Rui Peralta, Luanda
I - A posição
crítica assumida pelo Papa Francisco acusando o capitalismo de “nova tirania” e
apelando às lideranças globais para combaterem a pobreza e a desigualdade,
denunciando a “idolatria do dinheiro”, as políticas económicas, o consumismo e
o sistema financeiro, observando a urgência de políticas que garantam aos
cidadãos “um trabalho digno, educação e saúde” é revelador das tensões actuais
entre as diversas elites globais (das quais a hierarquia católica é um dos
elementos históricos) e das preocupações de vastos sectores da hierarquia
católica com a actual situação mundial. O Papa criticou ainda a indústria
mediática pela forma como os assuntos económicos são cobertos e referidos na
comunicação social, contestando as empolgantes noticias sobre os mercados
sempre que há descidas ou subidas dos valores das cotações bolsistas e o facto
de não referirem a miséria criada pelo desemprego, a fome e a pobreza.
Num documento de 84
páginas, o Papa apelou para um Vaticano descentralizado e focado nos problemas
dos pobres e dos marginalizados. Mas este apelo interno, revelador de uma
vontade de reformar a estrutura do Vaticano, não abrangeu duas questões que
afectam o interior da Igreja Católica: o direito às mulheres de exercerem o
sacerdócio e o aborto, ambos condenados no documento.
O pensamento de São
Francisco (ao qual o Papa se encontra ligado, atendendo a ser o Papa Francisco)
é de facto um pensamento virado para uma igreja dos pobres, um antepassado
teórico da teologia da libertação. Mas é também um pensamento aberto ao papel
das mulheres, se atendermos ao seu grande poema “Irmã, Lua, Irmão, Sol” cujas
sentenças giram em torno do masculino e do feminino, sendo o discurso do
feminino, radicalmente feminista para a época (século XIII). Reformar o
Vaticano e assumir a corajosa posição de uma igreja dos pobres, implicará mais
cedo ou mais tarde um reposicionamento em relação ao sacerdócio feminino, á
homossexualidade e ao aborto, porque caso contrário termos apenas uma posição
de reforma, mantendo-se inalterável o status quo da Igreja Católica, não
passando tudo de uma operação de marketing, destinada á limpeza do rosto da
hierarquia, um “descargo de consciência”, que trará benefícios no curto e medio
prazo, mas tenderá a manter o fundamental no longo-prazo.
O Papa Francisco é um homem (género
masculino) líder de uma estrutura cultural masculina, que é dominante na Igreja
Católica desde tempos remotos. A igreja dos pobres, o evangelho dos pobres, a
questão social levantada por São Francisco no século XIII, berço de um
pensamento teológico revelador da necessidade de participação nos assuntos do
Homem (géneros masculino e feminino) obriga ao repensar desta questão, porque é
uma questão de direitos, de igualdade, factores que são subjacentes á teoria
franciscana.
Como estas posições irão evoluir e qual
será efectivamente a posição da Igreja nos grandes conflitos sociais latentes
da actualidade (de que lado da barricada a hierarquia se posicionará, porque a
base da Igreja á muito que tomou posição) é algo que iremos observar nos
próximos tempos, não só os crentes como os não crentes (inclusive os ateus,
como eu). E observaremos sempre na expectativa, pois na barricada dos pobres,
sempre houve lugar para a tolerância, não fosse ela uma barricada feita de
Justiça Social, pluridimensional, criativa e criadora. Aguardemos pois,
fraternalmente, de braços abertos.
II - A exclusão
assume uma particular relevância nos movimentos migratórios. É interessante
observar que o capitalismo, sempre tão cioso dos direitos de livre circulação
dos capitais, dos bens e das mercadorias, torna-se muito menos cioso no que
respeita á livre circulação de pessoas (só se for em turismo, em rebanhos bem
organizados e bem pagantes), nada cioso e absolutamente contrário se a livre
circulação for de mão-de-obra. É interessante porque o grande Imperio do
Capital (os USA) são fundamentalmente uma consequência desta livre circulação
de pessoas, originadora de uma grande riqueza humana, cultural, económica e
social e fundamento da Democracia nos USA, sempre posta em causa pelo Capital,
amordaçada (quando será que a estátua da Liberdade vai ser substituída por um
monumento á segurança? É bom não esquecer que já esteve ofuscada pelas Torres
Gémeas) pela figura sanguinária do Tio Sam, o grande indicativo do Big Brother
do Capital que ameaça de dedo em riste o povo norte-americano.
