedade italiana.
 
A solução passa por uma mudança da partitura, do maestro, do coro, dos cantores solistas e da orquestra. E se calhar, também, por uma mudança da sala…É que a acústica e o visual da actual só mesmo para surdos, cegos e mudos!
 
II - Outro produto da ordem imposta pelos Aliados após a II Guerra Mundial é o Japão actual. Aliás pode-se mesmo afirmar que a II Guerra Mundial nunca terminou para o Japão. Sessenta anos depois do navio de guerra “US Missouri” ancorar na Baia de Tóquio para receber a rendição do Império Japonês, o Japão permanece uma nação derrotada, mesmo sendo um dos grandes poderios económicos á escala global. Aos japoneses é constantemente recordado o mais recente período negro da sua História, não como forma pedagógica, para não ser esquecido pelas gerações mais novas, para que os erros que conduziram a esse período nunca se tornem a verificar, mas de uma forma que implica a submissão do povo japonês, como se o japonês fosse um ser maléfico, de maus instintos, que tem de ser constantemente lembrado dos crimes e das atrocidades que o Império cometeu.  
 
O Japão é um gigante de pés de barro, atolado na estagnação económica. Reformas e mais reformas não conseguiram injectar vida no crescimento económico. E por uma razão: o Japão, o gigante económico, caminha sob pés de barro porque não tem Forças Armadas, ou melhor, porque está proibido de ter Forças Armadas. A chamada Força de Autodefesa foi criada para deter o avanço anfíbio dos soviéticos sobre as ilhas do norte do país. A constituição imposta pelos norte-americanos, durante o acto de rendição, impede o Japão de realizar operações militares ou de exportar armas e equipamentos. O gigante económico é, afinal, um pigmeu militar.    
 
O Tratado de Segurança, assinado em 1960, entre os USA e o Japão, estabelece as relações de Segurança e Defesa entre os USA e o Japão. Por esse tratado os USA responsabilizam-se pela defesa do Japão. A chave do tratado é o estabelecimento de bases áreas, de forças terrestres e navais permanentes dos USA em território japonês. E assim permanece desde essa data. O Japão tornou-se num imenso porta-aviões norte-americano, que domina estrategicamente todo o Norte da Ásia. Em troca o mercado norte-americano abriu as portas á indústria japonesa (mais tarde, á Coreia do Sul, foi dada a mesma oportunidade).
 
Este cozinhado foi alterado pelo rápido crescimento económico e militar da China, nas últimas décadas. A China é uma das nações que mais fala do militarismo japonês (sofreu a invasão japonesa e sentiu na pele as atrocidades dos militaristas) e que espalha na região o fantasma do militarismo nipónico. Mas a China fá-lo com um sentido estratégico, não porque tema o renascimento do militarismo japonês (que esperemos os japoneses nunca permitam), mas porque sabe o que pode acontecer á sua estratégia xenófoba, nacionalista e hegemonista, na região se o Japão se arma. Um Japão com Forças Armadas, um Japão realmente independente é um obstáculo incontornável para a China.
 
Repare-se na forma como os chineses pressionam a integridade territorial japonesa nos últimos meses, na questão das Ilhas Senkaku, administradas pelo Japão desde o século XIX, mas reclamadas pela China, No mesmo sentido, expansionista, está a recente ofensiva propagandística do regime pós-maoista chinês sobre Okinawa, alegando que esta região pagava, no passado, tributo ao Império do Meio. Se a estas reivindicações chinesas, juntarmos o rápido crescimento da frota naval de guerra chinesa e da Força Aérea Chinesa, que projectam a influência chinesa em todo o Pacifico, conseguiremos a profunda preocupação dos japoneses, que não têm meios militares para se defenderem. Enquanto os tambores do nacionalismo chinês soam cada vez mais alto, a sensação de vulnerabilidade cresce no Japão. Os japoneses sabem que os norte-americanos não arriscarão um confronto com a China e que fazem tábua rasa sobre a questão das Ilhas Senkaku ou das Ilhas Ryu Kyu (Okinawa).
 
Pelo seu lado a China vê no Japão um obstáculo que impede a livre movimentação da sua frota no Pacifico, o que já acontecia com a ex-URSS. O fluxo logístico marítimo chinês tem de passar pelos pontos das Ilhas Senkaku e Ryu Kyu, no Japão, ou pelo estreito de Luzon, nas Filipinas (por isso os USA negoceiam com Manila a reabertura da base aéreo-naval de Subic Bay, desactivada em 1992).  
 
A China tenta claramente resolver estas questões de forma musculada e recorrendo a largas campanhas de intoxicação propagandística, relembrando constantemente o fantasma do militarismo nipónico na II Guerra Mundial e mostrando a toda a Asia quem é o novo macho alfa da região. É com um sorriso amarelo que poderemos ver no oficioso CCTV News, a forma sobranceira e arrogante com que os japoneses são tratados e na forma como os analistas e jornalistas chineses falam dos Estados vizinhos (nem mesmo os seus parceiros BRICS da India escapam a uma certa condescendência, excepto os Russos que, por razões óbvias, são sempre referidos formalmente). 
 
