segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

O PECADO CAPITAL

 

Rui Peralta, Luanda
 
I - A posição crítica assumida pelo Papa Francisco acusando o capitalismo de “nova tirania” e apelando às lideranças globais para combaterem a pobreza e a desigualdade, denunciando a “idolatria do dinheiro”, as políticas económicas, o consumismo e o sistema financeiro, observando a urgência de políticas que garantam aos cidadãos “um trabalho digno, educação e saúde” é revelador das tensões actuais entre as diversas elites globais (das quais a hierarquia católica é um dos elementos históricos) e das preocupações de vastos sectores da hierarquia católica com a actual situação mundial. O Papa criticou ainda a indústria mediática pela forma como os assuntos económicos são cobertos e referidos na comunicação social, contestando as empolgantes noticias sobre os mercados sempre que há descidas ou subidas dos valores das cotações bolsistas e o facto de não referirem a miséria criada pelo desemprego, a fome e a pobreza.
 
Num documento de 84 páginas, o Papa apelou para um Vaticano descentralizado e focado nos problemas dos pobres e dos marginalizados. Mas este apelo interno, revelador de uma vontade de reformar a estrutura do Vaticano, não abrangeu duas questões que afectam o interior da Igreja Católica: o direito às mulheres de exercerem o sacerdócio e o aborto, ambos condenados no documento.
 
O pensamento de São Francisco (ao qual o Papa se encontra ligado, atendendo a ser o Papa Francisco) é de facto um pensamento virado para uma igreja dos pobres, um antepassado teórico da teologia da libertação. Mas é também um pensamento aberto ao papel das mulheres, se atendermos ao seu grande poema “Irmã, Lua, Irmão, Sol” cujas sentenças giram em torno do masculino e do feminino, sendo o discurso do feminino, radicalmente feminista para a época (século XIII). Reformar o Vaticano e assumir a corajosa posição de uma igreja dos pobres, implicará mais cedo ou mais tarde um reposicionamento em relação ao sacerdócio feminino, á homossexualidade e ao aborto, porque caso contrário termos apenas uma posição de reforma, mantendo-se inalterável o status quo da Igreja Católica, não passando tudo de uma operação de marketing, destinada á limpeza do rosto da hierarquia, um “descargo de consciência”, que trará benefícios no curto e medio prazo, mas tenderá a manter o fundamental no longo-prazo. 
 
O Papa Francisco é um homem (género masculino) líder de uma estrutura cultural masculina, que é dominante na Igreja Católica desde tempos remotos. A igreja dos pobres, o evangelho dos pobres, a questão social levantada por São Francisco no século XIII, berço de um pensamento teológico revelador da necessidade de participação nos assuntos do Homem (géneros masculino e feminino) obriga ao repensar desta questão, porque é uma questão de direitos, de igualdade, factores que são subjacentes á teoria franciscana.
 
Como estas posições irão evoluir e qual será efectivamente a posição da Igreja nos grandes conflitos sociais latentes da actualidade (de que lado da barricada a hierarquia se posicionará, porque a base da Igreja á muito que tomou posição) é algo que iremos observar nos próximos tempos, não só os crentes como os não crentes (inclusive os ateus, como eu). E observaremos sempre na expectativa, pois na barricada dos pobres, sempre houve lugar para a tolerância, não fosse ela uma barricada feita de Justiça Social, pluridimensional, criativa e criadora. Aguardemos pois, fraternalmente, de braços abertos.     
 
II - A exclusão assume uma particular relevância nos movimentos migratórios. É interessante observar que o capitalismo, sempre tão cioso dos direitos de livre circulação dos capitais, dos bens e das mercadorias, torna-se muito menos cioso no que respeita á livre circulação de pessoas (só se for em turismo, em rebanhos bem organizados e bem pagantes), nada cioso e absolutamente contrário se a livre circulação for de mão-de-obra. É interessante porque o grande Imperio do Capital (os USA) são fundamentalmente uma consequência desta livre circulação de pessoas, originadora de uma grande riqueza humana, cultural, económica e social e fundamento da Democracia nos USA, sempre posta em causa pelo Capital, amordaçada (quando será que a estátua da Liberdade vai ser substituída por um monumento á segurança? É bom não esquecer que já esteve ofuscada pelas Torres Gémeas) pela figura sanguinária do Tio Sam, o grande indicativo do Big Brother do Capital que ameaça de dedo em riste o povo norte-americano.
 