Um imigrante
sul-coreano, Ju Hong, activista dos direitos das comunidades imigrantes nos
USA, interrompeu recentemente um discurso de Obama, em San Francisco. Membro da
ASPIRE (Asian Students Promoting Immigrant Rights Through Education) Ju
Hong interrompeu Obama e falou sobre a sua família, a sua luta pessoal como
indocumentado e sobre os que têm sido deportados e os que se encontram nos
centros de detenção. Obama ouviu o activista, respondeu, entrou em diálogo e
acabou por aceitar as revindicações que aos poucos se fizeram ouvir na
assistência, contra as deportações.
Ju Hong foi detido
em recentes protestos dos imigrantes universitários na Califórnia. Mestrado em
Administração Publica pela Universidade de San Francisco, Ju Hong, acabou por
ser solto e convidado pela Casa Branca para participar nas discussões sobre os
problemas que afectam os quase 12 milhões de imigrantes indocumentados, que
residem nos USA. Participou e dirigiu diversos actos de desobediência civil em
prol da aplicação da célebre Dream Act e pela aplicação da DACA (Deferred
Action for Childhood Arrivals). Na Califórnia já foram deportados mais de um
milhão e oitocentos mil imigrantes indocumentados.
III - Outra das
lutas que prossegue no seio do Império é a dos trabalhadores da Wal-Mart, a
nível nacional. Os trabalhadores preparam uma nova vaga de protestos,
denominados Sexta-Feira Negra (The Black Friday protest). A empresa anunciou
recentemente a substituição do seu anterior CEO, Mike Duke, por Doug McMillon,
uma impressionante campanha de marketing e de lavagem de imagem. Doug começou
na companhia, ainda adolescente, nos armazéns da empresa.
O National Labor
Relations Board (NLRB) acusou a Wal-Mart de violar os direitos dos
trabalhadores em greve, ao suspender trabalhadores, abrir processos
disciplinares, terminar contratos antes do tempo, despedimentos sem justa causa
devido a protestos dos empregados e outras graves violações dos direitos dos
trabalhadores. A Wal-Mart é o principal empregador privado norte-americano
/cerca de 825 mil empregados). Grande parte da sua força de trabalho é
constituída por trabalhadores em part-time e contratos temporários de curta duração.
Em 2012 os lucros da empresa ascenderam aos 17 mil milhões de USD.
IV - A forma como
estes lucros (da Wal-Mart e de outras multinacionais) são referidas na
indústria mediática (como grandes sucessos, êxitos incomensuráveis) e a forma
como os seus patrões, CEO e outros dirigentes de topo são apresentados á
opinião pública, deverá fazer-nos recordar o julgamento, iniciado em 1961 (faz
agora 52 anos) num tribunal de Jerusalém de Adolf Eichmann, o organizador do
sistema de transportes utilizados na deportação de milhões de judeus para os
campos de exterminação no Leste da Europa, durante a ocupação nazi. Eichmann,
enforcado por decisão do tribunal em Israel, no ano de 1962, era um destes
homens de sucesso, não no campo dos negócios, mas no lamaçal da burocracia.
Tal como os actual
condottieri das finanças internacionais, Eichmann era um exemplo de
comportamento metodológico, organização e de afabilidade. Era um homem que
olhava com uma estranha frieza para os números da morte e um dos teóricos e
executantes da Solução Final. A forma como olhava para as estatísticas dos
judeus mortos em consequência do extermínio era comparável á forma como os Boys
(mesmo que já estejam ao nível das múmias) olham para os resultados líquidos
das empresas e instituições que comandam (aliás a nova ortodoxia já provoca
governantes assim, tipos que vêm das empresas e que são autênticos analfabetos
políticos, que nem sequer sabem pronunciar a palavra cidadania, muito menos o
que isso quer dizer e que olham para a governação como um conjunto de números,
em tudo idênticos aos relatórios para os accionistas).
Tal como estes
senhores exemplares da nova moral e da nova ética dominante, Eichmann não era
um monstro, nem a personificação do mal, não era besta demoníaca, mas um ser “terrificamente
normal”, conforme o retratou Hannah Arendt, filósofa judaica e teórica
politica, que acompanhou o julgamento. Tal como na actualidade, em que
encontramos gente que colabora a troco de migalhas com o novo modelo de “Homem
Novo” imposto pelo capitalismo moderno, também naquela época havia judeus (os
Judenrat, ou Concelhos Judeus) que colaboravam com o Terceiro Reich e
convenciam os seus iguais a partirem para os campos de concentração
Eichmann era o
responsável máximo do Gabinete da Gestapo para os Assuntos Judaicos. Após o
final da guerra, refugiou-se clandestinamente na Argentina, onde viveu sob uma
falsa identidade, até que foi raptado pela Mossad, em 1960 e enviado para
Israel, onde foi julgado e executado. Hannah Arendt, que escreveu um notável
retrato do julgamento e de Eichmann, para o New Yorker, acompanhou todas as
fases deste julgamento iniciado em 1961 e que culminou em 1962.