Os japoneses estão perfeitamente conscientes da sua posição, mas não têm decisão soberana. Submetido aos USA pela força nuclear, o Japão não tem capacidade para responder aos actuais acontecimentos. A apreensão japonesa aumenta quando deparam com a recente nomeação da embaixadora norte-americana Caroline Kennedy, uma apoiante de Obama e financiadora das suas campanhas, que não é a pessoa mais adequada para o cargo - tendo em conta o peso e a responsabilidade dos USA – nestes tempos conturbados.
 
As opções japonesas são claras: ou esperam que os USA resolvam a questão e permanecem enjaulados aos tratados derivados da II Guerra Mundial, ou rompem com esses tratados, mandam o Imperador às urtigas (ou para os seus amos na Casa Branca), implementam a Republica e assumem o seu destino nas suas mãos. Só com uma Republica Democrática e independente, os japoneses poderão ultrapassar o longo ciclo de estagnação que sujeita a sua economia e transpor o seu manancial económico para a reconstrução das suas forças armadas (incluindo a capacidade nuclear) assumindo-se como garante da Paz na região, limpando os fantasmas do passado.
 
A chave desta região passa pois pelo Japão. É apenas uma questão deste assumir a sua soberania. Sem complexos. 
 
III - Saindo das Periferias do Centro e entrando na Periferia Profunda, observemos o Mali. Não para referir as eleições e todas as expectativas geradas pelo processo eleitoral, ou para analisar os resultados da escolha popular, mas para nos centrarmos na ocupação do território por parte da França.
 
A versão oficial, os argumentos apresentados e divulgados pela máquina de propaganda, diz-nos que a guerra do Mali tem por objectivo “desfazer-se das forças islâmicas radicais”. Como cidadãos globais atentos concluiremos que esses “islâmicos radicais” são os mesmos que combateram ao lado dos “Guardiões do Ocidente” (onde se incluem os franceses) na Líbia e são apoiados por estes na Síria, sempre financiados pelos “amigos” estados do Golfo. Claro que este facto nunca é referido ou explicado pela máquina de propaganda global, que tem por objectivo simplificar ao máximo os factores que originaram a ocupação do país, para melhor intoxicar e iludir a opinião pública internacional.
 
Se vermos, ouvirmos e lermos a propaganda informativa (ou a informação propagandística) concluiremos (erroneamente) que nunca houve uma intervenção militar tão bem sucedida como a da França no Mali. Nem o Tintim belga teve tanto sucesso em África como o Gaulês do elixir mágico. Se nos basearmos nas fontes oficiais estaremos perante uma intervenção militar que não causou uma só vítima civil, que não eliminou inocentes e neutralizou centenas de “terroristas”, tal como nos contos de Asterix, Obelix, Ideafix e a aldeia gaulesa contra o Império Romano, em que nunca ninguém morria e o bardo sempre tentava cantar no final feliz, acabando amordaçado. 
 
A única vítima da propaganda é a verdade. E este é um facto que não se consegue omitir, por muito apurada que seja a técnica do vendedor de banha da cobra. 99% das notícias que se publicam no Mali sobre o Mali são dos meios de informação franceses, em particular da Agence France-Press (AFP) e da Radio France International (RFI). Se vermos, ouvirmos e lermos estas notícias concluiremos que apenas morreram soldados franceses, soldados malianos e terroristas e alguns pouco civis, mortos pelos terroristas e pelos seus atentados. O que é estranho, atendendo ao facto da França ter respondido ao “pedido de socorro” do Mali com bombardeamentos intensivos.
 
Mas será que a entrada da França no Mali foi mesmo uma reacção rápida ao pedido de ajuda do presidente interino maliano? Não é verdade que já estavam posicionadas no Mali tropas francesas? Ou será que o Primeiro de Infantaria Naval, um regimento de paraquedistas, helicópteros das Operações Especiais, três Mirage 2000D, 2 Mirage F-1, três C-135, um Hércules C130 e um Transall C160 estavam apenas a montar um circo para as crianças malianas, oferta dos “enfants de la pátrie”?  
 
A AFP pintou um quadro napoleónico: os malianos receberam os soldados franceses, na sua entrada triunfal, com bandeiras francesas e gritando “Merci France”. Que pesado o fardo do colono…
 
IV - Para situarmos correctamente a intervenção francesa é necessário recorrermos á História (coisa que os manipuladores de opinião não gostam de fazer, porque “complica”). Quando os colonialistas franceses entraram no Mali, o território formava parte de uma vasta área económica, atravessada por enormes caravanas que para ali chegarem atravessavam o deserto. Os nómadas negociavam com os camponeses vendendo-lhes as mercadorias provenientes de outras regiões, originando uma zona económica próspera, na época. Para termos uma ideia da riqueza que prosperava na região centremo-nos neste exemplo: se convertermos, ao preço actual do ouro e levarmos em conta a inflação através dos séculos, os bens do rei Mansa Moussa - que dirigiu no século XIV um reino situado no interior do Mali - concluiríamos que a fortuna deste rei era de 400 mil milhões de USD.       
 