Um imigrante sul-coreano, Ju Hong, activista dos direitos das comunidades imigrantes nos USA, interrompeu recentemente um discurso de Obama, em San Francisco. Membro da ASPIRE (Asian Students Promoting Immigrant Rights Through Education) Ju Hong interrompeu Obama e falou sobre a sua família, a sua luta pessoal como indocumentado e sobre os que têm sido deportados e os que se encontram nos centros de detenção. Obama ouviu o activista, respondeu, entrou em diálogo e acabou por aceitar as revindicações que aos poucos se fizeram ouvir na assistência, contra as deportações. 
 
Ju Hong foi detido em recentes protestos dos imigrantes universitários na Califórnia. Mestrado em Administração Publica pela Universidade de San Francisco, Ju Hong, acabou por ser solto e convidado pela Casa Branca para participar nas discussões sobre os problemas que afectam os quase 12 milhões de imigrantes indocumentados, que residem nos USA. Participou e dirigiu diversos actos de desobediência civil em prol da aplicação da célebre Dream Act e pela aplicação da DACA (Deferred Action for Childhood Arrivals). Na Califórnia já foram deportados mais de um milhão e oitocentos mil imigrantes indocumentados.           
 
III - Outra das lutas que prossegue no seio do Império é a dos trabalhadores da Wal-Mart, a nível nacional. Os trabalhadores preparam uma nova vaga de protestos, denominados Sexta-Feira Negra (The Black Friday protest). A empresa anunciou recentemente a substituição do seu anterior CEO, Mike Duke, por Doug McMillon, uma impressionante campanha de marketing e de lavagem de imagem. Doug começou na companhia, ainda adolescente, nos armazéns da empresa.
 
O National Labor Relations Board (NLRB) acusou a Wal-Mart de violar os direitos dos trabalhadores em greve, ao suspender trabalhadores, abrir processos disciplinares, terminar contratos antes do tempo, despedimentos sem justa causa devido a protestos dos empregados e outras graves violações dos direitos dos trabalhadores. A Wal-Mart é o principal empregador privado norte-americano /cerca de 825 mil empregados). Grande parte da sua força de trabalho é constituída por trabalhadores em part-time e contratos temporários de curta duração. Em 2012 os lucros da empresa ascenderam aos 17 mil milhões de USD. 
 
IV - A forma como estes lucros (da Wal-Mart e de outras multinacionais) são referidas na indústria mediática (como grandes sucessos, êxitos incomensuráveis) e a forma como os seus patrões, CEO e outros dirigentes de topo são apresentados á opinião pública, deverá fazer-nos recordar o julgamento, iniciado em 1961 (faz agora 52 anos) num tribunal de Jerusalém de Adolf Eichmann, o organizador do sistema de transportes utilizados na deportação de milhões de judeus para os campos de exterminação no Leste da Europa, durante a ocupação nazi. Eichmann, enforcado por decisão do tribunal em Israel, no ano de 1962, era um destes homens de sucesso, não no campo dos negócios, mas no lamaçal da burocracia.
 
Tal como os actual condottieri das finanças internacionais, Eichmann era um exemplo de comportamento metodológico, organização e de afabilidade. Era um homem que olhava com uma estranha frieza para os números da morte e um dos teóricos e executantes da Solução Final. A forma como olhava para as estatísticas dos judeus mortos em consequência do extermínio era comparável á forma como os Boys (mesmo que já estejam ao nível das múmias) olham para os resultados líquidos das empresas e instituições que comandam (aliás a nova ortodoxia já provoca governantes assim, tipos que vêm das empresas e que são autênticos analfabetos políticos, que nem sequer sabem pronunciar a palavra cidadania, muito menos o que isso quer dizer e que olham para a governação como um conjunto de números, em tudo idênticos aos relatórios para os accionistas). 
 
Tal como estes senhores exemplares da nova moral e da nova ética dominante, Eichmann não era um monstro, nem a personificação do mal, não era besta demoníaca, mas um ser “terrificamente normal”, conforme o retratou Hannah Arendt, filósofa judaica e teórica politica, que acompanhou o julgamento. Tal como na actualidade, em que encontramos gente que colabora a troco de migalhas com o novo modelo de “Homem Novo” imposto pelo capitalismo moderno, também naquela época havia judeus (os Judenrat, ou Concelhos Judeus) que colaboravam com o Terceiro Reich e convenciam os seus iguais a partirem para os campos de concentração
 
Eichmann era o responsável máximo do Gabinete da Gestapo para os Assuntos Judaicos. Após o final da guerra, refugiou-se clandestinamente na Argentina, onde viveu sob uma falsa identidade, até que foi raptado pela Mossad, em 1960 e enviado para Israel, onde foi julgado e executado. Hannah Arendt, que escreveu um notável retrato do julgamento e de Eichmann, para o New Yorker, acompanhou todas as fases deste julgamento iniciado em 1961 e que culminou em 1962.
 
