terça-feira, 20 de agosto de 2013

Portugal: VERÃO QUENTE

 

Alberto Castro – Jornal de Notícias, opinião
 
1.Era claro que a ambiguidade da lei sobre a elegibilidade dos autarcas que haviam completado, pelo menos, três mandatos só podia acabar como acabou: recursos sucessivos para o Tribunal Constitucional, depois de as partes em diferendo se terem entretido a brincar aos tribunais. A cobardia dos políticos, que elaboraram a lei mas não tiveram coragem para clarificar o que pretendiam com ela, conferiu aos tribunais um papel que só por excepção lhes devia competir, expondo as decisões a um voyeurismo mediático que a ninguém aproveita. Se alguma vantagem teve, talvez tenha sido a de tornar claro a natureza polémica da questão que dividiu, quase a meio, as decisões dos juízes.
 
Qualquer que venha a ser a decisão, partidos, deputados, candidatos, juízes e tribunais não sairão prestigiados do processo. As decisões são vistas como reflectindo opiniões políticas, politizando os tribunais. Quando a justiça, a sua morosidade e custos continuam a ser motivo de queixa, esta chuva de queixas e recursos não contribui para melhorar nem a imagem, nem a opinião, que o comum dos cidadãos tem sobre ela. A pouco mais de um mês das eleições autárquicas, os eleitores das duas principais cidades do país continuam sem saber se alguns dos mais importantes candidatos serão, de facto, alternativa. Numas eleições, por tradição tão personalizadas, em que o candidato conta tanto ou mais do que as propostas que apresenta, todo este imbróglio constitui um desrespeito pelos cidadãos, contribuindo para os afastar ainda mais da política. Que, por fim, o Tribunal Constitucional se veja envolvido no processo, numa fase tão tardia, em que, queira-se ou não, as várias queixas e recursos têm contribuído para banalizar a decisão, encarada por muitos como aleatória, também não ajuda a prestigiar um órgão fundamental no funcionamento da democracia. Este foi um jogo em que, qualquer que venha a ser o desfecho, seremos todos perdedores. Contra isso me insurgi. Atrevo-me a pensar (desejar?) que poderia ser de outro modo. Se se aprender com os erros, se se providenciar para que não se repitam situações semelhantes, nem tudo será perdido.
 
2. Se este folhetim da elegibilidade dos autarcas tinha, apesar de tudo, uma data de fim anunciada, há um outro, bem mais importante, que se eterniza. Refiro-me à anunciada, e sempre adiada, proposta de reforma do Estado cujo guião Portas se terá comprometido a escrever. Conhecido o seu estatuto de cinéfilo, esta terá sido a pior ocasião para criar um filme de suspense. A não ser que a adjudicação seja tão irrevogável como a sua decisão de se demitir. Enquanto não se conhece uma estratégia, vamos sendo confrontados, quase todos os dias, com decisões avulsas de que só por acaso não surgirá um monstro, mais magro é certo, mas não menos disforme e disfuncional do que o actual.
 
Há pequenos episódios que nos ajudam a esclarecer por que chegamos aonde chegamos à desmesura actual. A propósito da eventual cedência da administração de alguns hospitais às misericórdias João Semedo, líder do Bloco e ele próprio médico, terá, segundo o JN, afirmado "(...) e é mau para o Estado porque não se compreende que vá ter uma despesa acrescida com as misericórdias para estas gerirem uma coisa que é do Estado". A frase suscita várias interpretações. A mais óbvia assume que a gestão não estatal, mesmo se levada a cabo por organizações sem fins lucrativos, é sempre mais onerosa que a conduzida por funcionários públicos. Algo que não está comprovado e que reflecte opções ideológicas, sem dúvida legítimas mas que podem ter um custo e, sobretudo, que confundem serviço público com oferta estatal. Esta maneira de pensar está suficientemente entranhada para que, mesmo um governo que o BE carimba de neoliberal, estabeleça como critério de adjudicação às misericórdias estas serem capazes de reduzir os custos, pelo menos, 25%. No sector privado, se houvesse uma empresa cujos custos fossem 25% mais altos do que os dos seus concorrentes, há muito que teria ido à falência. É esclarecedor que o Governo admita que essa diferença possa existir em alguns hospitais. Quem paga?
 

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