Do seu retrato
ressalta a forma como Eichmann, de forma eficiente, como um qualquer burocrata
ou como um qualquer gestor financeiro de um grupo multinacional, encarava os
resultados do extermínio, considerando-o como um “sucesso”, um “êxito”. São os
modelos da alienação. Sempre aterradores e sempre geradores de Holocaustos
infindáveis. Sejam nos campos de concentração, sejam nos campos de batalha ou
nas arenas dos mercados internacionais. Sejam Nazis e oficiais da Gestapo,
sejam liberais e gestores de topo de multinacionais ou de grandes bancos.
Mesmo que não
cheire a carne queimada, cheirará ao desespero da miséria e ao suor da
angústia…
V - Não é só o
Imperio que está acossado, nem a crise é apenas um assunto do capitalismo
ocidental e das economias capitalistas estruturadas na velha ordem pós II
Guerra Mundial. O capitalismo BRICS sofre também os impactos da crise provocada
pela deslocação. Ainda no passado mês, o império dos negócios de Eike Batista,
que foi o sétimo homem mais rico do mundo (segundo os medidores oficiais destas
coisas), e o xamã do “renascimento económico” do Brasil, tombou. Estes desastres
deveriam criar nas nossas cabecitas alienadas um momento (por muito breve que
fosse) de reflexão sobre os perigos do crescimento económico baseado em
políticas destruturadas de desenvolvimento, como acontece nos BRICS e como as
periferias mais periféricas do mercado global tentam impor aos seus povos
(originando a medio-prazo algo semelhante a um genocídio colectivo, um
Holocausto criado não pelas camaras de gás, mas pela asfixia da pobreza)
políticas económicas afastadas da realidade e das aspirações dos cidadãos.
No caso do Batista
do Brasil (um tipo que foi modelar e apontado como exemplo para as novas
gerações de papagaios e catatuas em que querem transformar a Humanidade),
estamos na presença de um tipo tão eficiente como Eichmann e que não resistiu aos
“pecados” apontados pelo Papa Francisco. O Batista conseguiu empréstimos de um
banco, graças á suposta alta produtividade dos seus campos petrolíferos e
utilizou o dinheiro dos contribuintes (pois o banco era público) para financiar
os seus luxos (carros, iates e a esposa ex-modelo da Playboy). Tudo em grande
até que se descobriu que afinal os seus poços estavam secos, tão secos como a
sua petrolífera OGX. Secos mas criadores de dívidas que ascenderam a mais de 5
mil milhões de USD.
Ao Batista do Brasil
(e continuando na senda dos Eichmann da Alemanha nazi, transpostos para as
arenas dos mercados globais), corresponde, por exemplo, o Vijay Mallya, da
India, dono da Kingfisher (que ia dos transportes aéreos á cerveja), estrela de
uma economia do capitalismo BRICS mais activa, a União Indiana (apesar da
guerrilha que diariamente desenrola combates na cintura florestal - que também é mineira – mas de que ninguém
fala). Mallya era conhecido pelo “rei dos bons tempos”, um tipo que andava
sempre metido em festas com as vedetas de Bollywood (o Hollywood BRICS da
India), no seu iate “Indian Empress”, colecionador de carros e de modelos em
biquíni.
Carregada de
dívidas (créditos malparados, segundo a terminologia oficial, que os ricos
nunca têm dividas - isso é coisa dos pobres e dos remediados – assim como nunca
roubam, apenas desviam) a Kingfisher parece ter desaparecido dos mercados,
depois de ter estado sem pagar salários durante sete meses. Enquanto a mulher
de um dos trabalhadores se suicidava, um dos filhos de Mallya publicou no
Twitter que estava a jogar voleibol com modelos em biquíni (tal pai, tal filho,
que quem sai aos seus não é de Genebra).
A drástica
desaceleração da economia indiana nos últimos meses (igual á economia em todos
os BRICS, embora com impactos diferentes em todos eles) criou muitos outros
casos idênticos aos Mallya dos biquínis e ao Batista dos poços secos. No caso
da India, as grandes corporações, durante os bons tempos, foram capazes de
restruturar várias vezes os seus empréstimos e sempre foram diligentemente
recapitalizadas pelos governos através dos bancos estatais. Mas quando terminam
os bons tempos, a situação torna-se insustentável.