Do seu retrato ressalta a forma como Eichmann, de forma eficiente, como um qualquer burocrata ou como um qualquer gestor financeiro de um grupo multinacional, encarava os resultados do extermínio, considerando-o como um “sucesso”, um “êxito”. São os modelos da alienação. Sempre aterradores e sempre geradores de Holocaustos infindáveis. Sejam nos campos de concentração, sejam nos campos de batalha ou nas arenas dos mercados internacionais. Sejam Nazis e oficiais da Gestapo, sejam liberais e gestores de topo de multinacionais ou de grandes bancos.
 
Mesmo que não cheire a carne queimada, cheirará ao desespero da miséria e ao suor da angústia…    
 
V - Não é só o Imperio que está acossado, nem a crise é apenas um assunto do capitalismo ocidental e das economias capitalistas estruturadas na velha ordem pós II Guerra Mundial. O capitalismo BRICS sofre também os impactos da crise provocada pela deslocação. Ainda no passado mês, o império dos negócios de Eike Batista, que foi o sétimo homem mais rico do mundo (segundo os medidores oficiais destas coisas), e o xamã do “renascimento económico” do Brasil, tombou. Estes desastres deveriam criar nas nossas cabecitas alienadas um momento (por muito breve que fosse) de reflexão sobre os perigos do crescimento económico baseado em políticas destruturadas de desenvolvimento, como acontece nos BRICS e como as periferias mais periféricas do mercado global tentam impor aos seus povos (originando a medio-prazo algo semelhante a um genocídio colectivo, um Holocausto criado não pelas camaras de gás, mas pela asfixia da pobreza) políticas económicas afastadas da realidade e das aspirações dos cidadãos.
 
No caso do Batista do Brasil (um tipo que foi modelar e apontado como exemplo para as novas gerações de papagaios e catatuas em que querem transformar a Humanidade), estamos na presença de um tipo tão eficiente como Eichmann e que não resistiu aos “pecados” apontados pelo Papa Francisco. O Batista conseguiu empréstimos de um banco, graças á suposta alta produtividade dos seus campos petrolíferos e utilizou o dinheiro dos contribuintes (pois o banco era público) para financiar os seus luxos (carros, iates e a esposa ex-modelo da Playboy). Tudo em grande até que se descobriu que afinal os seus poços estavam secos, tão secos como a sua petrolífera OGX. Secos mas criadores de dívidas que ascenderam a mais de 5 mil milhões de USD.           
 
Ao Batista do Brasil (e continuando na senda dos Eichmann da Alemanha nazi, transpostos para as arenas dos mercados globais), corresponde, por exemplo, o Vijay Mallya, da India, dono da Kingfisher (que ia dos transportes aéreos á cerveja), estrela de uma economia do capitalismo BRICS mais activa, a União Indiana (apesar da guerrilha que diariamente desenrola combates na cintura florestal  - que também é mineira – mas de que ninguém fala). Mallya era conhecido pelo “rei dos bons tempos”, um tipo que andava sempre metido em festas com as vedetas de Bollywood (o Hollywood BRICS da India), no seu iate “Indian Empress”, colecionador de carros e de modelos em biquíni.
 
Carregada de dívidas (créditos malparados, segundo a terminologia oficial, que os ricos nunca têm dividas - isso é coisa dos pobres e dos remediados – assim como nunca roubam, apenas desviam) a Kingfisher parece ter desaparecido dos mercados, depois de ter estado sem pagar salários durante sete meses. Enquanto a mulher de um dos trabalhadores se suicidava, um dos filhos de Mallya publicou no Twitter que estava a jogar voleibol com modelos em biquíni (tal pai, tal filho, que quem sai aos seus não é de Genebra).
 
A drástica desaceleração da economia indiana nos últimos meses (igual á economia em todos os BRICS, embora com impactos diferentes em todos eles) criou muitos outros casos idênticos aos Mallya dos biquínis e ao Batista dos poços secos. No caso da India, as grandes corporações, durante os bons tempos, foram capazes de restruturar várias vezes os seus empréstimos e sempre foram diligentemente recapitalizadas pelos governos através dos bancos estatais. Mas quando terminam os bons tempos, a situação torna-se insustentável.
 
