Roger Godwin – Jornal de Angola, opinião
Digerido que está o
desaparecimento físico de Nelson Mandela, com toda a carga de emoções, que
estão patentes no modo como decorrem as cerimónias fúnebres, começam já a
assistir-se a uma série de manifestações públicas que deixam perceber o peso e
a importância do legado político que ele deixou para todos os sul-africanos.
A primeira dessas
manifestações foi feita pelo antigo Presidente Thabo Mbeki que, usando da
palavra numa cerimónia religiosa, lançou um apelo aos actuais dirigentes que
pusessem a mão na consciência e analisassem se estão ou não à altura de dar
cumprimento ao legado político deixado por Nelson Mandela.
Quase na mesma altura, as forças policiais foram chamadas a intervir para impedir que os apoiantes de Julius Malemba, antigo líder do Congresso Nacional Africano, se manifestassem frente ao local onde o Presidente Jacob Zuma se preparava para mais um elogio fúnebre a Nelson Mandela.
Estes dois episódios, a que seguiu a vaia pública que interrompeu um discurso presidencial em plena sala onde se encontravam cerca de 60 chefes de Estado dos diferentes continentes, são sinais da importância de que este momento se reveste, pois dele depende a manutenção do estado de união entre todos os sul-africanos e que constitui uma das principais bases de sustentação do apoio popular de que Nelson Mandela desfrutava. A escassos quatro meses da data prevista para a realização de eleições gerais no país, a morte de Nelson Mandela pode marcar a temperatura da campanha eleitoral e fazer reaparecer personalidades que não acompanhavam o discurso político que vinha prevalecendo.
Thabo Mbeki, desde logo, ressalta como sendo uma das figuras com quem Nelson Mandela mantinha algum distanciamento político, não obstante o facto de ter sido ele a personalidade que o substituiu na presidência do país. Desde logo porque algumas das medidas protagonizadas por Mbeki, como por exemplo a forma displicente como sempre tratou a questão do combate à sida, não mereceram o apoio de Mandela e cavaram mesmo algum desconforto no seio do ANC.
Um desconforto que se começou a desvanecer com a subida ao poder de Jacob Zuma e que serviu para separar e afastar do partido aqueles que mais se estavam a opor aquilo que se desenhava viesse a ser o agora tão falado legado político de Nelson Mandela.
Julius Malemba, um jovem político promovido por Winnie Mandela e que defendia uma radicalização do sistema político da África do Sul em relação àquilo que sempre foram as escolhas de Nelson Mandela, não perde uma oportunidade para fazer provas de força em relação à direcção do Congresso Nacional Africano, promovendo sucessivas provocações públicas e que podem incendiar ânimos mais exaltados.
Reflectir, neste contexto, sobre aquilo que se pode considerar o “legado político de Nelson Mandela” é um exercício complexo, mas todos na África do Sul falam sobre o assunto, havendo o perigo de desvirtuar aquilo que é a estratégia baseada num relacionamento positivo entre os diferentes actores do processo.
Durante algum tempo – espera-se mesmo que ele ultrapasse o período subsequente às eleições – a figura de Nelson Mandela vai continuar presente na política sul-africana e servir de “travão” para algumas oportunistas tentativas de pressão política sobre uma população que, essa sim, sente bem na pele a perda de uma duas suas principais referências, enquanto cidadão e nacionalista.
Este período tem igualmente que servir para que a classe política sul-africana, independentemente das suas opções partidárias, tudo faca para não perder tudo aquilo que conseguiu conquistar a custa dos exemplos de vida e de sabedoria dados por Mandela. A grandeza do país e a sua importância transcontinental fazem com que o mundo acompanhe de muito perto aquilo que são os próximos desenvolvimentos políticos que ali se vão registar, disso dependendo, em grande medida, a própria estabilização do continente africano.
Um país marcado por enormes desigualdades sociais, como é o caso da África do Sul, não se pode dar ao luxo de desaproveitar tudo o que conquistou ao longo dos últimos anos, com muito sangue, suor, lágrimas e também por força da determinação de um imenso leque de nacionalistas que viram em Mandela um exemplo que seguiram sem qualquer tipo de hesitação. O relacionamento político, económico e social que a África do Sul vinha mantendo com os seus parceiros continentais é uma garantia de que estes saberão cumprir o seu papel no auxílio às medidas que vierem a ser tomadas para garantir a manutenção da estabilidade interna. A presença maciça de altos dignitários nas cerimónias fúnebres de Nelson Mandela dão à África do Sul a garantia de que o país não está só neste difícil período, embora muitos deles apenas se tenham deslocado por uma mera obrigação de desempenho de funções.
Os desafios que os sul-africanos se preparam para enfrentar são imensos, as dificuldades muitas, mas as possibilidades deles serem vencidos com sucesso ultrapassam em muito eventuais divisões sustentadas em diferentes visões sobre o melhor rumo para seguir em frente.
Mais do que unanimidades políticas, a África do Sul precisa do engajamento de todos os seus filhos no esforço comum de trabalhar para que o sonho de Nelson Mandela não se transforme num imenso pesadelo.
Deste modo, o seu “legado politico” tem que ser encarado como um modo de prosseguir os seus esforços de unir a Nação, para que as desigualdades sociais, independentemente das opções políticas, fiquem cada vez mais esbatidas.
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