William Tonet –
Folha 8, 2 novembro 2013
É o fim da picada,
a democracia de gema, de José Eduardo dos Santos, conseguiu transformar o que
se pode considerar como o órgão fundamental e imprescindível de todas as
democracias do mundo que se respeitem, a Assembleia Nacional, em peça
decorativa, uma espécie de “eunuco político” quase impotente. Assim o disse,
um polémico, mas escolhido jurista de inversões dos factos e da norma jurídica,
quando em causa, está uma vontade, mesmo que essa, colida com os interesses
mais gerais da lógica e dos cidadãos. Quando o juiz relator do Tribunal
Constitucional, Raul Araújo decidiu do pedestal da sua autoridade, através do
Acordão 361/2013 de 09 de Outubro, negar aos deputados da Assembleia Nacional,
o poder de interpelarem, os membros do executivo, segundo o Regimento Interno,
em vigor, não prestou tão somente um mau serviço ao direito, mas fundamentalmente
ao futuro da estabilidade da nossa incipiente democracia. É um autêntico
machado de guerra, vir-se, só agora, dizer aos eleitores, ser o parlamento um
teatro de marionetes.
Mais grave, Raul
Araújo e os juízes que o secundaram, com este Acórdão, assumiram ser uma treta
a tão apregoada separação de poderes, mandando esse instituto, vergonhosamente,
para a lama, por comprometimento com a norma ideológica. Adulterados desta
forma os institutos da interpretação jurídica o nosso sistema constitucional
demonstra ser muito frouxo e estar totalmente dependente aos ditames
partidocratas.
Como jurista,
sinto-me tão envergonhado que não consigo acreditar no facto de Raúl Araújo,
detentor de argumentos jurídicos bastantes, se preste a tão baixa banalidade e
vulgaridade substantiva na análise de um facto de fácil enquadramento.
Transformar um órgão não eleito, como o Presidente da República, em detentor
de amplos poderes, contra o órgão eleito democraticamente: Assembleia Nacional
é apunhalar a norma jurídica.
O art.º 109.º da
Constituição é esclarecedor; “é eleito Presidente da República e Chefe do
Executivo o cabeça de lista, pelo círculo nacional, do partido político ou
coligação de partidos políticos mais votado no quadro das eleições gerais,
realizadas ao abrigo do artigo 143.º e seguintes da Constituição”.
Em 2012 não houve a
realização de eleições presidenciais face ao atipismo da Constituição de Fevereiro
de 2010, logo, o cabeça de lista do partido vencedor deveria conformar-se com
o ritual legislativo e não o contrário, para assumir as funções na Presidência
da República.
Neste quadro, as
excessivas competências e supremacia, atribuídas ao presidente José Eduardo
dos Santos, eleito primeiro, na qualidade de deputado, para só depois, assumir
funções como chefe do poder executivo.
Mais comentários
para quê?
Neste departamento,
não pode, por mais medroso e bajulador que seja o batalhão, evocar supremacia
constitucional, a um órgão acessório, eleito na chapa de um órgão democraticamente
eleito, sob pena de, se tornar num juiz semeador e promotor da instabilidade
social.
Ao atribuir
exclusividade de interpelação dos ministros e pares, ao Presidente da
República, destapa o exercício arbitrário de funções de JES, que não tomou
posse como deputado, tão pouco renunciou ao mandato, violando o art.º 149.º da
CRA, que considera incompatível o mandato de deputado com o exercício de funções
como Presidente da República.
O Tribunal
Constitucional faz pois, uma adulteração do domínio do facto e no caso o
vertido no Acordão trouxe insegurança jurídica, porquanto se a interpelação
tiver de ser feita, na ausência dos auxiliares, quem teria o domínio do facto
completo seria o Presidente da República.
Mas este
“trungungu” de concentração de poderes é uma faca de dois gumes, como lembra
Moreira Franco, se os ministros são meros auxiliares e há prova material contra
quem comanda uma acção, a teoria é despicienda. As provas por si só já servem
para condenar e, conforme o nível de participação do protagonista na condução
dos actos delituosos, as penas serão agravadas.
A aplicação da
teoria do domínio do facto, face a essa concentração bajuladora de
responsabilidade governativa, já levou os antigos presidentes da República,
Rafael Videla da Argentina e Alberto Fujimori do Peru, às barras do tribunal e
a perda dos mandatos. Embora os crimes tenham sido praticados pelos seus
subordinados, estavam estes sob seu comando, logo, no caso angolano, com esta
interpretação constitucional, o responsável de todos os actos praticados pelos
membros do executivo e até mesmo do legislativo, será o Presidente os Santos.
O que o juiz Raul
Araújo fez, pode parece bom para o MPLA e seu líder, mas a médio e longo prazo
é uma passarela oleosa, assente em sofisticações teoréticas, quando deveria
basear-se na justeza da norma, face aos ganhos da sua eficácia, uma vez o direito
dever ser inteligível pela sociedade, pois a clareza de um juiz do Tribunal
Constitucional, atesta a fidalguia da separação de poderes.
O direito corre
risco de sucumbir e resvalar para a sarjeta, se continuar a atentar contra a
democracia. Em nome da paz, da conciliação e da reconciliação, entre os povos
angolanos, devem ser colocados fora de bordo decisores partidocratas, pelos
malefícios que causam a estabilidade social, como visionários da desgraça
colectiva.
Em todo o caso,
doravante, os deputados não poderão mais questionar a governação, por esta
medida abusivamente sustentada pelo Tribunal Constitucional, retira
indirectamente aos eleitores o direito, por exemplo, de saber por que razão
foi preso um inocente e porquê, aquele que matou, roubou ou virou proxeneta
profissional (chulo), continua escorreito a passear de jipe pelas ruas de
Luanda.
Além disso, nunca
mais vai faltar luz ou água em Angola, porque, quando o problema se levantar
por excesso de apagões e faltas de água, essa questão já estará em vias de
resolução sem que seja possível obter a mais pequena informação credível, porque
as respostas que antes eram dadas aos deputados nesse exercício democrático de
perguntas ou audições aos ministros, antes da aprovação da actual Lei
Constitucional, deixou de fazer parte da faceta, mais decorativa do que
prática, do nosso espaço político. Numa palavra, Angola é prenhe de analfabrutos
e só uma elite de profissionais alcandorados a reboque são “constitucionalistas”
e só eles acreditam saber ler nas entrelinhas o texto da Lei Magna. Os outros
que vão à escola! O TC decidiu, está decidido!
Angola não
aguentará por muito mais tempo esta estratégia ditatorial, mesmo se socorrendo
de decisões jurídicas atípicas.
Angola não aguenta
mais esta palhaçada, estando pois na hora dos verdadeiros angolanos dizerem:
“let’s move on” (vamos em frente), mobilizando-nos contra o poder de uma tirania,
que se escuda, em uma minoria de militantes/juízes, segundo as suas conveniências,
para subverter a fragilidade do actual Estado Democrático e de Direito, que
auguramos ver implementado.
Sem comentários:
Enviar um comentário