A região disfrutava de uma vida intelectual riquíssima e Tombuctu foi um dos principais centros intelectuais mundiais. O Império do Mali começava a sul do Sahara, penetrava pelo actual Sudão e estendia-se até á costa do Senegal, onde abraçava o Atlântico, tendo o árabe como língua veicular. Toda esta imensa riqueza cultural e material foi destruída pelo colonialismo. As fronteiras foram redesenhadas e os equilíbrios socias, culturais e ambientais alterados. Os franceses introduziram a região numa área administrativa, a que denominaram Sudão Francês e quando em 1960 o Mali tornou-se independente, foi através de uma federação com o Senegal, que apenas durou dois meses, ficando o Mali entregue á sua sorte, sem fronteiras marítimas, depois do Senegal ter abandonado a federação.
 
O primeiro presidente do país Modibo Keita presidiu desde 1960 (ano da independência) até ter sido deposto por um golpe de estado em 1968, período após o qual o país sentiu fortemente a pressão neocolonial, O Norte, uma região desértica, foi votada ao abandono e os seus habitantes descriminados. As tensões entre os nómadas tuaregues e as restantes comunidades do país foram aumentando. O comércio próspero que caracterizou a região em épocas passadas extinguiu-se e já nada resta das vastas caravanas nómadas. 
 
Grande parte dos tuaregues nómadas e dos berberes do Mali converteram-se em soldados, integrados por Kadhafi no exército líbio. Após a ingerência estrangeira que originou a queda de Kadhafi, tuaregues e berberes regressaram ao Norte do Mali, onde o descontentamento provocado pela pobreza e pela ausência de políticas de desenvolvimento social, gerou a ideia independentista de Azawad, uma questão que nas últimas décadas tem provocado revoltas e acordos diversos. Em Janeiro de 2012 os rebeldes tuaregues ocuparam a cidade de Aguelhok e mataram uma centena de soldados do exército maliano. Este massacre originou um forte descontentamento no seio das forças armadas do país, que mal equipadas, não podiam fazer frente aos rebeldes de Azawad, bem equipados e melhor treinados. Em Março o presidente maliano Amadou Toumani Touré (conhecido pelas suas iniciais: ATT) foi deposto por um golpe de estado levado a cabo por oficiais subalternos, liderados por Amadou Sanago.
 
Durante o ano de 2012 o Movimento Nacional de Libertação de Azawad (MNLA) apoderou-se do norte do país, mas acabou por ser expulso por três grupos apoiados pelos estados do golfo (particularmente a Arabia Saudita e o Qatar): O Ansar Dine, a Al-Qaeda do Magreb Islâmico (AQMI) e o MUJAO. E eis que o presidente interino, Dioncounda Traoré pediu a intervenção francesa, o que afundou o esmerado plano da ONU e da União Africana (UA).
 
Deste exemplo do Mali, África deve tirar conclusões acertadas. Os estados africanos são demasiado débeis, os mecanismos institucionais necessitam de ser reforçados e esta é uma acção urgente em grande parte do continente. Débil é também a UA, emaranhada em cumplicidades e infiltrada pelos interesses neocolonialistas. Muitos Estados africanos da UA são estados suseranos que recebem ordem dos seus amos europeus e norte-americanos. Os actuais conceitos desenvolvimentistas que dominam a superestrutura ideológica do continente, espelhadas em slogans publicitários e em grandes e encobertas acções de marketing das multinacionais, como o afro-capitalismo e o “black capitalism”, ou as mais elaboradas, como as criadas em torno da ilusão do “Renascimento Africano” são opiáceos que intoxicam as massas africanas e facultam a penetração neocolonial e a recolonização, que marcam as políticas de rapina do Ocidente e esventram as entranhas do continente africano.
 
A Líbia, o Mali, o Egipto e a Tunísia, no continente, assim como a Síria, na Ásia Ocidental, o Japão no extremo-oriente e a Itália, na Europa, são lições (entre muitas outras) que devem ser analisadas de forma séria e responsável pelos Estados africanos. Por uma questão de respeito pelos antepassados é altura de construir, no presente, uma Africa-Futuro, com afro-realismo.
 
E já agora… Houve eleições no Mali. Quem ganhou? Barak François Sarkozy Hollande d`Obama…      
 
Fontes
Hassan, Mohamed e Pestieau, David  L`Irak face à l`occupation EPO, 2004
Hassan, Mohamed e  Lalieu, Grégoire e  Collon, Michel La stratégie du chaos , Investig´Action/Couleur Livres, 2012.
Moro,  Rosa Intervención francesa en Malí, ¿sin víctimas? Pueblos - Revista de Información y Debate, nº 57, 2013
 

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