Dez das maiores corporações indianas (companhias como a Reliance Industries, de Anil Ambani, a Essar Power, de Ravikant Ruia, a Adani Power, de Gautam Adani) têm dívidas superiores a 100 mil milhões de USD, sendo grande parte destas dívidas em moeda estrangeira. A debilitada rupia indiana acabou por aumentar a dimensão da divida, conduzindo á desaceleração dos sectores da construção e das mineiras. A Reliance industries, o maior império comercia da India, tem por exemplo cerca de 6 mil milhões de dólares a pagar de empréstimos, até ao final deste anos e cerca de 7 mil e 400 milhões, durante os 3 meses seguintes. 
 
As quebras avultadas nos resultados das empresas não são usuais na India, onde a relação entre as grandes empresas e o governo é estreita e de grande proximidade. Os bancos estatais estão dispostos a refinanciar as grandes empresas e assumem o risco de transportar nos seus balanços os activos não produtivos (o exemplo da Kingfisher é revelador deste facto). No entanto a Reliance beneficia dos seus investimentos petrolíferos nos USA, em particular no sector do gás. No último trimestre (o penúltimo do ano) os lucros da sua aposta no mercado norte-americano ultrapassaram os obtidos nas suas actividades no mercado da India, durante o mesmo período.
 
Por outro lado existe um factor que tem de ser levado em conta e que geralmente é omisso nos relatórios das instituições financeiras internacionais. Na India as grandes corporações adquiriram um grande poder político e social. Nos últimos anos beneficiaram de uma cultura que descreve com admiração a vida dos ricos, apontando-os como exemplo a seguir. Desta forma, com a ajuda da indústria mediática (das quais as corporações são proprietárias, ou em alguns casos é a industria mediática que é proprietária do sector mineiro e de grandes empórios comerciais e industriais), a India transforma-se num fosso de ilusão, á imagem dos filmes produzidos em Bollywood. Sociedade profundamente alienada, a India aceita o fosso social e encara a riqueza como um fim supremo. Fotografias de uma recente festa de aniversários da esposa de Ambani, num palácio real em Rajasthan (para a senhora sair um pouco da residência dos Ambani, em Mumbai, com 27 andares) mostram a satisfação do Ministro da Industria a jogar golfe com os seus patrões das corporações, uma benesse que só é oferecida aos bons empregados. 
 
Gravações de 2009 reproduzem as palavras utilizadas numa conversa de “empreendedores” indianos, em que Ambani se regozija pelo facto do governante Partido do Congresso ser mais uma das suas imensas lojas comerciais. Aliás não é por acaso que a um simples pedido da Reliance Industries Ltd., o governo indiano já indicou que irá duplicar o preço interno do gás natural, em Abril do próximo ano, uma decisão que nem foi discutida com os parceiros sociais e que terá imensas consequências para as pequenas e medias empresas indianas, assim como para os camponeses pobres e agricultores, para não falar na endividada (por várias gerações, alguns já nascendo endividados) classe média hindu.
 
Para sustentar este capitalismo BRICS Hindu (o capitalismo das castas), estão os endividados eternos e os milhões de pobres dos pobres que infestam as ruas e os campos da India. Do sonho de Gandhi ou das acções de Madre Teresa, não restam nem as memórias…Mas restam os rostos emudecidos dos pobres mais pobres da Terra, escondidos nos muros da miséria e ignorados pela comunicação social. Por isso, nessa India da Alienação Total, não há lugar para aguardar de braços abertos. Apenas para erguer os punhos… Aliás como acontece um pouco por todo o lado…
 
Fontes
Fox, Matthew Letters to Pope Francis: Rebuilding a Church with Justice and Compassion Liberation Ed., 2013
Fox, Matthew Occupy Spirituality: A Radical Vision for a New Generation Liberation Ed., 2013
Bourgeois, Roy My Journey from Silence to Solidarity Americas Watch, 2011
Arendt, Hannah The Origins of Totalitarianism, N.Y. Books, 2010
Arendt, Hannah The Human Condition N.Y. Books, 2011
Ruetschlin, Catherine Retails Hidden Potential: How Raising Wages Would Benefit Workers the Industry and the Overall Economy Demos Ed, 2012
Reports, January – July, 2013, Credit Suisse
 
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