Dez das maiores
corporações indianas (companhias como a Reliance Industries, de Anil Ambani, a
Essar Power, de Ravikant Ruia, a Adani Power, de Gautam Adani) têm dívidas
superiores a 100 mil milhões de USD, sendo grande parte destas dívidas em moeda
estrangeira. A debilitada rupia indiana acabou por aumentar a dimensão da
divida, conduzindo á desaceleração dos sectores da construção e das mineiras. A
Reliance industries, o maior império comercia da India, tem por exemplo cerca
de 6 mil milhões de dólares a pagar de empréstimos, até ao final deste anos e
cerca de 7 mil e 400 milhões, durante os 3 meses seguintes.
As quebras
avultadas nos resultados das empresas não são usuais na India, onde a relação
entre as grandes empresas e o governo é estreita e de grande proximidade. Os
bancos estatais estão dispostos a refinanciar as grandes empresas e assumem o
risco de transportar nos seus balanços os activos não produtivos (o exemplo da
Kingfisher é revelador deste facto). No entanto a Reliance beneficia dos seus
investimentos petrolíferos nos USA, em particular no sector do gás. No último
trimestre (o penúltimo do ano) os lucros da sua aposta no mercado
norte-americano ultrapassaram os obtidos nas suas actividades no mercado da
India, durante o mesmo período.
Por outro lado
existe um factor que tem de ser levado em conta e que geralmente é omisso nos
relatórios das instituições financeiras internacionais. Na India as grandes
corporações adquiriram um grande poder político e social. Nos últimos anos
beneficiaram de uma cultura que descreve com admiração a vida dos ricos,
apontando-os como exemplo a seguir. Desta forma, com a ajuda da indústria
mediática (das quais as corporações são proprietárias, ou em alguns casos é a
industria mediática que é proprietária do sector mineiro e de grandes empórios
comerciais e industriais), a India transforma-se num fosso de ilusão, á imagem
dos filmes produzidos em Bollywood. Sociedade profundamente alienada, a India
aceita o fosso social e encara a riqueza como um fim supremo. Fotografias de
uma recente festa de aniversários da esposa de Ambani, num palácio real em
Rajasthan (para a senhora sair um pouco da residência dos Ambani, em Mumbai,
com 27 andares) mostram a satisfação do Ministro da Industria a jogar golfe com
os seus patrões das corporações, uma benesse que só é oferecida aos bons
empregados.
Gravações de 2009
reproduzem as palavras utilizadas numa conversa de “empreendedores” indianos,
em que Ambani se regozija pelo facto do governante Partido do Congresso ser
mais uma das suas imensas lojas comerciais. Aliás não é por acaso que a um
simples pedido da Reliance Industries Ltd., o governo indiano já indicou que
irá duplicar o preço interno do gás natural, em Abril do próximo ano, uma
decisão que nem foi discutida com os parceiros sociais e que terá imensas
consequências para as pequenas e medias empresas indianas, assim como para os
camponeses pobres e agricultores, para não falar na endividada (por várias
gerações, alguns já nascendo endividados) classe média hindu.
Para sustentar este
capitalismo BRICS Hindu (o capitalismo das castas), estão os endividados
eternos e os milhões de pobres dos pobres que infestam as ruas e os campos da
India. Do sonho de Gandhi ou das acções de Madre Teresa, não restam nem as
memórias…Mas restam os rostos emudecidos dos pobres mais pobres da Terra,
escondidos nos muros da miséria e ignorados pela comunicação social. Por isso,
nessa India da Alienação Total, não há lugar para aguardar de braços abertos.
Apenas para erguer os punhos… Aliás como acontece um pouco por todo o lado…
Fontes
Fox, Matthew
Letters to Pope Francis: Rebuilding a Church with Justice and Compassion
Liberation Ed., 2013
Fox, Matthew Occupy
Spirituality: A Radical Vision for a New Generation Liberation Ed., 2013
Bourgeois, Roy My
Journey from Silence to Solidarity Americas Watch, 2011
Arendt, Hannah The
Origins of Totalitarianism, N.Y. Books, 2010
Arendt, Hannah The
Human Condition N.Y. Books, 2011
Ruetschlin,
Catherine Retails Hidden Potential: How Raising Wages Would Benefit Workers the
Industry and the Overall Economy Demos Ed, 2012
Mishra, Pankaj http://www.bloomberg.com/news/2013-11-17/who-pays-when-india-s-billionaires-don-t-go-bust-.html
Reports, January –
July, 2013, Credit Suisse
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